sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Pensamento orgânico e a Trindade Cristã (por Vladimir Solovyov)

Devemos notar que a idéia geral da triunidade de Deus, por ser tanto uma verdade da razão especulativa como da revelação, nunca encontrou objeções dos mais profundos representantes da filosofia especulativa. Ao contrário, não só aceitaram essa idéia, mas aceitaram-na entusiasticamente como o maior triunfo do pensamento especulativo. Essa idéia parecia incompreensível ou simplesmente absurda apenas para o intelecto externo, mecanicista, racionalista. Este intelecto não considera a conexão interior das coisas em seu ser integral, não discerne o uno no múltiplo e a auto-diferenciação no uno.  Em vez disso, concebe todos os objetos em sua exclusividade parcial abstrata, em sua suposta separação e em sua inter-relação externa nas formas de espaço e tempo. A atitude negativa de tal intelecto em relação à idéia de triunidade serve apenas para confirmar sua verdade, pois essa atitude depende da incapacidade geral do pensamento mecânico de apreender a verdade interior ou o significado (logos) dos objetos.


O pensamento mecânico toma os conceitos em sua separação abstrata, considera os objetos sob uma definição particular, parcial, e então contrasta uns com os outros de maneira externa ou os compara em uma conexão igualmente parcial mas mais geral. Em contraste, o pensamento orgânico considera um objeto em sua integridade total e, consequentemente, em seu vínculo interno com todos os outros objetos. Isso permite deduzir dentro de cada conceito todos os outros ou desenvolver um único conceito na plenitude de toda a verdade. Portanto, o pensamento orgânico pode ser chamado de um tipo de pensamento em desenvolvimento ou em expansão, enquanto que o pensamento mecânico (racionalista) é apenas um tipo de pensamento contrastante e combinatório.

É fácil ver que o pensamento orgânico, que percebe ou apreende a idéia integral de um objeto, é realmente aquela intuição intelectual ou ideal que foi discutida na palestra anterior. Se esta intuição está unida com uma consciência clara e é acompanhada de reflexão, que dá definições lógicas da verdade intuída, temos aquele pensamento especulativo que caracteriza a arte filosófica. Se, no entanto, o pensamento especulativo permanece em sua imediação e não reveste seus padrões concretos em formas lógicas, este é o tipo de pensamento vivo característico de pessoas que ainda não emergiram da vida não-reflexiva em sua unidade tribal ou nacional. Tal pensamento expressa o que se chama o espírito popular, que se manifesta na criação popular na arte e na religião - no desenvolvimento vivo da linguagem, nos mitos e superstições, nos modos de vida e tradições, nos contos e canções populares e assim por diante.

Em seus dois aspectos, o pensamento orgânico pertence, por um lado, aos verdadeiros filósofos e, por outro, ao povo. Entre estes dois grupos está a maioria dos supostos educados ou pessoas esclarecidas, que, como resultado de um maior desenvolvimento formal da atividade intelectual, se desprendem da visão de mundo das massas, mas que não alcançaram um consciência filosófica integral. Essas chamadas pessoas esclarecidas estão limitadas ao pensamento mecânico abstrato que rompe ou diferencia (analisa) a realidade imediata (e isso constitui o significado e o mérito de tal pensamento), mas elas não estão em posição de lhe dar uma nova, mais elevada, unidade e união; esta é a sua limitação. Certamente, é possível (e, na realidade, acontece com frequência) que pessoas desse grupo, guiadas na vida prática pelas idéias do pensamento orgânico de outras pessoas sob a forma de crenças religiosas, tomem o ponto de vista do intelecto abstrato e mecânico em suas atividades teóricas. É claro que, como resultado, surge um dualismo e uma contradição em sua cosmovisão geral, uma contradição mais ou menos analisada ou reconciliada de maneira exterior. 

Tal dualismo naturalmente apareceu também no cristianismo. Isso ocorreu quando a doutrina cristã, que pertence inteiramente ao domínio do pensamento orgânico em ambos os seus aspectos, tornou-se a religião universalmente reconhecida não só para o povo e os teósofos, mas também para toda a classe educada daqueles dias. Pessoas dessa classe apareceram naturalmente em todos os níveis da hierarquia cristã. Eles aceitaram sinceramente as idéias cristãs como o dogma da fé, mas sendo seu ponto de vista o pensamento mecânico, eram incapazes de entender a verdade especulativa dessas idéias. Por isso, vemos que muitos mestres da Igreja consideravam os dogmas cristãos, especialmente o dogma fundamental da Santíssima Trindade, como algo insondável para a razão humana. Seria completamente infundado usar a autoridade desses mestres da Igreja para argumentar contra a afirmação do dogma da Santíssima Trindade no sentido de uma verdade especulativa. Evidentemente, esses mestres, embora grandiosos em sua sabedoria prática em relação aos assuntos da Igreja ou em santidade, poderiam ter sido fracos no domínio da compreensão filosófica e, naturalmente, poderiam se inclinar em considerar os limites de seu próprio pensamento como os limites da razão humana no geral. Por outro lado, entre os grandes pais da Igreja, houve muitos filósofos genuínos que não só reconheceram a verdade especulativa profunda no dogma da Santíssima Trindade, mas até eles mesmos fizeram muito para o desenvolvimento e a explicação desta verdade.
 


Ainda assim, há um sentido em que devemos admitir que a triunidade de Deus é completamente insondável para a razão: devemos admitir que a triunidade, sendo uma relação atual e essencial entre os seres vivos, sendo a vida interior daquilo que é, não pode ser revestida, totalmente expressa, ou esgotada por quaisquer definição racional. Pelo seu próprio conceito, as definições racionais expressam sempre apenas o aspecto do ser geral e formal, e não o essencial e material. Definições racionais e categorias expressam apenas a objetividade ou cognoscibilidade de uma entidade, não seu próprio ser subjetivo, interior e vida. Claramente, este tipo de incompreensibilidade, que brota da própria natureza da razão em geral como uma faculdade formal, não pode ser atribuída a qualquer limitação da razão humana. Pois qualquer razão, seja qual for, é limitada, enquanto razão, na compreensão do aspecto lógico de um existente, seu conceito (logos), ou sua relação geral com o todo; de modo algum a razão pode compreender o existente em sua realidade imediata, singular e subjetiva. Além disso, é claro que não só a vida da entidade divina, mas também a vida de qualquer criatura é insondável neste sentido, pois nenhuma entidade está, como tal, esgotada pelo seu aspecto formal objetivo, pelo seu conceito. Como existente, uma entidade necessariamente tem seu próprio aspecto interior, subjetivo, que constitui o próprio ato de sua existência, no qual é algo absolutamente singular e único, algo totalmente inexprimível; a partir deste ponto de vista, uma entidade é sempre outra coisa para a razão, algo que não pode entrar na esfera da razão, algo irracional.
Portanto, a Divindade no céu e a menor folha de grama na terra são igualmente insondáveis, e igualmente compreensíveis para a razão. Em seu ser comum, enquanto conceitos, ambos constituem um objeto de pensamento puro, estão totalmente sujeitos a definições lógicas, e neste sentido são totalmente inteligíveis e compreensíveis para a razão. No entanto, em seu próprio ser, enquanto existente, mas não como concebível, ambos são algo mais elevado que um conceito e estão além dos limites do racional enquanto tal. Neste sentido, são impenetráveis, ou insondáveis, para a razão.

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