terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Notas sobre a teoria da Evolução das Espécies (por Christos Yannaras)

Graças aos avanços na genética, o princípio da evolução das espécie, atualmente, é compreendido de modo bastante diferente daquele que determinou a teoria de Darwin. Darwin não tinha conhecimento do mecanismo da hereditariedade. Hoje sabemos que aquilo que um organismo transmite para seus descendentes através da reprodução são seus genes, isto é, instruções codificadas, ou "pacotes" de informações. A necessidade para adaptar-se ao ambiente, a função da seleção natural, não é capaz de conduzir indivíduos de uma espécie a criar nova informação, mas apenas "passar" a informação genética, assim, então, modificando o estoque original de genes.

Uma população de plantas, por exemplo, possui um certo número de genes que determinam o tamanho das raízes. Depois de um longo período, se as plantas encontrarem-se em um ambiente seco, aquelas com as raízes mais longas, um traço que as permite captar água e sais de uma profundidade maior, serão aquelas que sobreviverão. Assim, os genes responsáveis pelas raízes curtas terão uma menor chance de sobreviver e de serem herdados. Após certo período, nenhuma das plantas desta população específica possuirá os genes para raízes curtas, porque apenas as plantas com as raízes longas terão sobrevivido. A informação para raízes longas estava nos genes da população ancestral. A adaptação ao ambiente, ou o desenvolver da seleção natural, não evocou uma informação nova ou adicional mas reduziu a quantidade de informação. Aquelas plantas que tornaram-se capazes de sobreviver em um ambiente seco transmitiram uma parte da informação genética que os ancestrais individuais da espécie possuíam; o preço da adaptação é a perda definitiva de informação nessas plantas. Se o ambiente das plantas tornar-se mais uma vez úmido e as raízes curtas tornarem-se indispensáveis para a sobrevivência, a informação genética (ou genes) das raízes curtas não reaparecerá, e aquela população particular não será capaz de adaptar-se nas novas condições.

Essa forma de adaptação ao ambiente foi considerado por Darwin como um processo que funcionava de maneira ilimitada e portanto era a causa de variações significativas nos organismos vivos. Pelo fato de que num período de tempo relativamente curto novas variedades de uma espécie particular podiam aparecer, então em um período muito mais longo de tempo, por exemplo, milhões de anos, novos grupos taxonômicos de espécies poderiam ser formados - pássaros poderiam emergir de répteis, anfíbios de peixes e assim adiante.

Com a descoberta e o estudo das funções dos genes e da composição do DNA, tais possibilidades foram descartadas - uma transição evolucionária de uma espécie em outra não é possível. Essa impossibilidade emerge simplesmente da aplicação de métodos estatísticos para a análise de possibilidades evolucionárias (a metodologia da biologia matemática molecular). A probabilidade de transição de uma espécie para outra pressupõe um número inconcebivelmente grande de mudanças sincronizadas, mudanças especializadas nos genes, codificações precisamente coincidentais mas completamente ao acaso (DNA) de informação genética - mutações ao acaso e novas combinações de genes reprodutivos - de tal forma que apenas o período de tempo em que existiu vida na terra - ou mesmo o período de tempo toda a história do universo (cerca de quinze bilhões de anos) - não seria suficiente para que elas ocorressem. 

Mais especificamente, para um novo organismo nascer, certa mudança aleatória, ou "acaso", ocorre no código genético, ou DNA, nos 1010 núcleos que o compõe. As mudanças são aleatórias porque apenas essas são transmitidas: características adquiridas não são herdadas - isto é, elas não contribuem para novas informações genéticas (se algum animal perde um olho isso não significa que algum descendente nascerá só com um olho). Mudanças aleatórias criam um novo código, que determinam novas características herdáveis. Se as novas características ocorrerem, novamente pelo acaso, sendo bem sucedidas do ponto de vista da adaptação natural, então o novo organismo que emergir sobreviverá e com isso um novo código genético, ou set de DNA surgirá. Se caso ocorrer o contrário, tanto o organismo como o código desaparecerá.

Se nós calcularmos quanto desses códigos aleatórios (DNA) devem passar pelo teste da seleção natural para que a vida possa evoluir de um organismo unicelular até os seres humanos (como os Darwinistas alegam) - códigos suficientemente estáveis e viáveis para constituírem links na cadeia evolucionária da vida - nós podemos afirmar aquilo que dissemos acima, ou seja, que até mesmo a idade do universo nos fornece um intervalo de tempo insuficiente.

Fundamentando-se na biologia matemática molecular, a teoria da evolução das espécies baseada em mudanças genéticas ao acaso, ou em provas e no controle através da seleção natural, não parece mais ser cientificamente válida atualmente. Recorrer a uma operação sinérgica da seleção natural e puro acaso exige mais por uma linha de pesquisa metafísica do que científica.


Christos Yannaras no livro Relational Ontology

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

A Dimensão Interior da Peregrinação ao Monte Atos (por Marco Toti)

"O grande caminho é algo que parece sem fim: é como um sonho humano, a nostalgia do infinito"
F.M. Dostoiévski, Os Demônios

A dimensão interna da peregrinação está inextricavelmente ligada a algumas noções pertencentes ao vocabulário técnico mais antigo do monaquismo, particularmente o latim peregrinatio (grego xeniteía), a condição de viver vagando como um estranho que, herdado pelo estoicismo, toma amerimnía (Grego para a "ausência de preocupações") e, possivelmente, hesychía (grego para a "paz espiritual", o latim quies) como seu objetivo. Além disso, está intimamente ligado com o simbolismo do centro, um fato que permite compreender a relação entre peregrinação e o mundo moderno, e algumas versões contemporâneas do primeiro.

O objetivo mais profundo de toda peregrinação é encontrar o lar - há muito abandonado - mais uma vez. A vida cristã é notavelmente uma constante peregrinação à "pátria perdida", vivida principalmente no próprio coração. A saudade que todo homem carrega em seus olhos pela dramática perda provocada pelo pecado original - um sentimento mais ou menos escondido pela realidade externa - pode ser efetivamente suavizada pela luz que irradia do Monte Athos. Eu vi essa luz nos rostos surpreendentemente doces, delicados e inocentes de alguns monges atonitas, especialmente no rosto de um romeno do mosteiro de São Paulo, que agora vive no skete Lakkou. Voltarei ao tema dos rostos e das aparências dos monges atonitas, na minha opinião a característica mais marcante da Montanha Santa.

A peregrinação, como expressão formalizada - mas nunca completamente institucionalizada - da antiga idéia de peregrinatio, é uma forma de ascetismo individual e coletivo que visa a metanóia (grego para 'arrependimento', 'mudança dos noûs'). Como autêntica fuga mundi, é um esforço e uma oferenda de si mesmo, um sacrifício que leva ao desapego das categorias comuns de tempo e espaço. Uma vitória sobre o tempo, capaz de fazer o peregrino sentir, através do encontro com irmãos desconhecidos, a universalidade da Igreja no espaço. A noção de peregrinatio já foi, durante uma época, bastante conhecida no Judaísmo, sendo diretamente fundamentado nas Escrituras: em Gênesis 12:1 Deus pede a Abraão que deixe seu país, seus parentes e o lar de seu pai e fosse para a terra que Ele lhe mostraria. Com a Diáspora, essa tradição era conhecer a espiritualização da condição de estranho, posteriormente atribuída a cada membro do "povo de Deus". Filo de Alexandria interpretou Gênesis 12:1 como a migração do espírito de Abraão (grego ekdemia) do plano sensível para o intelectual - uma interpretação que, por meio de Antonio, influenciou Cassiano e conduziu a hermenêutica interiorizada da xenetéia. Irineu de Lião primeiro usou o verbo xeniteúo, passando o termo para Ambrósio, Antonio e Gregório de Nissa. Além disso, é fundamental ter em mente que em um dos textos mais significativos do cristianismo antigo, a Carta a Diognetus, o autor diz que "toda terra estrangeira é para os cristãos um país e todo país é uma terra estrangeira. Os cristãos vivem no mundo, mas não são do mundo".

No cristianismo primitivo, onde a peregrinatio tinha uma dimensão essencialmente espiritual, a comunidade eclesial era considerada itinerante em todos os lugares (Latin Ecclesia peregrina). Sobre esta questão, o Êxodo no deserto, o lugar escolhido da peregrinatio - sendo ao mesmo tempo vazio e cheio de tentações - foi uma das imagens mais recorrentes para descrever o itinerário da Igreja neste mundo. No entanto, o caráter pessoal e escatológico da idéia de peregrinatio está contida no dizer de Jesus: "E todo aquele que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou mulher, ou filhos, ou terras, por amor de meu nome, receberá cem vezes tanto, e herdará a vida eterna." (Mt 19.29). A antiga idéia de peregrinatio - uma espécie de "monaquismo não institucionalizado", ao passo que o monaquismo pode ser pensado como uma "peregrinatio interior nunca completamente alcançada" - está ligado com os temas do Êxodo, do exílio, da "busca" (por Deus, do noivo para o Cântico, posteriormente pelo Santo Graal e da "oração pura", como no caso do conhecido peregrino russo), a peregrinação aos lugares santos, a renúncia, o desapego e a sequela Christi (Mat.16: 24). Em particular, o tema do Velho Testamento da travessia do Mar Vermelho pode ser interpretado, à luz de São Paulo, como uma saída da carne. Além disso, os apóstolos, depois de renunciarem todas as possessões (grego apotagé), praticaram a xeniteía espalhando-se em diferentes países estrangeiros, com o objetivo de adquirir a disposição ascética correta para proclamar o Evangelho. Tornar-se um estranho por causa de Deus (grego xeniteúein dià tòn Theón) significa se afastar de todas as paixões mundanas para libertar-se das "incrustações" psíquicas do ego, liberando assim um espaço para a graça divina. De um ponto de vista, isso destaca a dimensão negativa da existência espiritual - representada, nas palavras de São João Clímaco, pela 'sabedoria não-reconhecida', a 'compreensão não divulgada', a 'vida oculta' produzida pela xeniteía. De outro, enfatiza a substância do cristianismo, uma espiritualidade que transforma as leis do mundo de cabeça para baixo para reagir contra a reversão produzida pela queda. Deste ponto de vista, o cristão oriental e especialmente o russo "louco por Deus" - louco porque totalmente desprovido de preocupações mundanas - é um exemplo iluminador. A vida itinerante do monge-peregrinus geralmente dá origem ao desdém das pessoas e fortalece a relação entre andar no húmus (latim para 'solo') e alcançar humilitas (latim para 'humildade'). Cortar os sulcos no "solo da humildade" é o objetivo principal do monge, e é digno de nota que o solo e a humildade - estes últimos sendo melhor representados, na tradição cristã, pela Virgem - são duas realidades eminentemente femininas, bem como são conectados em latim por uma relação etimológica óbvia.

O monasticismo, que surgiu quando a institucionalização da Igreja arriscava negar seu caráter real tornando-o mundano, faz uso da condição de viver como um estranho (xenos grego, peregrinus latino; Simeão, o Novo Teólogo, disse que um monge tinha de ser um "estranho para o mundo", grego xenos toû kosmoû), a fim de cortar todas as relações humanas e profanas, que arriscam separar o monge de Deus, e para obter a libertação espiritual da sujeição às coisas mundanas e paixões. A definição de xeniteía de São João Clímaco como "uma renúncia irrevogável de tudo no ambiente familiar que impede a pessoa de alcançar o ideal de santidade" é, neste respeito, esclarecedora. Do ponto de vista monástico, a aproximação de Deus só pode é alcançada através da eliminação de tudo o que é "familiar" e, portanto, "apaixonado", mergulhando em um ambiente onde não se possui relações.

Como A. Guillaumont disse sobre o desenraizamento do indivíduo de seu lugar de nascimento como um meio de conversão, "le changement de vie est lié à un changement de lieu". Este é o "caminho estreito" do Evangelho (Mateus 7:14), uma forma de "guerra espiritual" comparável o jihad islâmica al-akbar ("grande guerra santa" em árabe). O caráter guerreiro desta forma de ascetismo é claramente demonstrado pela origem militar do termo xeniteía: aquilo que é uma atitude positiva para as pessoas comuns - afeto pela sua pátria - acaba por ser uma "paixão" para os monges, não sendo um mal em si, mas um obstáculo no caminho para Deus. Neste sentido, a xeniteía está em oposição à parrhesía, "familiaridade com o mundo" ou "cair no hábito", que inexoravelmente e secretamente corroe a kénosis (grego para a "esfaziamento espiritual") da pessoa; por exemplo, João da Escada definia xeniteía como uma 'disposição sem familiaridade' (grego aparresíaston ethos). Uma das formas mais eloquentes de xeniteia foi aquela de Maximos de Lampsakos, um monge atonita que queimava continuamente as cabanas em que vivia (daí o seu sobrenome Kafsokalivítis, "queimador de cabanas") para escapar do pecado de orgulho causado pela fama que ele desfrutava entre os fiéis. Do ponto de vista comparativo, é significativo que o primeiro grau de ordenação para os monges budistas seja chamado pabbajja, "a partida", a "saída" da condição "secular" anterior. Além disso, no mesmo contexto, a transformação de uma pessoa em um asceta ocorre através da "a partida do lar na direção de um caminho sem lar".

 A peregrinação é um ritual e um ato radicalmente centrípeto, uma busca do centro espiritual sem o qual a vida não tem sentido ou é reduzida a uma fuga infrutífera. Enquanto ocidentais, perdemos quase completamente o significado do simbolismo do centro. É incompreensível para nós o fato de que alguns povos primitivos, quando se afastavam de suas terras de extração, carregassem um polo com eles,  a fim de sempre estar no "centro" do mundo; eles entendiam que a excentricidade produz a erradicação. Muitas obras literárias e artísticas ocidentais contemporâneas testemunham essa perda dramática. Em particular, a 'obsessão em viajar'- eminentemente expressa pelas palavras de J. Kerouac "precisamos ir" - e a tendência de desenraizamento mostrado pelos beatniks americanos na década de 1950 - ligada ao tema do "exílio voluntário" como uma forma de ascetismo - são exemplos dignos de nota de uma tendência que consiste em uma espécie de desvio heterodoxo parcialmente derivado das raízes cristãs da sociedade onde a geração "beat" emergiu. Além disso, o mito americano da fronteira - que influenciou fortemente os beats - representa a profanação inconsciente da interioridade humana por um movimento que é potencialmente ilimitado e desprovido de uma orientação superior. Neste caso, é correto falar, não tanto de "andarilho", mas de "vaguear", uma degeneração da técnica espiritual xeniteia, uma vez que os nômades ocidentais modernos, não preparados para uma utilização ascética da itinerância, seguem sua própria vontade e só querem partir para preencher um vazio existencial. Para eles, a viagem é apenas um substituto para as drogas e as criações de produção de imagem de nossa civilização. Pelo contrário, o peregrinus sabe o objeto de sua peregrinatio ou peregrinação, e ele é apenas superficialmente um vagabundo. A obsessão moderna com a viagem é em parte uma degeneração do peregrinatio, sendo muitas vezes apenas uma reação estéril a atmosfera anestesiada e alienante da vida contemporânea ou, no pior dos casos, uma fuga das próprias responsabilidades. Por outro lado, um exemplo maravilhoso de peregrinos espirituais em movimento contínuo são os stranniki Russa ( 'estranhos', 'peregrinos'), que passam a vida visitar santuários, mosteiros e igrejas, um excelente exemplo sendo o peregrino russo acima referido e sua "viagem iniciática". O peregrino russo parece pertencer à categoria do Problemwanderer (alemão para "solucionadores de problemas [espirituais]"): os stranniki 'tomam o grande caminho não apenas para realizar um podvig ['grande esforço espiritual' em russo], mas para aliviar a ansiedade que assedia sua existência'. Isso atesta o fato de que o peregrino-estranho precisa quebrar incessantemente as relações mundanas através de um contínuo iter que é uma progressão interior sem fim, utilizando as palavras de Gregório de Nyssa, epéktasis (uma palavra grega que significa uma espécie de "tensão infinita" direcionada à perfeição cristã), com o fim inalcançável sendo "Aquele que está presente no início, no caminho e no fim do mundo".


O Monte Athos é, sem dúvida, um dos principais reservatórios do cristianismo tradicional, em termos gerais, um "centro espiritual" discreto mas muito resistente. A este respeito, o monge romeno A. Scrima (1925-2000) falou brilhantemente de uma

topologia do encobrimento:  há lugares, centros, onde a tradição tem suas fontes, com guardas, vigilantes, sentinelas, homens investidos com uma responsabilidade especial: lugares cautelosamente 'preservados' [...] A consciência [...] e o testemunho de tal região [das fontes da tradição] integram a ortodoxia [...] no que eu chamo de tradição oriental, que se espalha até as fronteiras [...] da Ásia. São assonâncias específicas provenientes de sua orientação comum, na consciência do centro que existe, mutatis mutandis, em outras tradições situadas sob o signo do Oriente.
Não tenho dúvida de que ao escrever esta passagem Scrima estava pensando, em relação à tradição cristã, também do Monte Athos.

A dimensão interior da peregrinação foi sutilmente destacada pelo monge romeno que, sem seu livro Timpul Rugului Aprins (O Tempo da Sarça Ardente, em romeno), afirmou que 'o monge é um enviado no caminho, partindo neste caminho sem ter em mente um destino terrestre para chegar a fim de estabelecer-se permanentemente. O monge é essencialmente um enviado, um enviado estrangeiro'. Além de ter chegado a este mundo como um estranho que "não tem onde reclinar a cabeça" (Mt 8:20), o nome de "estranho" é explicitamente atribuído a Cristo após sua ressurreição: "Você é o único estranho em Jerusalém...?" (Lucas 24: 18), uma característica que está intimamente ligada com a revelação contínua de outras significações espirituais. O 'excesso ontológico, irredutível' que Cristo carrega em si descreve Sua qualidade de 'estranho' e é uma 'compensação' pela fraqueza constitutiva humana, a imposição de Seu conhecimento àqueles que não O reconhecem. Os 'buscadores' encontraram Deus porque Ele os encontra primeiro: os discípulos procuravam por Jesus e, antes de encontrá-Lo, Ele os encontrou. De acordo com parte de um hadith muçulmano, Deus disse: 'Aquele que me ama procura por mim. Aquele que me procura, eu o encontrei ". Além disso, "o peregrino, o monge e o enviado estrangeiro são viajantes e sedentários, os que 'permanecem firmes'". Esta é precisamente a postura hesicasta, um abrir-se em direção aos outros e, sobretudo, um abrir-se em direção ao zênite. Tal interpretação atualiza a própria postura do hesicasta: sedebit solitarius et tacebit. Ele permanece parado e está, simultaneamente, em perpétua passagem. Isso não é de modo algum um oximoro, mas uma justaposição absolutamente necessária em nossa condição de finitude no espaço e no tempo. Dada a estrutura de nossa condição física, para sermos estáveis, devemos estar em movimento: "Quem está de pé deve ter cuidado para não cair". "Estabilidade" neste sentido significa uma realização interior, não apenas dentro do ser pessoal, mas dentro do ser espiritual. Como tal, significa um desdobrar no espírito além dos limites da pessoa individual; é, ao mesmo tempo, um envolvimento e um desenvolvimento.
Aqui o autor está interessado com um ponto central da hermenêutica espiritual da peregrinação que é, como já foi dito, um símbolo da vida cristã e mais especialmente do monaquismo: a relação entre peregrinatio e stabilitas, movimento e estabilidade, bem representado na figura e na função do pai espiritual (geron em grego, starets em russo, shaykh em árabe, guru em sânscrito), que se mantém como um enviado, segundo a combinação paradoxal de itinerância e imobilidade: 'o monge é estável somente quando ele mantém-se em movimento [...] recusando cada [...] solidificação ([...] aqui está a diferença entre o pai espiritual e o confessor clássico, sendo este último necessariamente mais estável, "estabelecido")'. A compatibilidade de peregrinatio com estabilitas é possível se o primeiro é considerado em uma perspectiva espiritual: a idéia de uma peregrinatio in stabilitate, bem conhecida no monaquismo latino medieval, é o resultado do processo de interiorização da xeniteía, realizado no monaquismo egípcio. Do mesmo modo, a necessidade de espiritualizar a peregrinatio corresponde, nas palavras de P. Evdokimov, à necessidade de um "monaquismo interiorizado" no "deserto das cidades contemporâneas". O devir é uma forma, uma manifestação do Ser: de outro ponto de vista, "a existência não é senão uma imagem móvel da estabilidade". Paradoxalmente, a estabilidade em Deus pode ser alcançada através da andança contínua que recusa toda relação e compromisso com o mundo, especialmente porque o desapego à vida comum torna os perigos mais evidentes - e, consequentemente, a dependência de Deus mais perceptível. O movimento e a estabilidade são respectivamente representados pelos símbolos complementares, mas radicalmente distintos, o círculo e o quadrado, "as duas figuras essenciais para a aparência do mundo", que se referem ao dinamismo e à firmeza da realidade.

A peregrinação tradicional ao Monte Athos é constantemente ameaçada pela penetração das conveniências modernas que, discreta mas profundamente, tornam a vida na Montanha Santa cada vez mais confortável - e, portanto, cada vez menos dirigida à consciência do homem em sua radical dependência de Deus. Desta forma, a tecnologia pode ser pensada como uma forma moderna de Titanismo baseada na interpretação errônea de Gênesis 1: 28. Em 1977, Philip Sherrard, conhecido principalmente pela sua excelente tradução da Filocalia do grego para o inglês (em colaboração com Gerald Palmer e o Metropolita Kallistos Ware), apelou contra essa modernização imprópria, dizendo que "os caminhos de Athos - aqueles veneráveis ​​caminhos pelos quais os pés de incontáveis ​​monges e peregrinos caminharam por mil anos e mais - estão desaparecendo. Por um processo que remonta à década de 1950, novos meios de transporte, que em grande parte substituíram as tradicionais trilhas ou trilhos de mulas, fizeram com que "todo o ritmo e padrão de movimento em Athos" fosse "completamente alterado".  As palavras de Sherrard soam claras: por causa da introdução de tecnologias modernas em Athos,
o sentido, a própria possibilidade, da peregrinação, é debilitado, se não destruído. Há toda uma psicologia, até mesmo uma completa doutrina, da peregrinação [...] a peregrinação não é simplesmente uma questão de chegar a um determinado santuário ou em um lugar sagrado. Trata-se de uma renúncia deliberada e da entrega de suas condições habituais de conforto, rotina, segurança, conveniência [...] o peregrino parte em uma busca que é tanto interior quanto exterior, e está, em diferentes graus, no desconhecido. Nesse sentido, ele se torna a imagem do buscador espiritual [...] Dessa exploração espiritual, interior e exterior, o andar é uma parte essencial. Seus pés pisam a terra da qual ele é feito e de onde ele normalmente é tão desligado, especialmente nas condições urbanas quase totalizantes da vida moderna [...] O ponto crucial em tudo isso é que uma peregrinação é um processo que não deve ser apressado.
Aqui a oposição entre peregrinação e viagem moderna - e as disposições psicológicas incompatíveis na raiz das duas - é muito evidente: enquanto a peregrinação é um esforço espiritual e físico, um sacrifício, até mesmo uma áskesis ("exercício" em grego), a viagem moderna é geralmente confortável e feita simplesmente por curiosidade estética pelo exótico e pelo o que acabamos de chamar de "perda do centro".

Em conclusão, gostaria de dedicar algumas palavras à minha experiência pessoal como peregrino à Montanha Sagrada. Em 2005, entre o final de agosto e início de setembro, tive o privilégio de fazer minha primeira viagem ao Monte Athos. Além da maravilhosa liturgia e a arte de Athos, houve dois inesquecíveis "destaques" da jornada. A primeira foi uma "peregrinação" para Kafsokalivia. Acompanhado por dois amigos, tomei o caminho de Santa Anna até o skete muito isolado localizado na área conhecida como o "deserto Athonita", na ponta sul da península da Montanha.  Foram necessárias sete horas, e dizer que chegar lá foi cansativo é um atenuação grosseira. Inicialmente, senti uma grande decepção naquela atmosfera precária e pela indiferença mostrada pelos monges. No entanto, depois de adaptado ao ambiente estranho e conhecido um pintor de ícones e um hesicasta idoso - Kafsokalivia é considerado um dos principais centros de iconografia e do Hesicasmo na Montanha Santa - algo alvoreceu em mim. Percebi que não era uma questão de indiferença, mas de desapego. Eu gostaria de voltar a Kafsokalivia, um lugar onde eu encontrei uma presença delicada, discreta, algo que eu nem sequer posso dizer de Athos em si.


Outro destaque foram os movimentos, gestos, faces e olhares de alguns dos monges que encontrei no caminho. No Hesicasmo, o devoto, invocando uma fórmula dotada de sentido para fins ascéticos, num contexto caracterizado por uma conotação "afetiva" (mas não sentimental), pretende estabelecer uma relação pessoal com Jesus Cristo. A noção de "pessoa", estabelecida pela jurisprudência romana, recebeu substanciais contribuições teológicas e antropológicas do cristianismo. Baseando-se na clássica definição de Boécio, 'rationalis naturae individua substantia',  tornou-se cada vez mais explícito os seus próprios aspectos constitutivos de relação, de incomunicabilidade, de autoconsciência, da liberdade, dos deveres, dos direitos e das dignidades inalienáveis. A face de Deus, que é a pessoa do Filho, pode ser pensado como uma 'proteção', uma 'cobertura' do nível apofático inatingível do transcendente. Portanto, a personalidade se define, na origem latina do termo (que significa 'máscara'), como a face de Deus voltada para o homem - que resulta na possibilidade de uma relação concreta entre os dois - e, ao mesmo tempo, como a máscara da essência divina inacessível (ousía em grego). Na exegese tradicional, "face" e "olhar" referem-se às noções bíblicas de "imagem" e "semelhança": o olhar é, segundo P. Florensky, "a semelhança com Deus apreendida no rosto".  Em Athos, encontrei a prova do que o grande teólogo ortodoxo escreveu uma vez: "os santos testemunham Deus através da ação misteriosa, eles testemunham através de seus olhares".

The Inner Dimension of Pilgrimage to Mount Athos - Marco Toti

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Pensamento orgânico e a Trindade Cristã (por Vladimir Solovyov)

Devemos notar que a idéia geral da triunidade de Deus, por ser tanto uma verdade da razão especulativa como da revelação, nunca encontrou objeções dos mais profundos representantes da filosofia especulativa. Ao contrário, não só aceitaram essa idéia, mas aceitaram-na entusiasticamente como o maior triunfo do pensamento especulativo. Essa idéia parecia incompreensível ou simplesmente absurda apenas para o intelecto externo, mecanicista, racionalista. Este intelecto não considera a conexão interior das coisas em seu ser integral, não discerne o uno no múltiplo e a auto-diferenciação no uno.  Em vez disso, concebe todos os objetos em sua exclusividade parcial abstrata, em sua suposta separação e em sua inter-relação externa nas formas de espaço e tempo. A atitude negativa de tal intelecto em relação à idéia de triunidade serve apenas para confirmar sua verdade, pois essa atitude depende da incapacidade geral do pensamento mecânico de apreender a verdade interior ou o significado (logos) dos objetos.


O pensamento mecânico toma os conceitos em sua separação abstrata, considera os objetos sob uma definição particular, parcial, e então contrasta uns com os outros de maneira externa ou os compara em uma conexão igualmente parcial mas mais geral. Em contraste, o pensamento orgânico considera um objeto em sua integridade total e, consequentemente, em seu vínculo interno com todos os outros objetos. Isso permite deduzir dentro de cada conceito todos os outros ou desenvolver um único conceito na plenitude de toda a verdade. Portanto, o pensamento orgânico pode ser chamado de um tipo de pensamento em desenvolvimento ou em expansão, enquanto que o pensamento mecânico (racionalista) é apenas um tipo de pensamento contrastante e combinatório.

É fácil ver que o pensamento orgânico, que percebe ou apreende a idéia integral de um objeto, é realmente aquela intuição intelectual ou ideal que foi discutida na palestra anterior. Se esta intuição está unida com uma consciência clara e é acompanhada de reflexão, que dá definições lógicas da verdade intuída, temos aquele pensamento especulativo que caracteriza a arte filosófica. Se, no entanto, o pensamento especulativo permanece em sua imediação e não reveste seus padrões concretos em formas lógicas, este é o tipo de pensamento vivo característico de pessoas que ainda não emergiram da vida não-reflexiva em sua unidade tribal ou nacional. Tal pensamento expressa o que se chama o espírito popular, que se manifesta na criação popular na arte e na religião - no desenvolvimento vivo da linguagem, nos mitos e superstições, nos modos de vida e tradições, nos contos e canções populares e assim por diante.

Em seus dois aspectos, o pensamento orgânico pertence, por um lado, aos verdadeiros filósofos e, por outro, ao povo. Entre estes dois grupos está a maioria dos supostos educados ou pessoas esclarecidas, que, como resultado de um maior desenvolvimento formal da atividade intelectual, se desprendem da visão de mundo das massas, mas que não alcançaram um consciência filosófica integral. Essas chamadas pessoas esclarecidas estão limitadas ao pensamento mecânico abstrato que rompe ou diferencia (analisa) a realidade imediata (e isso constitui o significado e o mérito de tal pensamento), mas elas não estão em posição de lhe dar uma nova, mais elevada, unidade e união; esta é a sua limitação. Certamente, é possível (e, na realidade, acontece com frequência) que pessoas desse grupo, guiadas na vida prática pelas idéias do pensamento orgânico de outras pessoas sob a forma de crenças religiosas, tomem o ponto de vista do intelecto abstrato e mecânico em suas atividades teóricas. É claro que, como resultado, surge um dualismo e uma contradição em sua cosmovisão geral, uma contradição mais ou menos analisada ou reconciliada de maneira exterior. 

Tal dualismo naturalmente apareceu também no cristianismo. Isso ocorreu quando a doutrina cristã, que pertence inteiramente ao domínio do pensamento orgânico em ambos os seus aspectos, tornou-se a religião universalmente reconhecida não só para o povo e os teósofos, mas também para toda a classe educada daqueles dias. Pessoas dessa classe apareceram naturalmente em todos os níveis da hierarquia cristã. Eles aceitaram sinceramente as idéias cristãs como o dogma da fé, mas sendo seu ponto de vista o pensamento mecânico, eram incapazes de entender a verdade especulativa dessas idéias. Por isso, vemos que muitos mestres da Igreja consideravam os dogmas cristãos, especialmente o dogma fundamental da Santíssima Trindade, como algo insondável para a razão humana. Seria completamente infundado usar a autoridade desses mestres da Igreja para argumentar contra a afirmação do dogma da Santíssima Trindade no sentido de uma verdade especulativa. Evidentemente, esses mestres, embora grandiosos em sua sabedoria prática em relação aos assuntos da Igreja ou em santidade, poderiam ter sido fracos no domínio da compreensão filosófica e, naturalmente, poderiam se inclinar em considerar os limites de seu próprio pensamento como os limites da razão humana no geral. Por outro lado, entre os grandes pais da Igreja, houve muitos filósofos genuínos que não só reconheceram a verdade especulativa profunda no dogma da Santíssima Trindade, mas até eles mesmos fizeram muito para o desenvolvimento e a explicação desta verdade.
 


Ainda assim, há um sentido em que devemos admitir que a triunidade de Deus é completamente insondável para a razão: devemos admitir que a triunidade, sendo uma relação atual e essencial entre os seres vivos, sendo a vida interior daquilo que é, não pode ser revestida, totalmente expressa, ou esgotada por quaisquer definição racional. Pelo seu próprio conceito, as definições racionais expressam sempre apenas o aspecto do ser geral e formal, e não o essencial e material. Definições racionais e categorias expressam apenas a objetividade ou cognoscibilidade de uma entidade, não seu próprio ser subjetivo, interior e vida. Claramente, este tipo de incompreensibilidade, que brota da própria natureza da razão em geral como uma faculdade formal, não pode ser atribuída a qualquer limitação da razão humana. Pois qualquer razão, seja qual for, é limitada, enquanto razão, na compreensão do aspecto lógico de um existente, seu conceito (logos), ou sua relação geral com o todo; de modo algum a razão pode compreender o existente em sua realidade imediata, singular e subjetiva. Além disso, é claro que não só a vida da entidade divina, mas também a vida de qualquer criatura é insondável neste sentido, pois nenhuma entidade está, como tal, esgotada pelo seu aspecto formal objetivo, pelo seu conceito. Como existente, uma entidade necessariamente tem seu próprio aspecto interior, subjetivo, que constitui o próprio ato de sua existência, no qual é algo absolutamente singular e único, algo totalmente inexprimível; a partir deste ponto de vista, uma entidade é sempre outra coisa para a razão, algo que não pode entrar na esfera da razão, algo irracional.
Portanto, a Divindade no céu e a menor folha de grama na terra são igualmente insondáveis, e igualmente compreensíveis para a razão. Em seu ser comum, enquanto conceitos, ambos constituem um objeto de pensamento puro, estão totalmente sujeitos a definições lógicas, e neste sentido são totalmente inteligíveis e compreensíveis para a razão. No entanto, em seu próprio ser, enquanto existente, mas não como concebível, ambos são algo mais elevado que um conceito e estão além dos limites do racional enquanto tal. Neste sentido, são impenetráveis, ou insondáveis, para a razão.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Aspectos da Subversão (por Jean Bies)

Demagógica por vocação e necessidade, a Subversão encontra terreno nas áreas políticas e sociais. Sabe que suas chances de sucesso são maiores aqui do que em áreas sob controle humano, muito humanos, e que a ordem estabelecida oferece mais deficiências do que qualidades: nenhum regime temporal jamais fez todos felizes. Assim, de certo ponto de vista, as escandalosas prerrogativas da Igreja Romana no final da Idade Média, ou o lento crescimento tecnológico que afetou a Rússia sob o domínio dos czares, ou o Império Médio na China no início do século XX foram capazes de justificar reformas radicais; eram ainda mais destinados ao sucesso, uma vez que as estruturas que atacaram tinham as marcas de desgaste e dilapidação. Mas, assim como um poder atual tende a assumir uma posição mais dura em seus direitos, a negligenciar seus deveres e ceder às tentações hegemônicas, a Subversão também se torna mais questionável a partir do momento em que, embriagada com suas conquistas, revela sua verdadeira natureza e começa a adotar o que desprezou no sistema que está substituindo.

A subversão sempre recorre a linguagem dúbia. Após ter encorajado a desordem por tanto tempo quanto necessário, dedica-se a transmitir sua ordem como a única que é real e justa; ou seja, no caso de resistência passiva e inconsciente, insinuando-se nas mentes pelo condicionamento gradual adaptado às circunstâncias, ou, no caso de resistência ativa, impondo-se sobre eles com força e terror. Em seu plano, faz com que desacreditem antecipadamente tudo o que corre o risco de opor-se a ela. Por exemplo, para contestar a ideia de hierarquia, proclamam a igualdade absoluta entre os homens, mas para fazer isso criarão hierarquia invertidas e paralelas, e quando as anteriores são finalmente destruídas, irão impor suas próprias hierarquias, como as únicas legítimas. Enquanto contestam os princípios do lado oposto, tomarão emprestados quando descobrirem que são eficazes. Deste modo, irão denunciar a castidade dos religiosos como algo sendo antinatural, mas serão capazes de impor aos seus ativistas, não como um método de espiritualização, mas como um treinamento para a rigor moral e a concentração de energia para servir a causa do ideal revolucionário. Isso não irá impedir que corrompam ao mesmo tempo a alma do meio social que querem atacar com sugestões pornográficas e libertinagem. Não agindo abertamente sobre si, a Subversão empurrará todos seus peões em todas cenas da sociedade. Corroerá a sociedade por dentro. Tomarão e usarão a boa vontade daqueles que ignoram como estão sendo usados como instrumentos; especialmente, muitos idealistas e os vagos intelectuais - "os últimos dos imbecis" disse Bernanos - impulsionados pelos ditados do pensamento teórico e por um sentimentalismo ingênuo, sempre prontos parar correr ao resgate de causas falsas. Aqueles que são realmente responsáveis estão, obviamente, por trás, mantendo a guarda para evitar de serem capturados. Em tempos difíceis como esses, é difícil não ficar, inconscientemente, do lado das forças que se despreza ou mesmo que se pretende combater, ainda mais difícil é saber o que eles são.

É fácil observar o processo que, de acordo com as leis cíclicas, permitiu o estabelecimento de classes sociais substituindo as castas, aumentando e reforçando os valores mais baixos e eliminando gradualmente aqueles que impediam ou evitavam a degeneração. Com o enfraquecimento dos indivíduos, as sociedades enfraquecidas veem as forças criativas diminuírem e as referências à fonte transcendente, dispensadora de energia, desaparece. O hábito e a rotina substituem as iniciativas, prejudicam as invenções; o mundo perde o frescor do início da manhã, sua espontaneidade nativa. A destruição das autoridades naturais e o massacre ou suicídio da elite deixam um campo limpo para o desabrochar do obscurantismo. Um revestimento estéril estabelece-se sobre o melhor; o desânimo faz o resto. Os únicos "grandes homens" reconhecidos são recrutados entre os incompetentes. A subversão confia-lhes suas maiores responsabilidades, consultando-os como oráculos infalíveis. A morte de uma estrela transitória e insignificante mergulhará uma nação inteira em desespero; a de um sábio que detém respostas nem sequer será mencionada nos órgãos de informação. Aqueles que ainda seriam capazes de ter certas respostas serão prudentemente deixados de lado como iluminadores e problemáticos; e os denunciadores da Subversão passarão por subversivos! Eles mesmos não farão nada para serem ouvidos, a não ser uma minoria que escapará da supressão, sabendo que em tais graus de cegueira sua mensagem seria importuna, inaudível ou confiscada e que qualquer uso imprudente de energia seria tão inútil quanto uma voz gritando no deserto.

Quando as coisas chegam a este ponto, as fissuras na Grande Muralha se alargam para tornarem-se portas a fim de que as hordas da Subversão possam entrar. Os últimos não tem problemas em satisfazer o que há de mais baixo no ser humano:  a vulgaridade, a mediocridade, a subserviência burocrática mesquinha, o ciúme, todos os elementos apaixonados que estão apenas esperando para serem despertados. Também não tem problemas em tornar as últimas chances de salvação detestáveis, espalhando confusão em confusão, destruindo a perspicácia da mente, seu senso de proporções, e substituindo-os por mitos capitais que só podem ter controle sobre mentes incultas. E, graças às técnicas avançadas, já não é necessário explorar os rumores, a histeria, as recusas e os desvios, para estabelecer um clima de permanente incerteza e instabilidade a fim de desviar os verdadeiros problemas que são e permanecem sendo aqueles da interioridade. Num silêncio trêmulo, numa hipocrisia abafada, o indivíduo já não pensa nem fala; ele será pensado e falado. Mil influências sutis o apertarão, o moldarão, ao mesmo tempo em que o estabelecerão como o responsável e o tomador de decisões.

A Subversão é muito boa em organizar a vida de tal forma que o negócio, bem como o prazer (conhecido como "atividades organizadas") contribuam para diminuir o nível mental do maior número de pessoas possíveis. Ela segrega a incomunicabilidade entre as pessoas: o homem, um estranho para si mesmo, "alienado", só pode ser um estranho para os outros; ela estabelece relações sociais insalubres, marcadas com indiferença ou vigilância recíproca, rancor e brutalidade: os homens da Age de Fer (Idade de Ferro) são eles mesmos en fer (feitos de ferro) - o que os coloca no Enfer (Inferno). Um Inferno que eles impõem aos outros porque que os outros sejam isentos é algo intolerável para eles: Inferno, também, é contagioso. Isso obriga os indivíduos a terem atividades pálidas, sem qualquer interesse real, tirando tanto tempo possível deles - tempo que se torna ainda mais precioso na medida que se esgota - de modo que eles são confrontados o menos possível com eles mesmos, com a memória das "únicas necessidades da vida (solum necessarium)". Tudo é bom, desde que as "únicas necessidades da vida" não sejam servidas, desde que ninguém pense nelas, o que elas significam ou qualquer interesse que possam ter, e que passem como as únicas coisas que são inúteis e desnecessárias. Para desviar o homem, a Subversão multiplicará as preocupações sobre o bem-estar, os conflitos nas relações humanas, as dissensões familiares, a escravidão social, a mediocridade e a mesquinhez, o incomodo do tédio burocrático, as reuniões obrigatórias, as discussões sem fim, o assédio, as perseguições disfarçadas e até as recompensas...


Como um empenho colossal para demolição, ela começa discretamente como rumores modificando as tendências energéticas, provocações e denúncias constantes, e termina com a vasta manipulação de intimidação ideológica, lavagem cerebral, campos de correção, execuções sumárias. Quando a Subversão atingiu seus objetivos, quando toma posse da maquinaria estatal, da força policial, das agências de informações, das editoras, dos departamentos sociais e culturais, das hierarquias sociais, eclesiais, universitárias e militares, quando tudo já pertence, embora nada pareça ainda pertencer, então pode-se considerar que essa sociedade não é nada mais do que uma mera sombra do seu antigo ser. Da mesma forma como a decomposição de um cadáver cujos ossos emergem depois que a carne já desapareceu, as estruturas sociais permanecem, mas a consciência motriz e criativa foi dissolvida e aniquilada. A Subversão se sobressai em misturar a verdade com o erro. Regularmente transmitida às novas gerações, essas falsificações oficiais entronadas, inteligentes ou laboriosas, são vistas então como tradições anti-tradicionais.

 Em parte alguma isso é mais evidente do que no campo da informação universitária. A escolha de autores e textos, as imagens que os ilustram, a omissão de partes embaraçosas, o sublinhado, contribuem para a alteração ou desvio da realidade objetiva. História oferece uma área privilegiada para esse tipo de manipulação de acordo com as opções ideológicas daqueles que a narram. Em história domina-se a arte de isolar os eventos fora de seu contexto, interpretando o comportamento mágico através da mentalidade moderna, condenando-se, assim, a não compreender os acontecimentos, evitando aquilo que iria contra os preconceitos do messianismo progressista.   Foi esquecido, por exemplo, que os erros cometidos pelos imperadores da China eram punidos pela rebelião do povo; quanto aos reis nórdicos, eles eram levados a julgamento em consequência de calamidades sociais, que mostravam sua desqualificação; ou até mesmo sobre a condição das mulheres: elas tinham o direito de votar nas prefeituras medievais. Todo esforço é feito para desprezar qualquer coisa que não atenda às exigências dos dogmas estabelecidos, identificando abusivamente o que é representado e seu representativo. Da mesma forma como a medicina seria condenada sob o pretexto de que existem charlatães, toda religião será condenada por completo por causa de alguns maus monges. Certas correções embaraçosas serão mantidas em silêncio. Imagina-se como é fácil influenciar as mentes jovens que, por definição, são receptivas e maleáveis, ainda privadas de um senso crítico, sensíveis à suposta neutralidade objetiva, mas sem qualquer argumentação contrária. 

Muito mais instrutivo do que a História oficial seria as possíveis investigações na "metapolítica", cujo papel no nível da guerra oculta não pode ser negligenciado. As palavras de Disraeli são bem conhecidas: "O mundo é governado por personagens muito diferentes do que se imagina por aqueles que não estão por trás das cenas." Rapidamente surgiria como trabalho delicado na História a existência de tramas por lealdades rivais, planos projetados e seguidos passo a passo por promotores clandestinos. A desinformação - estranhamente camuflada pela sobrecarga de informação - a desorganização, a destruição dos últimos valores em vista do planejamento da humanidade no nível mais baixo, certamente não são apenas efeitos do acaso, mas a aplicação de uma vontade implacável e de programas concentrados, nos quais a desmoralização daqueles cuja derrota é desejada também está incluída. Sem dúvida, a situação real do mundo requer uma consideração lúcida; e seria enganoso ignorar os aspectos mais ameaçadores. No entanto, tal reconhecimento, se seu único objetivo for para trazer desespero, só poderia servir a Subversão. Deve-se ter por objetivo informar a consciência das pessoas e torná-las conscientes, não para impedir o colapso do império, mas para ficar atento aos sinais daquilo que deve ocorrer.

* * * 
Se olharmos agora para o mundo da arte, veremos que o mundo moderno apresenta a imagem de uma "civilização sem cultura" ou, na melhor das hipóteses, uma "cultura sem conhecimento".

Se ainda existem algumas obras de artes sérias isoladas, o abismo que separa as obras atuais da poesia mística do sufismo ou do teatro elisabetano, das catedrais góticas ou dos templos hindus, e o corpus metafísico tanto do Oriente como do Ocidente, é imenso. Até mesmo a admiração pela conquista científica rapidamente perde seu brilho; "milagres técnicos" já não geram entusiasmo entre as multidões que já estão entediadas ou sempre famintas por outra coisa. O talento é frustrado. Detectável atrás do desperdício da vocação está a visível assinatura da Subversão que sabe muito bem que "com a destruição da inteligência (buddhi) o homem perece."


E isso começa com a destruição da linguagem. O intenso consumo de palavras enfraquece-as, seca o seu sabor. Usá-las sem distinção ou limite esgota seu efeito mágico, sua intensidade e densidade. O recurso sistemático à linguagem grosseira quando não há razão para isso é suposto para substituir os termos usados em excesso, enquanto se espera a sua vez para ser elas mesmas usadas em excesso. A criação de acrônimos às vezes impronunciáveis é multiplicado por expressões abstratas reduzidas a iniciais. As palavras são desviadas de seu significado original, a ponto de significar o contrário; várias línguas são misturadas sem qualquer princípio orientador; os termos mais severos são utilizados para assuntos mais insignificantes; os significados espirituais são utilizados no nível mais profano. Uma técnica ainda mais sutil consiste em remover subrepticiamente um certo número de palavras de dicionários com o pretexto de que elas não estão mais no uso corrente ou são incompreensíveis para a maioria. É arriscado que que essas palavras tragam noções filosóficas ou espirituais; os conceitos que elas englobam desaparecem com elas. O que é praticado no mesmo nível das palavras é praticado com o nome das pessoas. Com a conspiração do silêncio, a verdadeira paródia da "lei dos segredos" praticada nas irmandades iniciáticas, os sistemas e doutrinas que comentem o erro de não seguir o "rumo da História" serão suprimidos. Consequentemente, algumas questões importantes são cuidadosamente omitidas dos debates; os trabalhos de mentes eminentes, precursores condenados à solidão, a retirar-se ao passado e desaparecer da memória; a queda generalizada do pensamento ocorre periodicamente, sem que o público seja informado. 


Nenhum campo é poupado pela Subversão: tudo é de sua conta. Na publicidade, a ortografia é desfigurada e alterada; se fala em livrar-se dela sob pretexto de que contribui para manter a opressão! A natureza aproximativa do estilo e da sintaxe, combinada com a do vocabulário, leva à pobreza e a diminuição de um pensamento incerto e perturbado que reflete uma psique derrotada.  O último enclave de uma linguagem sagrada é a poesia, mas a perda de interesse do público nela é bem conhecida, a não ser que se escolha trancar-se em uma obscuridade ilegível ou na propagação de palavras cancerígenas. Aqui, muitos dos sintomas do fim de uma linguagem estão presentes. No entanto, acontece que o fim de uma linguagem é o fim daqueles que a falam, na medida em que é inerente à sua atitude, psicologia e sensibilidade única.

A "nova música" que só consegue se estabelecer por meio de terrorismo cultural está em um beco sem saída desde a primeira metade do século XX - época em que Schoenberg inventou a "técnica serial". Renunciou-se o sistema de intervalos, à relação hierárquica entre as notas. Sua distinção entre o fundamental, a nota-chave, a nota condutora e a dominante expressava as relações que os sistemas politonais e atonais se emaranhavam sem destruir-se; mas seu desaparecimento arruína qualquer possibilidade de "comunicação". A arte musical contemporânea abunda em colagens sonoras, em peças aleatórias e repetitivas (paródias de encantamentos); multiplica-se as dissonâncias, rompe os ritmos, reproduz-se em seu modo a violência fragmentada da psique ocidental.  Ao integrar os elementos sonoros de origem elétrica, submetidos a tratamentos algébricos, manipulados em laboratórios e programados em computadores, elimina-se qualquer tipo de emoção ou imaginação, qualquer valor terapêutico susceptível de ter efeito sobre o núcleo psíquico do ser humano, como faz a música tradicional. Se esta última é o "som da porta do Céu abrindo e fechando" como se ouve na expressão dos dervixes de Mevlevi (e que certas obras de Messiaen ainda gostariam de imitar), a gravação dos gritos dos condenados, os espasmos ofegantes da humanidade arremessada pela onda de choque de uma explosão atômica é possível graças à música eletrônica. O papel da música é certamente outro: mudar o nível de consciência, dispensar temporariamente o peso terreno e turbulento, sugerir estados pré-extáticos, reconciliar o homem e a criação, ajudá-lo a perdoar a si mesmo.


Quanto à escultura, visa-se uma abstração e densificação de volumes em perfeita harmonia com a atitude da massa. Em vez de iluminar a massa, torna-a opaca, proibindo a incursão final do Espírito para mostrar até a mais leve transparência e flexibilidade. O monte de fragmentos de César eloquentemente fornece evidências a favor da Idade de Ferro. Com exceção de alguns artistas como Platão - Klee, Matthieu, Bordet, Wulfing - a pintura também despojou-se de tremores e reflexões divino-humanas, e as vibrações afetivas e subjetivas são sua razão de ser. O reinado da angústia que surgiu imediatamente após o impressionismo, a recusa da natureza, o deslocamento das formas, a divisão do mundo a partir do cubismo e do futurismo (ao ponto de ser incapaz de reconhecer o tema de uma pintura de Picasso), contribuiu para essa evolução equivocada onde o homem, contemporâneo do inverno do mundo, descobre que está gélido, não está mais unido; um mundo onde o nada é a única coisa que resta para pintar. Seja por meio de larvas que se elevaram a partir de decadência psíquica, seja a partir de geometria semelhante a superestruturas metálicas desmanteladas, ou através da degradação dos rostos e corpos dos seres humanos, a arte pictórica exibe um completo vazio espiritual onde se tenta persuadir que flashes de genialidade, indignações arrogantes e vantagens mercantis estão reconciliados.

Em tudo isso, nada é susceptível de manter a atenção por muito tempo. Em vez de tornar o homem digno e preparar sua assunção, a arte moderna escolheu o caminho mais fácil: seguir a degeneração cíclica. O espírito profético deixou de inspirar, talvez porque não há futuro. Se, de acordo com o hadith, "Deus é belo e ama toda a beleza", não se pode entender como ele poderia se reconhecer nestas feiuras e fragmentações. Nenhum dos três critérios para a perfeita arte - nobreza dos conteúdos, a exatidão do simbolismo ou harmonia de composição e pureza de estilo - tem qualquer significado para os artistas que se permitiram ser cercado por elementos luciferianos cuja acelerada exaustão acelera o fim da arte.

A arte recusou as "chaves" que permitiam ilimitadas possibilidades para a criação; ela esgotou a harmonização possível e a combinação de elementos e intervalos que haviam dado origem a diferentes tendências artísticas e escolas; se abriu unilateralmente ou para o yang intemperado, trazendo a rigidez e o endurecimento das formas, ou para o yin no estado puro, trazendo sua liquefação. Sem dúvida, uma de suas raras opções seria voltar-se para o Oriente, retornar às suas raízes, renovar-se lá, recorrendo a certos princípios eternos esquecidos e adaptando-os a uma linguagem apropriada. A música, por exemplo, redescobriria seu próprio papel: não a expressão de equações, mas de "qualidades" e "estados", de descobrir novos ritmos, tons e instrumentos.





Em conclusão, apenas mencionaremos uma palavra sobre uma das descobertas mais recentes cujo desenvolvimento preocupante apenas por necessidade econômica chegou ao ponto de suplantar o homem em seus últimos reinos de liberdade e de implementar uma transferência de criatividade em seu favor: gostaríamos falar sobre o computador. Sua invasão inexorável nos garante uma espécie de universo congelado, sem possibilidade de erros ou mentiras, de pureza boreal completa, quase divino. Mas este universo é a divindade defeituosa, diabolicamente inocente.  Porque os computadores, independentemente de quão perfeitos ou perfectíveis possam ser e apesar de seu conhecimento absoluto, sempre faltarão o que alguns poderiam chamar de alma, em qualquer caso, a je ne sais quoi. Estes anjos de metal de alta qualidade, capazes de cálculos empolgantes em velocidades incalculáveis (que só servem para acelerar o movimento cíclico), e ao lado do qual os homens arrastam-se ao ritmo de bois, aparecendo muito inferior as máquinas que são, no entanto, suas criaturas, apresentam apenas uma falha - total e implacável - aquela de ser quase infalível em comparação com todas as fraquezas da inteligência humana. Impedindo o Espírito das esferas do Alto, seu Emissário providencial, aqui embaixo parece perigoso saber tudo e nunca cometer um erro.

Da mesma forma que uma tapeçaria árabe sempre tem uma falha (embora feita de propósito pelo artesão), um ponto ausente é prova de que todo o trabalho feito pelo homem está aquém da perfeição que pertence somente a um Criador; da mesma forma que o oxigênio absolutamente puro torna-se rapidamente irrespirável porque qualquer coisa viva precisa de germes e impurezas, pode-se considerar que toda a tecnologia avançada parece muito impecável para corresponder aos padrões humanos. É tentador elogiar o erro como uma necessidade vital, os erros do não-cumprido como assinatura de um mundo normal. O mundo dos computadores se assemelha muito da perfeição para permanecer insuspeito - uma perfeição esterilizada com algo automático e insensível, uma perfeição franca - se aproxima demais de Deus para não ser suspeito de ser o Diabo.  Errare humanum est, non errare diabolicum.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

A Verdade não é conhecida a menos que seja amada (Pe. Patrick Henry Reardon)

A Verdade não é conhecida a menos que seja amada 
Como Pavel Florensky restaurou aquilo que Ockham roubou

Dois sagazes críticos do pensamento ocidental moderno, Richard Weaver (Ideias Têm Consequências) e René Guénon (A Crise do Mundo Moderno; O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos), embora tenham abordado o tema desde formações muito diferentes, concordam quando descrevem a revolução intelectual do século XIV, com a sua crescente desconfiança da intuição metafísica, como a origem da crise cultural e intelectual atual do Ocidente.

Ambos argumentaram que nominalismo de Ockham, segundo o qual os "universais" são simplesmente criações da mente humana, e não realidades cognoscíveis (RES), serviu para engendrar o nosso mundo intelectual moderno, dominado por sua busca quantitativa da objetividade (das Ding an sich) e assim fundamentando a pressuposição generalizada de que a certeza só é acessível por verificação empírica e/ou com as leis da lógica. A negação dos nominalistas da capacidade da mente em compreender qualquer coisa diferente da matéria e da lógica, em compreender qualquer coisa acima de si mesma, Guénon e Weaver argumentaram, conduziu à perda da metafísica e todas as numerosas dissoluções culturais e espirituais que acompanharam essa perda. 
William de Ockham

Em relação ao destronamento das filosofias realistas do século XIV, causado pelo nominalismo, três considerações adicionais podem ser colocadas.

Em primeiro lugar, é possível argumentar que o realismo clássico já estava de saída bem antes das especulações de Ockham. A redução da metafísica, pela escolástica medieval, à uma disciplina acadêmica, em um assunto de sala de aula buscado como qualquer outro assunto, já tinha sido algo como um passo em desacordo com a tradição. Antes da ascensão dos escolásticos, a busca metafísica era compreendida como a própria conversão e o relacionamento pessoal com Deus, envolvendo um esforço moral extenuante (dharma, askesis), a purificação continua do coração e da mente (apatheia, puritas cordis), a busca disciplinada da virtude, e toda luta preparatória para a serena, amorosa e desapegada contemplação (veda, visio). Naquela tradição antiga, agora melhor preservada pelo oriente não-cristão, a metafísica não era compreendida como uma teoria filosófica, mas como uma theoria purificada, uma visão da Realidade. O mundo mais real e substancial era aquele do espírito. 

Julgado por tais normas, não seria injusto dizer que a filosofia escolástica medieval, mesmo antes de Ockham, estava menos empenhada na busca da metafísica do que no estudo de certas teorias sobre a metafísica. Assim, antes utilizada como ferramenta útil na busca da verdade, a dialética passa então a ser uma disciplina autosuficiente e completa em si. O especulativo e o analítico já havia substituído em grande parte o contemplativo e o experiencial, e mesmo quando esta substituição estava acontecendo, alguns observadores perspicazes, como Bernard de Clairvaux, achavam óbvio que o esforço escolástico representava uma divergência muito grande da tradição.

Em segundo lugar, pode-se argumentar que até mesmo o sentido da metafísica, em nossos tempos, desapareceu. Com poucas exceções, como o neo-tomismo de homens como Maritain e Adler, o século XX está vários passos afastado da antiga compreensão da metafísica, de modo que, no seu todo, não se é mais capaz de perceber o que exatamente, séculos atrás, foi perdido. Já há muito tempo acostumados a entender a busca pelo conhecimento unicamente em termos de abstração lógica ou objetividade empírica, ou alguma combinação de ambos, a maioria dos filósofos ocidentais parecem não mais estarem familiarizados com a natureza essencial do pensamento metafísico.

Experiência e linguagem

Mais especificamente, os ocidentais modernos, em geral, não parecem estar cientes de que, para as principais culturas antigas, o "conhecimento" metafísico (jnana, gnosis) era experimental. Não se tratava apenas do conteúdo factual ou lógico da cabeça da pessoa, como Carnap, Wittgenstein, Feigl e outros analistas linguísticos gratuitamente supuseram. Para os antigos, a intuição metafísica implicava em uma união extática com a Realidade: con-scientia, com-prehendere. "A Verdade não é conhecida", escreveu São Gregório Magno, "a menos que seja amada" (Veritas non cognoscitur, nisi amatur), e Platão falou de um anseio ardente (eros), bem como de uma dialética disciplinada, ao longo do caminho da recordação. Pensadores tão diferentes como Lao-Tzu, Ben Sirach, Plotino, Shankara, Al-Ghazali e Máximo o Confessor compartilharam a presunção de que o discurso noético envolve relações noéticas - que o "conhecimento" implica a união, a comunhão com o Real.

Muito diferente é nossa situação moderna no Ocidente. No início deste ano, quando mais de cem filósofos, juristas, artistas literários, jornalistas e estudiosos se reuniram no Belmont Abbey College na Carolina do Norte para celebrar o cinquentenário da obra de Weaver - As Ideias Tem Consequências -, vários dos palestrantes observaram que sua voz profética, apesar de toda sua eloquência, continua a clamar no deserto ocidental.

Em terceiro lugar, ao corroer a autoridade da linguagem por sua negação do conteúdo real das palavras abstratas, o nominalismo foi o primeiro passo para a derrubada da tradição viva.

Uma certa visão definidora da realidade supostamente deve ser transmitida de uma geração para outra pela imposição de uma autoridade linguística. Os antigos acreditavam que as mentes eram moldadas por palavras e eram, portanto, moldadas para uma percepção intuitiva do real. Michael Polanyi é um dos poucos pensadores recentes a ressaltar que cada geração deve aprender a composição da realidade por uma atitude de aquiescência, uma espécie de "obediência de fé", a aceitação implícita de uma língua herdada.

Nas culturas antigas, assumia-se as palavras para conceitos universais a fim de expressar uma intuição das formas universais, como exemplificado com Adão nomeando os animais. Especialmente no que diz respeito às palavras que servem como termos universais, a autoridade da tradição é o ponto de partida para a investigação dos Primeiros Princípios, os padrões católicos de verdade - e, por serem padrões, são permanentes e exteriores as vicissitudes do mundo material.  

A linguagem universal conceitual tem, portanto, algo de oracular, o que o hinduísmo chama de Brahmanaspati. Para os antigos, a estabilidade da linguagem conceitual era o que garantia a possibilidade da transmissão da percepção, theoria, de uma geração para a outra, e servia como o lugar de busca metafísica no contexto social, tradicional e hierárquico.

O nominalismo, no entanto, ao reduzir termos conceituais a meros "nomes", construções da própria mente humana, privou essa linguagem de sua soberania sobre as origens e a estrutura do pensamento reflexivo. Considerando que, para os antigos, as palavras moldavam as mentes, agora temos um entendimento cultural no qual as mentes moldam as palavras, de modo que as palavras não expressam nada mais que, no máximo, um "estado de espírito". Consequentemente, aqui no ocidente moderno, é tomado como óbvio que as palavras são puramente questões de convenções contemporâneas e simplesmente existem para que as pessoas possam participar nas persuasões pessoais do outro. Isto é o que Weaver chamou de "presentismo". As palavras se tornaram meros instrumentos para a comunicação de opiniões e persuasões. Infelizmente, quase ninguém parece notar que esta é exatamente a teoria da linguagem ensinada por Protágoras e Górgias, e severamente refutada por Sócrates.

Aqui no Ocidente perdemos a sensação de que a metafísica une nossa mente não só com a verdade eterna, mas com todas outras mentes, em todos outros tempos e lugares, que contemplam a verdade ou a buscam com amor. Ou seja, o Ocidente esqueceu que a verdade é conhecida em comunhão com outros conhecedores.

Rússia
 
No entanto, se ampliarmos a nossa compreensão de "Ocidente", como de fato é necessário, para incluir aquela vasta área a leste do Mar Báltico, pode-se apontar para uma importante exceção à situação que acabamos de descrever. Um segmento significativo da filosofia russa, enraizada em uma história geograficamente protegida do escolasticismo e de outros desenvolvimentos filosóficos pós-escolásticos mais a oeste, esteve, em grande medida, imune aos males narrados por Guénon, Weaver e outros. Sem dúvida por causa da tradição ascético-mística da Ortodoxia Oriental, e, apesar do fascínio de Pedro o Grande pelo Iluminismo, grande parte da filosofia russa não perdeu esse sentido mais antigo da metafísica nem a premissa fundamental que o conhecimento da verdade inclui tanto comunhão com a verdade como comunhão com os outros conhecedores da verdade.

A filosofia russa, já firmemente enraizada na metafísica clássica por meio de sua cultura bizantina herdada, tornou-se muito consciente de si quando, em meados do século XIX, avaliou suas diferenças radicais com o idealismo alemão e outros desenvolvimentos ocidentais recentes. Esse movimento foi chamado de eslavofilismo e os resultados de seus aprofundamentos estão amplamente registrados em escritores como Dostoievski, Gogol, Fedorov e outros, até a Revolução e além. Os dois volumes da obra de Georges Florovsky, Caminhos da Teologia Russa, reimpresso como volumes 5 e 6 de sua Coleção, publicadas pouco mais de uma década atrás, continuam a ser a melhor recomendação para aqueles que se beneficiariam de uma pesquisa popular daquele período e sua literatura.

Ultimamente, no entanto, graças à Princeton University Press e aos trabalhos de tradução de Boris Jakim, temos agora uma versão em inglês daquele que é indiscutivelmente o trabalho mais maduro a emergir desse movimento eslavófilo, O Pilar e o Fundamento da Verdade, de Pavel Florensky.



Florensky 

Pavel Florensky (1882-1937) não pode ser classificado facilmente em nenhuma das nossas categorias habituais. Muitas vezes comparado a Da Vinci como um polímata, seu nome continua aparecendo nas histórias de inúmeros assuntos, pois dificilmente algum tópico foi alheio ao seu interesse. Um linguista que dominava as principais línguas antigas e modernas da Europa e estava completamente à vontade na literatura europeia dos últimos três milênios, também lia hebraico e outras línguas semíticas, bem como línguas modernas do Cáucaso e da Ásia Central. Formado em matemática e filosofia na Universidade de Moscou de 1899 a 1904, ele rejeitou uma bolsa de pesquisa para fazer um trabalho avançado em matemática, a fim de assumir os estudos teológicos na Academia Teológica de Moscou. Durante os sete anos seguintes, antes de sua ordenação sacerdotal, em 1911, Florensky mergulhou sua mente e o coração na Bíblia e em todo corpus da literatura teológica cristã, dedicando grande parte desse esforço à Patrologia Grega. Após a ordenação, ingressou na faculdade, onde serviu até a Academia Teológica ter sido fechada após a Revolução.

Forçado a seguir seus estudos em novas direções, Florensky escolheu a história da arte, escreveu um livro sobre o estudo do espaço na arte e outro sobre ícones. Nunca em perda, juntou-se à faculdade dos novos Estúdios Técnico-Artísticos do Estado e ensinou a teoria da perspectiva. Enquanto isso, ele criou um livro sobre dielétricos, que se tornou padrão em salas de aula russas. Longe de evitar a cooperação com o novo governo soviético, trabalhou para a Comissão para a Eletrificação da Rússia e serviu como editor da Enciclopédia Técnica Soviética, contribuindo com muitos artigos. Em 1927 inventou um óleo de máquina não-coagulante patenteado pelo governo soviético.

Durante todo esse tempo Florensky permaneceu como sacerdote e, mesmo trabalhando nos escritórios do governo soviético, ele habitualmente usava sua batina sacerdotal. Enquanto isso, na medida em que o governo soviético se tornava mais confiante, também se tornava mais ímpio, e logo a utilidade de Florensky para o estado foi incapaz de protegê-lo de sua animosidade em relação à religião. Preso brevemente em 1928, ele conseguiu continuar seu ministério sacerdotal e a bolsa até os expurgos dos anos 1930. Em 1933, foi condenado a um campo de trabalho na Sibéria por uma pena de dez anos, e continuou o que era possível de seu trabalho anterior nos quatro anos seguintes sob as circunstâncias mais difíceis. Finalmente, Pavel Florensky foi executado pelos comunistas em 8 de agosto de 1937, acontecimento que o fez ser hoje amplamente venerado na Igreja Ortodoxa como um mártir da fé cristã.

Depois da morte de Stalin em 1953, a reputação de Florensky foi gradualmente restaurada no mundo político e científico da União Soviética, como filósofo lingüístico, cientista e, mais recentemente, teólogo.

Na filosofia, Florensky classificava-se como um "simbolista", um termo que talvez exija um pouco de explicação aqui. A filosofia simbolista russa aborda particularmente o significado da linguagem e sua relação com a cultura, o conhecimento como intuição e a compreensão mística da raiz divina da realidade. KG Isupov, um historiador recente do pensamento russo, descreve os simbolistas eslavos como aqueles preocupados com uma "concepção do mundo e da cultura enquanto composição de símbolos, voltada para cima em direção à sua pátria original e significado e para baixo em direção ao destino do homem na história."

Para Florensky, o noumena, apreendido intuitivamente, subjaz a todos os fenômenos, e a busca filosófica é estritamente metafísica - passar do que é real e visto para o real, mas invisível, passar do perecimento ao eterno. A este respeito, um de seus professores de Moscou, Vyacheslav Ivanov, cunhou a frase de realibus ad realiora, que teria atraído muito aqueles do tipo de Platão e Ramanuja. Em sua introdução ao trabalho aqui em análise, Richard Gustafson descreve O Pilar e o Fundamento da Verdade como "o trabalho mais elaborado" do Simbolismo Russo.

Para Pavel Florensky, o verdadeiro conhecimento humano envolve uma identidade de forma, ou "consubstantialidade", uma expressão manifestamente emprestada da cristologia tradicional e da triadologia. Para ele, homoousios, "expressava não apenas um dogma cristológico, mas também uma avaliação espiritual das leis racionais do pensamento". Ou seja, nós seres humanos "conhecemos" participando na própria forma de que é conhecido: co-gnoscere. Ao afirmar isso, Florensky estava bem ciente de enunciar a tese central da filosofia clássica grega e hindu. Ele compartilhava a convicção deles que "o ato de conhecer não é apenas um ato gnoseológico, mas também ontológico, não só ideal, mas também real. Conhecer é uma verdadeira passagem do conhecedor para fora de si, ou (o que é a mesma coisa) uma verdadeira passagem daquilo que é conhecido para o conhecedor, a verdadeira unificação do conhecedor com aquilo que é conhecido.  Essa é a proposição fundamental e característica da filosofia russa e, em geral, de toda filosofia oriental."

Esta unidade inseparável do ato de conhecer, além do mais, Florensky entende como envolvendo outros conhecedores. Conhecer é um ato essencialmente social, o cumprimento daquela promessa implícita na partilha de uma língua herdada. É inseparável da comunhão com os outros conhecedores, do passado, do presente e do futuro. Tal metafísica dá fruto, diz ele, em uma "comunhão moral viva de pessoas, cada uma servindo a outra tanto como objeto e como sujeito... No amor, e só no amor o conhecimento da Verdade é concebível."

Uma palavra de aviso
 
O texto de O Pilar e o Fundamento da Verdade, composto de 12 "cartas" dirigidas a um "amigo" ou "irmão", que parece ser o próprio Cristo, é complementado por várias excursões muito difíceis e cerca de 150 páginas das notas do autor. Cruzando-se mutuamente em mil conjunturas estão as inúmeras referências de Florensky a quase todos os assuntos concebíveis: matemática, crítica literária, lógica simbólica, homotipia, anatomia humana, os Pais da igreja, a estrutura da antinomia, escolástica medieval, mitologia egípcia, Lewis Carroll, especulações sobre tempo e espaço, várias teorias do infinito, e assim por diante. Assim que o leitor se sente bem confortável em seguir determinada linha de pensamento, Florensky o ultrapassa novamente em alguma direção nova e totalmente inesperada. Embora eminentemente sintético, o pensamento neste trabalho é amarrado por fios de sutileza desconcertante.

Portanto, embora o livro seja recomendado aqui com entusiasmo, o leitor em potencial fica avisado que é necessário estar pronto para algo firme, pois esta é uma obra desafiadora. O livro tem mais de 600 páginas, com refinamentos de pensamento alojados em quase todas as linhas, e não renderá suas riquezas em uma única leitura.

Além disso, como toda virtude é susceptível de voltar contra si mesma, às vezes com o que parece ser apenas uma leve torção, os dons distintivos de Florensky o tornam vulnerável a certas tentações. Como seus companheiros Simbolistas, ele pode deslizar rapidamente de uma rica intuição metafísica para uma especulação turva. Distinguir uma da outra pode ser uma tarefa assustadora, dada a inteligência polimática de Florensky, mas o investimento do leitor será retribuído muitas vezes.