sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Philippe Muray e a demolição do Progressismo (por Rodrigo Agulló)


"Imagine todas as pessoas [...] vivendo sem países, sem religiões, sem nada para lutar ou morrer, a irmandade dos homens compartilhando todo o mundo, e o mundo viverá como um só." Nada melhor do que John Lennon e sua balada pastelosa para saudar a nova era, uma era cujo limiar provavelmente já cruzamos há muito tempo. Bem-vindo ao mundo do futuro rosa-bombom: a mais assustadora utopia, porque tudo indica que é realizável.
Caminhamos, sem dúvida, para um mundo melhor. Um mundo em que a democracia e os direitos humanos reinarão sem alternativa possível. Um universo pacificado onde todas as vozes serão ouvidas, todas as crenças reconciliadas, todas as contradições abandonadas, onde a solidariedade e a transparência serão a norma em um presente eterno liberto dos obstáculos e do atavismo de épocas passadas.  Mas não devemos baixar a guarda. Muito pelo contrário. Hoje mais do que nunca é necessário compromisso. A intervenção humanitária. A luta. Contra a exclusão, contra o populismo, contra o sexismo, o racismo, contra a discriminação em todas as suas formas, contra a xenofobia, contra a poluição, contra o abuso animal, contra o tráfico de marfim e peles, contra os responsáveis pela chuva ácida, contra o massacre da paisagem, o tabagismo, o colesterol, AIDS ... 

Mas o que fazer com o passado? O que fazer dessa história de exclusões, de genocídios, de colonialismos, sexismo e racismo? O passado é culpado, é necessário lançá-lo em um campo de revisões, autoincriminações e ofensas, ou recondicioná-lo, limpá-lo e pasteurizá-lo em um parque temático exemplar e progressista, pois o que importa é que a humanidade seja transformada, reeducada e readaptada nesta ampla tarefa de melhoramento do mundo.

Vivemos na era do açúcar sem açúcar, das guerras sem guerra, do chá sem chá, dos debates em que todos concordam. Mais modernização. Mais globalização. Mais Europa. Mais transparência. Mais pluralismo. Mais miscigenação. Mais igualdade. Mais paridade. Mais de mais. O essencial é a tolerância, muita tolerância, tolerância e respeito, respeito da tolerância, delatemos e sancionemos os inimigos da tolerância! A paz eterna é uma civilização universal, onde não haverá racismo, porque não haverá raças; onde não haverá sexismo, porque não haverá sexos. O ideal supremo: um mundo povoado de social-democratas suecos em celofane, agradáveis, higiênicos, participativos e eco-compatíveis. 

Mas esta cruzada precisa de todos seus militantes, porque é uma luta titânica e de dimensões cósmicas. É uma batalha dos partidários da emancipação individual e da tolerância universal, da sociedade aberta e sem fronteiras, da universalização direito-humanista e da igualdade de gêneros, contra o passado obscuro cheio de dogmas, preconceitos de grupo e religiosos, de uma ordem social hierárquica, conflituosa, intolerante e desigual. 

E cada vitória da inovação contra a tradição é uma conquista radiante da humanidade. Assim, é lógico que os 'inconformistas' - esses que assumem o grave risco de enfrentar as forças "conservadoras, inquisitoriais e homofóbicas" - serão coroados por seus esforços com nomeamentos institucionais, que os subversivos serão subsidiados e que os anarquistas receberão comissões ministeriais. 

E o que você faz, leitor, para vitória? Você é um rebelde? É um transgressor? Por acaso, é um iconoclasta? Se você é um indivíduo flexível, elástico, libertário, sem tabus e proibições, sem ataduras e preconceitos, sem memórias, inocente e perfeitamente integrado quando emancipado, solidário e comprometido com a boa causa, absolutamente de acordo com a voz do tempo, você é um perfeito exemplar do Homos Festivus, o homem da pós-história. E como tal, foi retratado, dissecado excessivamente em suas obras - e o melhor - convertido em matéria prima literária pelo agente, sem dúvida, mais corrosivo na literatura dos últimos tempos: o escritor Philippe Muray.



Quem é Philipe Muray?

Rapidamente cheguei a conclusão de que não se poderia escrever de outra maneira a não ser no sentido contrário das águas do mundo.
Philippe Muray
Nascido na França em 1945 e falecido prematuramente em 2006, Philippe Muray nunca ultrapassou em vida o caráter de escritor "cult". A mídia e o mundo literário construiram um muro de silêncio em torno de sua pessoa, e só no final de sua vida começou a ser reconhecido pelo grande público. Deixa para trás uma obra de vários gêneros: ensaios, novelas, panfletos, critica literária e de arte, poesia e uma extensa coleção de crônicas agrupadas em vários volumes de título dissuasivo: Exorcismos espirituais. Uma produção um tanto enigmática, que exige a familiarização com o léxico peculiar do autor. Mas Muray é um daqueles casos excepcionais em que o talento se impõe contra o silêncio da mídia, e hoje, convertido em referência entre a intelectualidade do país vizinho, muitos continuam ignorando quem na verdade ele era.... Um filósofo, escritor, sociólogo, moralista? Muray desejava ser, simplesmente, um escritor. Sua matéria prima: o tempo atual. Seu estilo: cáustico, irônico, corrosivo, barroco - não é em vão que é comparado com Celine. Seu método: uma máquina em que fatos são introduzidos e se extraem interpretações. Sua vocação: tornar-se o cronista do desastre dos tempos modernos. Seu programa: faremos você detestar o novo milênio

Com essas premissas não é surpreendente que se situe em uma zona maldita: ali onde toda a recuperação se torna impossível. Muray é o grande crítico da modernidade, é seu inimigo ferrenho, irreconciliável, absoluto. E se a literatura para ele mantém alguma função, é para nos fazer detestar este estado de coisas que não pára de apresentar-se como o mais desejável. 

Porque para Muray, e este é o seu ponto de partida, "nenhum mundo jamais foi tão detestável como o mundo atual." E o que é que faz nosso tempo tão detestável? Reposta: o fato de que vivemos em uma época sem precedentes, aquela que se consumou uma metamorfose do ser humano. E esta mutação só pode ser compreendida se aceitarmos uma hipótese: que a humanidade saiu da História, vivemos em tempos pós-históricos - isto é, pós-humanos, uma vez que a história e a humanidade sempre foram termos sinônimos. É um paradigma - o Fim da história - que tem uma filiação intelectual bem conhecida: enraizada na dialética hegeliana e teve sua exposição mais brilhante na obra do filósofo russo-francês Alexander Kojève. 

Adeus à História, adeus ao humano

Simplificando muito, podemos resumir a tese de Kojève da seguinte forma: o desejo de reconhecimento é o que faz o homem um ser com história. Para ele o homem não é suficiente com a auto-percepção: é essencial que os outros lhe percebam como sujeito, e seu desejo de auto-criação, de auto-transformação, é assim alimentado por esse desejo, que é o que lhe empurra para fazer história. E é aqui que se introduz um elemento chave - para Kojéve e Muray -, que é a ideia da negatividade. É esse desejo de reconhecimento - substrato da historicidade do homem - o que lhe leva a negar o mundo tal como ele é, e também negar seus próprios instintos naturais. Só um ser livre é capaz disso: o homem. O homem é a negatividade encarnada, o que implica a reafirmação constante do Senhor que levamos dentro de nós, e a submissão que levamos dentro de nós. E é assim como o desejo de reconhecimento triunfa sobre o instinto animal de auto-preservação: vencer o medo da morte e arriscar a vida, se for preciso, para obter esse reconhecimento. Essa é a luta constante no foro íntimo do homem, essa é a força que põe a História em movimento. Para Kojève, o homem "é verdadeiramente histórico ou humano apenas na medida em que é um guerreiro".


No centro da reflexão de Muray se encontra a constatação: a História terminou e, no entanto, a humanidade não foi capaz de realizar sua própria metamorfose. Porque - segundo Kojève - "a História pára quando o homem deixa de agir no sentido forte do termo, isto é, quando já não nega mais, quando já não transforma o entorno natural e social por uma luta sangrenta e o trabalho criador. E o homem permite isso quando o entorno real lhe dá plena satisfação, realizando plenamente o seu desejo de reconhecimento. Quando o homem está plenamente e verdadeiramente satisfeito com o que é, ele já não deseja nada mais que o real e não muda mais a realidade, cessando assim de mudar a si mesmo."

É no momento em que o mundo se torna completamente racional que o homem esgota todo seu potencial: a Morte, o Mal e as contradições se ofuscam, e já não quer outro projeto exceto perpetuar um presente eterno feito de prazeres e distrações. Em termos econômicos isso é expresso no capitalismo. Em termos psicológico, na democracia liberal e em suas garantias de reconhecimento. E no político, na ordem universal e homogênea em que a política se substitui pela administração das coisas.

A saída da História não é um acontecimento apocalíptico que vem acompanhado de trombetas. É um deslizamento que acontece silenciosamente: é invisível, imperceptível, cotidiano, sem graça, trivial... o Fim da História, é claro, não significa (como muitos se empenham em mal interpretar) o fim dos acontecimentos. O Fim da História significa a ausência de um sentido superior aos acontecimentos, significa que esses se limitam a acontecer, mas sem derivar deles um significado de uma vontade de transformação dos princípios que governam os homens. Significa que esses acontecimentos, pura e simplesmente, não significam nada. O Fim da História pertence à ordem das sensações, e daí a dificuldade em poder capturá-lo. Não é uma descoberta científica, é uma evidência, que se tem ou não se tem. É possível descobri-lo - e a literatura é o melhor meio - mas não se pode prová-lo.

Para Muray - cuja a vida se passa nas fronteiras entre o velho e o novo mundo - o advento da pós-história é um acontecimento de profunda tristeza, catástrofe por excelência. Quando o limite foi ultrapassado? Provavelmente em algum momento entre os anos 60 e 80 do século passado. Mas essa evolução oferece algo a Muray: a matéria prima de sua obra literária. Muray é um cronista do declínio do mundo e de sua substituição por outro. Muray registra como os novos tempos pós-históricos neutralizam todas as contradições, expurgam tudo aquilo que é anterior e incompatível, mas ao mesmo tempo são responsáveis por esconder uma realidade que seria muito difícil aceitar: a História terminou. E para isso é necessário fingir que continuamos os tempos históricos, é necessário inventar inimigos imaginários e contradições que já não existem mais, em um relato épico onde os guardiões da nova ordem - invariavelmente progressistas - sonham sobre ordens de resistência hierárquicas e patriarcais ou sobre regimes autoritários que há tempos foram reduzido a cinzas. São lutas sem risco, lutas vencidas de antemão, paródias e pastiches que só escondem uma realidade: vivemos em uma civilização de controle total que apoderou-se do negativo e o fabrica em série para evitar seu uso exterior. De fato, não há exterior: o "anticonformismo", a "transgressão" e a "marginalidade" são produtos domesticados, e qualquer pensamento verdadeiro se encontra, mais cedo ou mais tarde, afogado sob o peso de sua duplicata. E essa desaparecimento da dialética do real - daquilo autenticamente humano - substitui pela instalação de um parque temático global, onde, em vez do homem dos tempos históricos, habita um novo-homem, o grande protagonista da obra de Muray: Homo Festivus.

A Festa do último homem

Há vida após o fim da história? "Sim!", responde Muray. De fato, não há nada mais que isso: a vida desse turista universal chamado Homo Festivus, uma criatura finalmente livre de todas as questões existenciais associadas à morte que tanto atormentaram seus antepassados. O Homo Festivus é cool e carece dos grandes preconceitos das épocas anteriores, não se considera continuador de qualquer legado histórico. Ele nasceu ontem, ele é seu próprio produto, ele mesmo decide sua própria identidade cultural e sexual. Transgressor e inconformista, o Homo Festivus é aquele que sempre diz "Sim!" a toda novidade que se propõe. Adorador da diversidade, é abstrato e intercambiável com qualquer outro de sua espécie em qualquer parte do mundo.

Homo Festivus está sempre em guarda contra os conservadores, obscurantistas, linha-duras e outros adversários do progresso, periodicamente exumados de um passado defunto para fazer papel de fantoches fáceis. Sem essa presença negativa não haveria festa completa! Onde estaria, sem essa "luta", o glamour transgressor, as faixas libertárias! O Homo Festivus está comprometido com as boas causas do planeta; da velha esquerda não conservam seus dogmas revolucionários, mas sim uma visão moralista e um anseio por uma utopia que os fazem promover uma visão virtuosa e angélica do real. Sua empatia com o sofrimento dos outros se manifesta em um desdobramento emocional que o leva a enfrentar os dramas do planeta de forma lacrimosa-caritativa, o que, por sua vez, permite-o consumir, divertir-se, viajar e socializar-se com um suplemento de boa consciência, sempre que exista um chamado solitário, humanitário ou ecológico envolvidos.

Homo Festivus é uma alegoria, um modelo teórico, é a expressão sintética do festivismo de massa que é retratado na obra de Muray. E é aí que reside a grande descoberta deste autor, a descrição do Festa como estado terminal pós-histórico, como eterno presente onde todos os venenos da negatividade e das contradições se dissolvem. Vivemos em uma Festivocracia, em tempos Hiperfestivos. Entenda-se: não é uma festa no sentido tradicional - uma ocasião excepcional que se contrapõe ao cotidiano.

A Festa agora é a cotidianiedade mesma: tudo contribui para manter uma ilusão de distração permanente onde a festa perde seu caráter distintivo. Entenda-se também que Muray não articula uma crítica - em um sentido marxista - da Festa como "alienação", como pão e circo que os governantes impõem aos governados e de que seria possível "libertar-se" segundo esse otimismo caro ao messianismo revolucionário. Não. A Festa é exigida desde a base porque corresponde a uma evolução sistêmica onde os governantes já não governam muito e onde o mutante Homo Festivus tem a palavra, e tem o que merece. A exacerbação hedonista e a euforia compulsiva, os Prides, as Raves e as festas cada vez mais gigantescas da era hiperfestiva não são mais que sintomas entre outros.

Por ser a Festa muito mais que suas manifestações concretas, ela torna-se um modo integral de produção e reprodução social, é uma organização, é a eliminação de fraturas e divisões, é fusão e unificação, é a forma de "libertar-se" do mundo concreto. A Festa é o processo de substituição do território real pelo mapa festivo. O Homo Festivus pôs em prática, de forma sinistra, o slogan festivo dos revolucionários de sessenta e oito: "tome seus desejos como a realidade". Sob o signo da realidade virtual se desenrolam os tempos pós-históricos.

A chegada do Homo Festivus não é nenhuma surpresa. Não é outro senão aquele Último homem que foi descrito por Nietzsche em uma famosa intuição: o homem da pós-história que chega, sem coragem e sem grandeza, para ficar para sempre. O Último homem que rejeita orgulhosamente todos os ideais e os sonhos do passado ("antes, todo mundo estava louco"); o Último homem que "pensa que inventou a felicidade, e pisca os olhos"; o emancipado absoluto, niilista passivo, o cidadão do mundo, o rebelde de patinete, o consumidor em bermudas, o Homo Festivus.

Riso e subversão

O homem sofre tão profundamente que ele teve que inventar o riso. O animal mais infeliz e mais melancólico é também o mais alegre.
Nietzsche
Nada está mais longe de Muray, diante do deboche fetivista, que uma apologia lamentosa pelos "velhos tempos" e suas duras virtudes. Porque, se Muray rejeita os tempos hiperfestivos, não é porque eles sejam alegres, mas muito pelo contrário: "a característica essencial do pós-humano", diz Muray, "é sua ausência de humor, a impossibilidade de rir". Uma Festa sem riso? Sim, uma liturgia festiva mortalmente séria. O riso adulto requer um fundo de incerteza e indecisão que é incompatível com o moralismo que exige sempre saber onde está o bem e onde está o mal. Se nós rimos, estamos sempre a custa de alguma coisa - ou de alguém. O riso é quase sempre desrespeitoso, muitas vezes cruel e é, em qualquer caso, discriminatório e, portanto, contrário aos valores democráticos de compreensão e respeito pelo Outro. Como rir sem ofender alguma dessas minorias tão minoritárias que são já uma legião? O mundo contemporâneo, livre dos defeitos da História, tornou-se em um esforço coletivo e não admite piadas. O Império do Bem rejeita a ridicularização por ser retrógrado.


Destruída toda transcendência e toda a ilusão, o Homo Festivus tenta escapar do abismo, restaurar a fissura e preencher a lacuna por meio de uma euforia que se sobrepõe as catástrofes do mundo real. Mas é um falso mecanismo. E, todavia, ainda é possível manter aberta a brecha de incerteza. Através do humor. O humor que visa enfatizar o desacordo com o mundo. Porque o riso é o pouco que resta daquela velha negatividade, agora sob assédio em todos os lugares. Nossa época é ridícula, e diante dela a única atitude possível é o riso. Inútil esperar o mínimo pensamento daqueles que se levam a sério. Confrontado com a conversão do mundo em um jardim de infância gigantesco, "rir e pensar tornaram-se sinônimos." O resto é apenas consentimento simplório e entertainment.

O Consenso Totalitário

Os modernos nunca perdem a ocasião de ser autoritário e mandar em todos.
Philippe Muray

A linguagem do Bem é sutil. Se auto-satisfazem no elogio do Outro - queridos Outros! -, através do elogio da diversidade, do pluralismo e da tolerância. Mas com isso querem dizer justamente o contrário. O "Outrismo" trata-se em erradicar a alteridade. A alteridade gera discriminação, rivalidade, ódio ao estrangeiro... e a unificação benéfica da humanidade passa por uma miscigenação universal. Como é possível conciliar o inconciliável? Como é possível encantar-se diante das identidades étnicas e culturais e ao mesmo tempo promover sua dissolução através da miscigenação? Chegamos ao núcleo do projeto progressista: o Outro é sempre bem-vindo se sua religião é dissolvida em cultura, sua cultura em folclore e sua identidade em simulacro. Isto é, se o Outro se converter no Mesmo. O elogio do Outro é sempre o primeiro passo para a padronização do planeta.

Imposição e onipresença do Mesmo. Trata-se de erradicar a negatividade, a contradição, o real, tudo aquilo que constituía a História e, que, na pós-história, nada mais é que "o Mal". É o Império do Bem: um moralismo onipresente que tem seus beatos, seus missionários, suas damas de caridades e suas ligas de Virtude. Com seus evangelhos: o dogma da miscigenação, da mistura, da abolição das fronteiras, da abolição das diferenças sexuais, da abolição de toda diferença. Com seus instrumentos repressivos: a síndrome maníaco-legislativo e uma praga justiceira que Muray batiza como "erótica pelo penal" que se manifesta em um arsenal de mecanismos de delação e de punição contra qualquer opinião ou conduta supostamente discriminatória por motivos de origem, sexo, estado de família, saúde, deficiências, características físicas, orientação sexual, idade, nação, raça, religião etc. E com um zelo perseguidor correspondente contra qualquer ideia, criação ou linha de investigação que seja suspeita de alimentar ou encorajar formas de pensar incorretas. Uma tarefa de purificação ética que exige vigilância, controle, prevenção e que se traduz em uma bulimia normativa que persegue qualquer indício de vazio legislativo, que não para de inventar novos delitos contra a saúde, contra a higiene, contra os costumes julgados como bárbaros ou pré-históricos e que cerca, organiza e classifica qualquer resquício por onde seja possível exibir a vida, ou seja, tudo aquilo que abandona seu ideal de assepsia absoluta e de transparência clara, insípida e frígida.

Com uma consequência: a vitimização geral da sociedade. O estatuto de vítima é rentável: todo mundo quer ser uma vítima! Um histerismo de compaixão e uma exigência obsessiva de proteger que corre em paralelo com um moralismo chorão e uma sentimentalização da política digna de aparecer em uma história universal da melosidade. Com o ponto culminante na culpabilidade geral do passado: o convite para safáris morais para perseguir a xenofobia, o fascismo, o racismo e a homofobia através do séculos, o que nos conforta com uma certeza: nossos valores são universais e definitivos, somos melhores, somos bons.

Claro que um mundo onde toda tensão tenha sido abolida, um mundo sem mistério, sem surpresas, sem enigmas, onde reina apenas o indiferenciado e onde todos sejam iguais, seria mais parecido com o inferno. É por isso que é essencial introduzir ao menos um simulacro de tensão, uma negatividade de papelão. E assim as forças do Mal são ritualmente convocadas, para que os "subversivos" e os "inconformistas" possam oferecer cruzadas progressistas contra a intolerância, o fundamentalismo, a xenofobia e o racismo. Todos os totalitarismos precisam de inimigos. Stalin não parava de impedir conspirações trotskistas; em 1984 de Orwell a Oceania enfrenta uma guerra eterna contra a Eurasia e a Lestásia.

Muray denomina esse consenso suave uma forma sutil de totalitarismo. Na era dos bons sentimentos se faz impossível opor-se as normas higiênicas e idílicas sem que pareça estar atacando o gênero humano. No fundo, ao invés de reprimir a alteridade - como fizeram as tiranias clássicas - se deseja eliminar a possibilidade mesma de sua existência. Dizia Orwell - em sua análise da Novilíngua em 1984 - que quando já não existem palavras para nomear uma coisa, a coisa deixa de existir. O politicamente correto se encarrega dessa purificação da linguagem, de limpá-la, purificá-la e higienizá-la conforme os dogmas do dia.

O que fazer? Para Muray, só cabe uma opção: marcar, através da literatura, uma distância sanitária diante "todas essas formas pomposas e fúnebres da moral contemporânea e todo seu sistema de valores tolerantistas, igualitários, intercambistas, solidariaristas e multiculturrais, mas sempre vigilantes, niveladores e controladores como as beatas da sacristia, que afogam com seu peso de morte e preconceitos o pouco que resta de vida e que, se persistem, é porque seguem sem deixar serem definidos como realmente são: uma ordem moral, a mais odiosa de todas as ordens morais que já governaram a humanidade, mas cuja origem de esquerda lhe protege contra a derrocada que merece".


Quando os castradores se passam por libertadores

As sociedades pós-históricas são caracterizadas por um ódio - beirando o patológico - pelo Patriarcado como configuração arquetípica dos tempos históricos, que se identifica, além disso, com a ordem arcaica de diferenciação entre os sexos. A diferenciação é assimilada aos vestígios da soberania masculina e do antigo regime machista. A supressão de todo o princípio de contradição exige eliminar esse antagonismo básico, essa velha distinção sexual que era "muito ofensiva, muito evidente, também cheia de significado." O Homo Festivus cultiva um ideal unissex. E nos tempos hiperfestivos a figura do Paterfamilia não tem outra função além daquela de se converter em um resíduo naftalinoso ou clown irrisório, condenado a sua reeducação pelas mães e pelas crianças - duas figuras dominantes na ordem simbólica dos tempos pós-históricos.

As formas hegemônicas de produção social tendem a realizar um ideal andrógino conforme a ideia de que todo sujeito porta em si mesmo uma "bissexualidade variável", e que, de qualquer maneira, ser "homem" ou "mulher" são papéis socialmente induzidos, susceptíveis de serem re-ajustados em qualquer fase da vida. A invenção americana da ideologia de gênero vem em resgate para afirmar que a velha humanidade estava equivocada em acreditar que seus membros podiam ser definidos em função do sexo.  O que ocorre é a definição em função do gênero, masculino ou feminino, ao gosto do consumidor. Basta desse escândalo insuportável da natureza que consiste em não poder escolher o sexo! Os transexuais são portadores de uma mensagem de esperança para a humanidade. A liquidação dos velhos papéis sexuais não pode ser reduzida ao âmbito social - a maternização dos pais, viralização das mulheres -, mas deve estender-se ao plano psicossomático: a nova moral leva os homens a "expressar o lado feminino", o mercado  encoraja-os a repolir sua aparência, e o sacrossanto princípio da transparência exorta-os a "reconhecer a bissexualidade latente" quando não a "sair do armário". A "bissexualidade psíquica infantil" será cuidada como uma planta delicada por uma pedagogia que irá acelerar a erradicação de qualquer surto considerado "homofóbico" e os brinquedos considerados "sexistas" serão banidos. Talvez depois de uma ou várias gerações será possível esquecer de uma vez por todas a antiga e maldita divisão dos sexos.

Esta abolição da distinção sexual - na verdade, uma des-sexualização - acompanha dois fenômenos os quais Muray reserva suas críticas mais amargas: a feminização e a infantilidade do corpo social. A criança é o Rei dos tempos pós-históricos. Uma vez que o passado é condenado como um todo, a vantagem do adulto em relação a criança desaparece, e é a criança, a inocência, que passa ao primeiro plano. Na publicidade e no cinema é a criança que sempre sabe o que fazer, o adulto, especialmente o pai, aparece como um "imbecil desajustado que só é tolerado se acomodar-se as regras das crianças que evoluem sob o olhar doce da mamãe amorosa." Toda a pós-história é uma regressão a infância, e o Homo Festivus é uma criança mimada que deve organizar distrações para não se aborrecer. As crianças vivem em um eterno presente, são os melhores consumidores e tem todos os direitos. A maternidade-mundo - assinala Muray - se encarrega de nos convencer que somos crianças irresponsáveis cercado por programas higienistas, de caridade, humanitários, protetores e de que não temos outra coisa a fazer além de flutuar como fetos andróginos na música do hiperfestivismo como no banho matriarcal das origens.

O mais curioso é que, para alguns cérebros em hibernação na mitologia sessento-oitentista (1968), essa desexualização induzida é considerada um levante heroico, uma batalha até a morte contra o puritanismo e a reação. Quando se trata precisamente do contrário: a destruição da antiga libido - considerada como negativa, hierarquizante e conflitante - e de sua substituição por um sistema de assepsia absoluta. Chegamos ao mundo do "Progenitor A, Progenitor B", ao mundo onde para evitar "traumas", é desejado a supressão do "sexo" dos documentos de identidade, ao mundo em que o auto-engendramento e a clonagem são perspectivas reais. E onde o sexo entendido como uma atividade higiênica e quase esportiva marca o fim do erotismo. O sexo é onipresente, mas os sexos desaparecem. Um só sexo, o mesmo para todos. O sexo como consumo, o prazer como obrigação. Não ocultar nada, mostrar tudo. É o reino da Transparência total, o fim da porosidade da vida. O que resta da antiga libertinagem - aquela parte maldita feita de claro-escuro e sombras? O Império do Bem alcança alturas que o velho puritanismo religioso nem chegou a sonhar.

O escritor Philippe Muray é um sujeito histórico perdido na pós-história, é um sujeito sexual que descreve o desaparecimento da sexualidade. E essa descrição é uma chamada implícita para recuperar "o ponto fundamental do equilíbrio humano: a relação humana franca e tradicional por ser histórica, isto é, real, entre o homem e a mulher - sabendo que a mulher deseja um homem que deseja mulher que por sua vez deseja um homem como homem, e não como uma mulher." Restaurar a sexualidade seria uma forma de reconquistar o real, de restaurar a História. 

Progressismo e seus lacaios

Muray está longe de ser um polemista. Ele não aspira a estabelecer um diálogo, trocar ideias ou debater. Muito menos convencer. Para ele, a atividade literária é apenas um meio para restaurar a sua distância frente ao mundo moderno. Porque a catástrofe não tem remédio, a liquidação da antiga humanidade e as antigas condições de vida é irreversível. E se houver um confronto, não será entre conservadores e progressistas, mas entre as várias facções que, dentro da modernidade, mantém a ficção de que a História continua. Moderno contra Moderno, essa é a realidade. Sua tarefa hercúlea consiste em desenvolver uma recessão detalhada - por meio da sátira, da literatura e da sociologia - dos dogmas e aberrações de um mundo que pretende eliminar toda a negatividade e estabelecer uma visão angélica da realidade. Citamos alguns retratos das diferentes faces do Homo Festivus. 

O rebelde

Para Muray é muito fácil reconhecer um "rebelde": é aquele que sempre diz "sim!" a tudo que, de uma forma ou de outra, é proposta como "novo". Isso é um pouco do que o Homo Festivus manteve do marxismo: a comovente crença que o "novo é invencível", que o futuro é  pertence a ele e que o vento da História sopra em suas velas.

Nos tempos hiperfestivos a transgressão, o subversivo e o "politicamente incorreto" estão sempre no controle. E assim se impõe "a Cultura como consenso anti-consensual, a transgressão como uma rotina artística, a subversão e a provocação como pacote de presente em todas as boas causas midiáticas que são apresentadas como conquistas radiantes, mas também perigosas, do espírito." A transgressão como o novo academicismo visa manter a ilusão de "ruptura", de continuidade com os tempos históricos: "a ficção do negativo se manifesta por um louvor contínuo de todo o que antes se manifestava como negatividade, como combate contra a Ordem moral. Mas, a partir do momento em que todos passam a ser subversivos, já não há mais subversão. Se todo mundo se afasta da norma, esta norma é puramente ilusória. A ruptura substitui o padrão, e o conformismo toma a máscara de subversão".

Para Muray o fim do mundo consiste no fim da dialética real e em sua substituição por paródias mais ou menos alcançadas. Os rebelocratas são os grandes figurantes dessa paródia. Mas é uma paródia em que ninguém acredita. Em um mundo sem alteridade, sem enfrentamentos, sem possibilidades múltiplas, isto é, sem negatividade, as palavras subversivas, transgressoras, iconoclastas ou provocadoras, mantém tanto poder agressor quanto as gengivas podres de um nonagenário.

O artista

O exemplo mais nítido da subversão, o artista, "reivindica não só o direito da transgressão sem punição, mas a institucionalização da transgressão - e só um espírito dos antigos poderá enxergar a contradição que isso implica." A Cultura é um desses fundamentos que sobrevivem a transformação de seu conteúdo. O que se chama hoje de "cultura" é um dos agentes mais eficazes do Bem radical. E os "artistas" - alegremente assimilados aos "intelectuais" - estão em melhor posição para disseminar o imaginário do Bem no corpo social. Como o filósofo Jean Claude Michéa diz, "a reciclagem da mitologia romântica do artista rebelde permite que todos os artistas oficiais do showbusiness encontrem-se nas cenas de luta, mas o que está em jogo é a defesa da ordem econômica e cultural para garantir sua celebridade rentável." A "rebelião" é uma operação de lavagem pela qual o capitalismo recria sua virgindade, o que por sua vez permite conciliar o nível de vida burguesa com o estilo de vida do artista: o artista se beneficia das vantagens materiais e morais do conformista, além do prestígio do dissidente. "Em sua boca, a 'cultura' e a 'arte' só servem para instrumentalizar a história secular da consciência imaculada da esquerda - que só agora começa a ver que não é nada mais que uma história de hipocrisias." O artista é o "progressista" por definição.

"Nunca antes os artistas fingiram ser os médicos da humanidade sofredora, os líderes, os comprometidos, os solidários, os libertadores e salvadores do mundo. Nunca antes se auto-designaram como a consciência moral perpétua. Nunca antes exigiram que o governo lhe subsidiassem sua liberdade privada, e que esse subsídio precisasse ser defendido com unhas e dentes como se fosse uma conquista social inalienável. Elite auto-designiada, aristocracia esclarecida, sua boa consciência - tão astuta quanto ingênua - os mantém na ilusão de crer ser o guia e a consciência do povo." Muray tem um nome para eles: artistocratas.

O turista

Alguém disse que o turismo é a indústria que consiste em transportar pessoas que estariam melhor em sua casa para lugares que estariam melhor sem eles. Para Muray o turista - o autêntico quinto Cavaleiro do Apocalipse da modernidade - é, sem dúvida, a face mais verídica do Homo Festivus. Procura o turista e encontrarás a feiura! "O turismo produz no espaço o que a modernidade produz no tempo: fazer feio tudo o que era lindo, fazer acessível tudo o que era inacessível, fazer moderno ou tourist-friendly tudo o que não era." 


O turista é a criatura moderna e festiva por excelência, porque é o melhor agente daquilo que Braudillard denominava "o assassinato da realidade". Com a passagem do turista, tudo se torna simulacro. Tudo o que não é susceptível de ser visitado turisticamente, isto é, tudo o que tudo o que não se curva de forma beata a modernidade inocente e hipersensível, deve ser mais cedo que nunca normalizado, limpo e higienizado para ser consumido pelo Homo Festivus. O turista é o grande museificador da humanidade. "Como transformar os seres falantes em excursionistas? A glória de Walt Disney consiste em ter sido o primeiro que percebeu que a História estava terminando e que o globo, explorado por inteiro e visitável por qualquer um, estava prestes a perder suas últimas atrações. Já não há planeta. Já não há História. Já não há Tempo. Resta apenas o passatempo."

O gay 

A partir do momento que a homossexualidade se fundamenta na valorização do mesmo - ou na desvalorização da diferença - ela deveria assegurar um lugar privilegiado dentro da mitologia festivocrata. De cara se pressupõe que um homossexual pensa - ou deveria pensar - bem. Mais quando Muray descreve o festivismo gay não se trata de modo algum em denegrir a homossexualidade em si - uma orientação ou preferência particular, na melhor das hipóteses, de uma perfeita indiferença -, mas de se perguntar por que a homossexualidade como militância necessita nada mais que obter um aplauso admirado de uma humanidade agradecida. O que nos leva aquilo que chamou de gaytitude, e que consiste em assimilar uma orientação particular a uma visão de mundo, uma categoria sociopolítica e a uma forma de redenção da humanidade. 

Muray assinala que os gays militantes foram os porta-vozes mais eficazes da ideologia politicamente-correta americana. É a cruzada por excelência dos tempos hiperfestivos, que, para conseguir seus objetivos, usou a provocação, a exigência de proteção, a culpabilização, a perseguição, a chantagem e as reivindicações particulares camufladas sob a retórica de igualdade e liberdade. De acordo com uma lógica binária - "quem não está conosco está contra" - que conduziu a uma situação inversa faz décadas: a "homofobia" é hoje susceptível a sanção penal, e "homofóbico" será todo aquele que apresente alguma objeção ou que não mostre uma aprovação em joelhos diante de tão boa causa. 

Assim se torna extraordinário "vê-los lutar contra inimigos que se ouve tão pouco, vê-los denunciar rotineiramente os tabus sobre temas que não se deixa de falar, vê-los partirem para uma cruzada contra censuras que ninguém viu, vê-los serem universalmente aplaudidos por derrubar 'preconceitos sociais' que não são mais que memórias distantes, vê-los ocupar todo o cenário para denunciar que são "rejeitados", vê-los manter o fogo sagrado de uma luta que encontra tão poucos opositores". E por isso a gaytitude arde como palha acesa quando, por acaso, encontra um punhado de crentes da antiga religião, ou quando um punhado de partidários do velho mundo prestam-se a desempenhar o papel de fantoche reacionário, intolerante e homofóbico e, dessa forma, dando uma aparência de heroísmo à causa que já foi ganha.

Ao gay homofestivo se deve a invenção inestimável do Pride, ponto de partida da Festa moderna, inseparável do movimento homossexual. É ao gay a quem o Ocidente deve como o ícone insuperável da Festa, com os confetes, pompons, tamborins e mil e uma maravilhas do festivismo moderno.    

O progressista

Síntese, quintessência ou denominador comum de todas as encarnações festivocratas, o "progressista" - o que hoje é como dizer a "esquerda" - é "o dealer universal desta humanidade em secessão da humanidade." Em sua convicção alucinante em incorporar a guerra contra o Mal, a esquerda é hoje o partido santarrão contemporâneo. Em sua busca sem fim por um amanhã mais brilhante, é preciso para a esquerda incriminar constantemente o mundo, além de acelerar o processo de festivação. Com uma fé fervorosa na ideia - no fundo consoladora - da (des)alienação, a esquerda é congenitamente incapaz de compreender a pós-história, e é, portanto, um fator de mistificação, isto é, um obstáculo para compreender o mundo em que se vive. 


Existe saída? 
 
Philippe Muray, reacionário? Não no sentido mais comum do termo - aquele de alguém que quer voltar ao passado-, pois o escritor francês carece de otimismo daqueles que pensam que isso seria possível. O fim da História é como o fim da virgindade: não há mais volta. Mas são os diretores de cena da festivocracia os primeiros interessados em negar. E eles fingem que "a História continua" cada vez cada vez que qualquer susto estrague seu almoço. Mas não são mais que acidentes. No futuro haverá, sem dúvida, conflitos, rupturas e convulsões - os espasmos agonizantes do mundo velho. Mas é necessário não se enganar: isso só irá fortalecer o processo, porque, diante do horror que geram, sempre será preferível a sedação e a placidez hiperfestiva.  


Um exemplo: é comum pretender que as manifestações violentas - terrorismo, fundamentalismo islâmico - são provas irrefutáveis da continuidade dos tempos históricos. Mas mesmo se tais violências durassem centenas de anos, para Muray, essas não são mais que sobreviventes transitórios que apenas negam uma realidade: o desejo profundo e talvez inconsciente de todos os povos - digam o que digam e façam o que façam - de alinhar-se com a agonia ocidental, entendida como o único modelo viável para a humanidade do futuro. E a loucura sanguinária do fanatismo provavelmente só encobre uma coisa: a frustração de ainda não ter atingido esse estágio. Além disso, o combate entre o terrorista islâmico e o Homo Festivus é um combate desigual, que só pode ser pago com a vitória do segundo. "Venceremos [...] porque somos os mais mortos", diz o Homo Festivus - pela boca de Muray. O Último homem prevalece sobre o guerreiro jihadista. Nada pode matar um morto. 


Também é comum apontar os movimentos antimundialização e antiglobalização como tantas outras rejeições da uniformização festivocrata. Nada mais longe da realidade. De nada serve protestar contra a globalização através de grandes tumultos festivos se não começar a abandonar o "ideal angélico de um mundo sem fronteiras, que é precisamente a fronteira da globalização, sua ilusão lírica particular. Os que defendem furiosamente a livre circulação de capitais e os que defendem ferozmente a livre circulação de pessoas - dos imigrantes sacrossantos - estão no mesmo lado. Todos eles são partidários da des-territorialização, de um mundo confuso-onírico onde as antigas soberanias, produto da humanização, se encontram abolidas para sempre." Os ativistas antiglobalização "estão tão submetidos a modernidade matriarcal e planetária como os Donos transnacionais que afirmam lutar. E suas guerrilhas furiosas de ruas não são mais que um teatro de rua, uma forma como outra qualquer - 'artística', logo, duplamente culpável - de submissão".

Outros falam de um suposto revival religioso - da ascensão dos fundamentalismos, das novas formas de espiritualidade - e querem ver um retorno do sagrado. Não há tal coisa, diz Muray. Não há nenhum "retorno a religião". Nenhuma re-espiritualização. O que há é uma "encenação" de resíduos religiosos - sob formas de resíduos delirantes - pelo próprio Espetáculo e para o benefício do Espetáculo. Se trata de "reavivar o núcleo central do irracional, de retomar a uma ficção mística consistente sem a qual nenhuma comunidade, nenhum coletivismo poderia enfrentar a tempestade." Tudo se encaixa aqui: o pastelão New Age, as extravagâncias ocultistas, a moda budista ou as jornadas católico-espetaculares nas quais a Igreja procura se adaptar à linguagem atual. Festivópolis assim encontra o suplemento de Transcendência necessário para poder afirmar que a perfeição está nela. Show must go on.

Mas é o "populismo" - essa "besta negra" favorita da festivocracia - que fornece o plus de negatividade necessária. É esse populismo que paira quando em algum referendo se produz um resultado equivocado, ou quando o povo diz "merda!" e vota em algum partido de ideias e modos grosseiros. Nesse caso, se impõe um esforço paciente de pedagogia, para que os obtusos que não compreenderam em que mundo vivem deixem de provocar e não tenham outras ideias e desejos diferentes das elites transnacionais. O termo "populismo" é encoberto, nesse sentido, com um profundo desprezo pelo povo simples - por esse conjunto de caipiras, xenófobos, intolerantes, sexistas, resíduos do passado. Evidentemente - afirma Muray - ainda existem surtos do velho mundo, vestígios isolados aqui e acolá que ainda podem dar um susto estranho. Mas se encontram de tal modo cercados e de tal modo trabalhados pelo Império do Bem que é difícil pensar que possam fazer alguma coisa. E embora seja verdade que entre muitas pessoas ainda sobreviva "algum terror obscuro e profundo sobre a marcha do mundo, esse terror também é combatido, no interior de cada um, por uma tendência à submissão igualmente obscura e profunda, pelo desejo de adaptar-se as novas condições, pela sensação que não há escolha." Muray não guarda nenhuma esperança sobre capacidades hipotéticas de "resistência" dos povos que tenham permanecidos "sãos".

Se Muray é um reacionário, não é no sentido pessimista, mas sim em no sentido trágico, de aceitação da realidade. Tampouco é um niilista, porque tem pontos sólidos. Um deles é sua crença no potencial libertador da literatura. Outro ponto é sua crença nas virtudes guerreiras e estéticas do riso. E há um terceiro, surpreendentemente inesperado: sua adesão declarada à fé católica e a Igreja de Roma!

Este é um ponto intrigante no qual os comentadores de Muray não chegaram a um acordo. O certo é que não há em sua obra nada de apologético. Chegou-se a notar que, mas que um catolicismo ontológico, o que se trata em seu caso é um uso instrumental do catolicismo: este lhe forneceria um ponto de vista exterior sobre as coisas, a serviço de sua visão de mundo. Porque nesta visão, como vimos, a ideia de negatividade é essencial. E o catolicismo - isto é, a anti-modernidade por excelência - seria para ele um instrumento da História para manter a contradição no seio do real. Para aceitar esta ideia, o seu seria um catolicismo dialético, um "catolicismo hegeliano" peculiar, condicionado, além disso, por sua ideologia literária, na qual o interesse pelo pecado e pela culpa como pressupostos para a descrição das falhas humanas são elementos destacados. Muray, de qualquer fora, é um tipo estranho de católico, desprovido da esperança que se pressupõe aos seguidores de Cristo.

Um Muray sem esperança? De todo resto, talvez tenha sobre certas possibilidades de que a modernidade se autodestrua. Moderno contra moderno...

Muray, um superstar?

Vários anos depois de sua morte, Muray tornou-se em referência intelectual da moda em seu país. Em uma ironia previsível festivocrata, o Muray "inconformista" foi lançado como um produto do mercado cultural. Seus textos são lidos no teatro e as tiragens de seus livros se multiplicam. Um paradoxo que se explica na medida em que sua obra responde a uma demanda latente: a de converter a idade do vazio em material literário e além disso, rir com isso. Muray - esse estraga-festas vocacional - transforma o idioma francês em uma festa, retorce-o em jogos de palavras e em neologismos de uma comicidade nunca vista, e forja um novo vocabulário para descrever uma época privada de toda forma, de toda razão e de toda beleza. A época do Homo Festivus. Muray é, nesse sentido, muito dependente da língua francesa. Sua retórica eficaz e estética sempre será prejudicada por melhor que seja a tradução.

Muray é um escritor, não um ideólogo ou filósofo. Não trabalha sobre as causas do que escreve. Não busca soluções ou receitas. Não é objetivo. Não se oculta atrás da solidez dos argumentos - como se supõe que o intelectual faria. Ele é demasiado brilhante, demasiado protagonista. O exagero - a redução ao absurdo - é uma de suas armas. E com ela retoma a grande tradição volteriana que combina elegância formal e ferocidade com a caricatura, para ridicularizar assim os novos dogmas, moralismos e hipocrisias. Sua obra é uma Comédia Humana do início da pós-história. Uma criação filosófica e política, mas antes de tudo, artística e literária.

E é aí que os fariseus tentam embalsamá-lo. Chegado o reconhecimento e a fama, é preciso desativá-lo, normalizá-lo. Uma velha história. Os sessenta-e-oitocistas se alinharam com um Nietzsche libertário e jogam nessa medida, abandonaram seu lado desconfortável - seu aristocratismo, seu antidemocratismo. De Philippe Muray se prentede agora fazer dele um antimoderno a la moda, um dandi reacionário com um fundo encantador; um enfant terrible que se tolera os deslizes, um esteta provocador para ser colocado nas prateleiras da cultura-espetáculo.

É uma tentativa de traduzir um desconforto crescente. A verdade é que, hoje, a intelectualidade francesa já não se encontra onde supostamente deveria estar - na militância bem-pensante da esquerda divina - mas em outra história. O discurso de Philippe Muray não é um fenômeno isolado. Encontra-se seus ecos filosóficos e literários em autores como Jean Braudillard, Marcel Gauchet, Houellebecq, Alain Filkienkraut, Jean Clair, Jean Claude Michéa, Gilles Lipovetski, Renaud Camus, Richard Millet... o que não é estranho. É na França hoje onde os processos de engenharia social mais se aceleraram, até torná-la irreconhecível. É na França onde a ditadura do pensamento único se fez mais rigoroso, precisamente ali onde o pensamento crítico e a liberdade de espírito são tradições seculares. Não é estranho também que seja na França onde se levanta as primeiras dissidências importantes - também as resistências mais ruidosas - contra o novo mundo que se ergue contra as ruínas da antiga civilização europeia e seus valores.

Toda dissidência autêntica consiste em uma lição de como estar no mundo sem pertencer a ele. Apesar de que, aos "recuperadores", a mensagem de Muray - para quem quiser escutá-lo - é radical: não pode haver compromisso com o mundo contemporâneo, há de rejeitá-lo em bloco. Isso não significa pregar o desânimo. Ao contrário. Graças a Muray sabemos que a rejeição a Festa é também uma invocação a alegria. A alegria da lucidez e o jubilo da inteligência. Ambas libertam e são dificilmente progressistas. 



Artigo escrito por Rodrigo Agulló El Manifesto

Nenhum comentário:

Postar um comentário