quarta-feira, 29 de junho de 2016

Psicanálise e Antropologia Ortodoxa (por Christos Yannaras)

Apesar das mais diversas desvantagens culturais atualmente existentes, acredito que nossa era goza de um duplo privilégio, em comparação com os séculos de grande ápice do discurso teológico eclesial. Refiro-me especificamente ao conhecimento da natureza que a ciência moderna (especialmente a mecânica quântica) nos deu com a linguagem e o método de investigação científica, assim como os horizontes de estudo do sujeito humano que a ciência da psicologia-psicanálise deu início.

Eu sou da opinião de que os grandes Padres da Igreja e professores da Igreja não ignoraram o conhecimento científico de sua época; em vez disso, o usavam para lançar luz sobre a interpretação do real e do existente que experiência eclesial proclama. Se observa isso, simplesmente examinando os comentários Padres na seção Sobre o Hexameron, ou na terminologia e a metodologia dos Padres adaptada a partir de Sobre a Alma de Aristóteles: a teologia da Igreja é uma continuação vivificante do evento da encarnação do Verbo: ela assume continuamente uma encarnação histórica particular, animando o que foi adotado.

Tentarei demonstrar brevemente como este processo de incorporação intelectual poderia ser tentado hoje, com base nas conclusões da investigação psicanalítica sobre a composição primordial do sujeito humano. Qual o grau de complementaridade mútua existe entre a visão psicanalítica do sujeito humano e a interpretação eclesial do ser humano como pessoa? Eu posso oferecer apenas alguns indícios, mas penso que são férteis para fins de novas explorações. É do conhecimento comum que na ciência moderna não há certezas definitivas. Só pode haver sugestões interpretativas, sujeitas a refutação, mas aceitas contanto que outras interpretações com um alcance interpretativo distinto e mais completo não sejam publicados. 

Eu extraio estas observações da pesquisa psicanalítica francesa da chamada escola de Jacques Lacan, que surge como sendo a mais fiel à chamada tradição freudiana. Os textos que me ajudaram são aqueles do próprio Lacan, bem como livros de Franchise Dolto, Denis Vasse, Gerard Severin e Daniel Lagache. Eu não sou um especialista no campo da psicologia-psicanálise, portanto, quaisquer imprecisões, equívocos ou erros devem ser atribuídos à minha inadequação e não para minhas fontes. 

Como é que o sujeito humano é visto pela psicologia moderna? Em primeiro lugar, como uma realidade existencial distinta do ser biológico, não independente, mas no entanto outro - não idêntico ao indivíduo biológico. Se tentarmos apontar a distinção qualitativa básica entre o sujeito e o ser biológico, devemos empregar o termo «referencialidade»: a possibilidade de referência existencial. Uma criança vem ao mundo sem fala, imaginação ou julgamento. É equipado apenas com a capacidade de se referir. E o que é referido - a forma de referência - é um desejo primordial fundamental. A referencialidade do desejo - a referencialidade desejada - é a definição original da existência do sujeito. Eu desejo, logo existo: «Desidero é o cogito freudiano. É certamente lá [no desejo], que o aspecto essencial do procedimento preliminar da construção do sujeito ocorre» 

Na linguagem positivista do realismo psicanalítico, o desejo é difícil de definir. É a libido - o desejo erótico de um relacionamento pleno. O que cada ser humano procura, desde o momento da separação do útero, é o imediatismo e a plenitude de um relacionamento - coessentia. Não ser, em primeiro lugar, como um eu biológico e, então, ter relações, mas sim extrair a existência a partir da relação - a existir como um evento de relacionamento. 

A libido como desejo erótico por um relacionamento pleno é uma característica exclusivamente humana. Ela transcende o propósito biológico da reprodução e constitui, de acordo com Lacan, «instinto da vida pura, em outras palavras, a vida imortal, ilimitada, a vida sem necessidade de instrumento, uma vida que é simples e sem fim».  

O desejo pela vida é o desejo por um relacionamento pleno e a resposta ao desejo é apenas o potencial de um relacionamento. Mas em um sentido hipotético impreciso, o desejo pela vida é mediado, primeiramente, pelo desejo específico por alimento, que é um pré-requisito vital para sobrevivência biológica das crianças. Uma criança deseja uma relação vivificante coexistente com a comida, mas não meramente para satisfazer o instinto de autopreservação. Assim, uma criança psicologicamente anoréxica pode morrer por iniciativa própria, demonstrando que a sua «alma» é essencial para a existência - muito mais do que o mecanismo de regulação de suas funções biológicas.

O desejo vital da criança pelo alimento encontra sua primeira resposta potencial nos braços de sua mãe. Seu peito significa o potencial de resposta ao desejo vivificante; é o primeiro significante, o evento fundador da relação que constitui o sujeito. A aparência do significante é um pré-requisito para o relacionamento, a origem necessária para o «nascimento» do sujeito. O sujeito nasce uma vez que o significante aparece no campo do Outro - o potencial de resposta ao desejo emerge.  

O evento do relacionamento «engendra» o sujeito, fazendo preciso a referencialidade primordial do modo de existência, um modo que é expresso na fala. «Se o sujeito é definido pela linguagem e fala, isto significa que o sujeito, in initio, começa no espaço do Outro, desde que o primeiro significante apareça ali». 

Esta é a rejeição mais radical da percepção do sujeito como um ser ôntico, mas também da percepção do sujeito como um intelecto individual, como uma unidade com capacidade de raciocinar (animal rationale). Antes do pensamento está o desejo que constitui o sujeito e estabelece sua existência lógica. Qualquer nome que damos ao sujeito, ele é um evento erótico e por ser um evento erótico, é também uma existência lógica. O ímpeto erótico é realizado por meio da fala, e esta realização constitui o sujeito.

O sujeito nasce uma vez que o significante aparece no espaço do Outro. A aparência do significante concretiza o potencial de resposta ao desejo - faz dele «logos». Mas ao mesmo tempo a natureza «lógica» do significante concretiza o desejo como um requerimento lógico. O que significa o significante é o que ele diz na superfície. É o potencial para um relacionamento pleno, uma vida completa. E o significado potencial refere-se ao sujeito concreto - é a resposta lógica ao desejo primordial do sujeito, a referencialidade mútua que constitui o desejo como  «requerimento logos-lógico». 

É a referencialidade mútua que compreende o sujeito enquanto um evento existencial de uma relação, como uma existência lógica, como uma existência capaz de incorporar a razão coletiva da sociedade humana. 

O primeiro significante pode ser o seio da mãe, porque este relacionamento pleno para o qual o desejo primordial é dirigido não é abstrato. Pelo contrário, é uma relação de comunhão com o alimento - um relacionamento real sobre o qual a vida depende. No entanto, receber alimentos não esgota o desejo; o desejo não aspira apenas à sobrevivência biológica, mas a uma vida sem limites, uma vida imortal. «Se receber alimento não está associado com a experiência de uma presença que se mantém ou desaparece sem deixar de ser significada, se o Outro do desejo não é mediado pela presença e ausência alternada do provedor de alimentos, a criança nunca entrará no mundo da humanidade, no mundo da linguagem e símbolos».  

Assim, o agente central e decisivo no estabelecimento e na constituição do sujeito não é o primeiro significante, mas o último significado, para o qual o desejo primordial por um relacionamento pleno,  sempre incompleto, é direcionando. O significante da resposta ao desejo sempre emerge no espaço do Outro, e este emergir estabelece o sujeito lógico. No entanto, o Outro permanece sempre o transcendente objetivo de um relacionamento pleno, da vida imortal. É por isso que Lacan - sem intenções metafísicas e com apenas o realismo da experiência clínica - sempre escreve o Outro transcendente com «O» maiúsculo. O sujeito nasce no espaço do Outro, não há sujeito humano, exceto como uma resposta ao desejo de uma relação plena com o Outro transcendente que convida o sujeito à existência.

No curso da vida individual transitória, o Outro é mediado através do peito da mãe, através da presença ou ausência da mãe, através dos alimentos, através do afeto, através da linguagem da comunicação, através da intervenção da imagem do pai - intervenção que «socializa» a relação vivificante com a mãe e constrói a consciência do ego como um Terceiro autônomo.

O Outro é mediado, uma vez que a maturidade é alcançada, pelo corpo desejando a co-essencialidade erótica, pela surpresa da alteridade familiar dos filhos e descendentes - uma surpresa que liberta o corpo da individualidade espaço-temporal. O Outro é também diversamente mediado pela autoridade da lei, pela beleza erótica da natureza, pela dinâmica ilimitada dos significantes do relacionamento.

O sujeito é processado como um evento existencial em virtude do desejo vivificante por uma relação plena com o Outro transcendente. E o desejo é mantido como um referente existencial porque o espaço do Outro nunca é definido em uma presença dada, mas é um espaço de presença-ausência por parte de um significado multifacetado. Mesmo os significantes mediadores referem-se apenas à presença-ausência de resposta ao desejo que dá vida: se a presença da mãe fosse permanente, contínua e possuída pela criança (se a mãe segurasse o bebê constantemente em seus braços, oferecendo o peito), a criança nunca seria constituído como um sujeito lógico. O significante do desejo não emergiria no espaço da mãe e, portanto, não haveria construção.

Se o Outro que atraí um relacionamento lógico, o Outro do telos desejado do relacionamento, fosse dado e definitivamente possuído em uma presença newtoniana, seria impossível que os significantes atraídos e os significantes do relacionamento emergissem, não haveria nenhuma existência humana lógica. Se Deus não fosse uma presença-ausência, não haveria nenhum ser humano lógico. A distância real entre a física e a metafísica, a recusa de Deus de ser subordinado em certezas definitivas, é o pressuposto existencial do sujeito lógico.

O homem entra no mundo como portador de desejos, o desejo por uma vida eterna e plena. E para o desejo humano, a vida plena é a realização do relacionamento, a comunhão erótica. Por esta razão, a resposta potencial ao desejo - os significantes da realização do desejo - emerge apenas no espaço do Outro. Os potenciais são sempre transitórios e fragmentados em comparação com o desejado relacionamento pleno. Eles não deixam de ser significados como potenciais para o relacionamento. Os significantes do relacionamento são os elementos primários do logos. A aparência dos significantes engendra o sujeito, constituem-no como uma existência lógica. O sujeito existe no modo do logos, no modo de referencialidade. A referencialidade lógica é articulada e construída através da sintaxe linguística e do simbolismo.

A referencialidade lógica é uma de desejo, mas o desejo nunca se esgota com o significado de significantes transitórios e fragmentados. A concretização do desejo na procura não esgota a referencialidade desejada do sujeito. Há sempre uma parte restante do desejo, uma tendência de procurar qualquer relacionamento, mais uma vez, como desejo.

Esta parte restante é designada pela lógica - em outras palavras, a referencialidade do desejo: é um substrato de desejo que preserva o modo do logos, o modo ou a estrutura da fala. É o inconsciente. Por «inconsciente», queremos dizer o que permanece como desejo (no modo do logos, no modo da fala) quando a referencialidade do desejo foi concretizada na procura através do significante.

O inconsciente é construido a partir das consequências dos significantes, isto é, a partir das consequências do fato de que o significante expressa o desejo que foi concretizado como requerimento, sem esgotar a referencialidade do desejo. O desejo permanece o substrato universal de todos os significados procurados, um substrato que é em si mesmo referencial (refere-se a realização transcendente, que é o objeto do desejo).

A principal contribuição de Lacan para a ciência psicanalítica é resumida neste aforismo: "O inconsciente é estruturado como linguagens". Esta conclusão afirma em primeiro lugar o caráter referencial do substrato inconsciente da subjetividade. Afirma tanto o modo referencial em que o inconsciente é construído como também afirma seu referencial, o que poderíamos chamar o conteúdo (ou resto) do inconsciente. Assim, tanto a estrutura como aquilo que é construído são homólogos à linguagem: a linguagem é a soma total de significantes e a composição dos significantes. A linguagem é o modo de referência e de relacionamento.

O inconsciente é estruturado como linguagem, porque é um «resto» ou «substrato» do desejo, e o desejo é referido apenas pelo o Logos, a articulação lógica, a estrutura da linguagem. O inconsciente é a distância insondável - no entanto real - entre a realização sempre deficiente do desejo e a realização desejada de co-essencialidade erótica com o Outro transcendente. O próprio inconsciente continua a ser um desejo articulado pelo logos, revelando a lógica básica e primária de referência que torna o sujeito um sujeito.

O modo pelo qual o inconsciente emerge (através do método psicanalítico) expressa a natureza referencial da constituição do sujeito em todos os níveis. Assumimos algum núcleo da subjetividade, mesmo que inconsciente, que, no entanto, é expressada e referida apenas através do modo do logos.

O «núcleo» hipostático da subjetividade não pode ser classificado através de uma concepção intelectual, porque é, simultaneamente, objetivado e possuído pelo sujeito, não identificado com ele. Qual , então, é a alternativa para a concepção intelectual quando se trata da autodeterminação do sujeito? Lacan responde: «O ser do sujeito, aquilo que está situado sob a concepção intelectual».

No entanto, se a noção objetifica o ser, deixando de fora «aquilo que está sob a concepção intelectual», a escolha do ser enquanto auto-definição do núcleo da subjetividade é perdida na definibilidade da não-concepção. «Seja qual for a escolha, a consequência é nem uma coisa nem a outra. Ao escolhermos o ser, o sujeito desaparece, foge de nós, e caindo de novo na não-concepção. Nós escolhemos a concepção e a concepção sobrevive mutilada por essa parte da não-concepção que é, claramente,  aquilo que estabelece o inconsciente em virtude da realização do sujeito».

Nem a concepção nem o ser. Existe uma terceira opção em relação à auto-definição do sujeito? A Igreja responde: «Meu princípio e minha hipóstase tem sido o seu comando criativo». O núcleo, ou a hipóstase do sujeito, é a convocação de não-ser para o ser. E a hipóstase é pessoal, quando Deus chama os seres do não-ser, seres capazes de relacionamento lógico/comunhão com Ele. A vontade de Deus em comungar Sua existência Incriada com a existência pessoal criativa é uma vontade ativa, é uma obra, e a obra de Deus é Seu verbo: «No caso de Deus, a obra é logos». 

O ser humano é uma existência pessoal, porque o chamado criativo de Deus pressupõe a pessoa como uma resposta hipostática para este chamado. Em outras palavras, como potencialidade existencial para um relacionamento com Deus, como liberdade para afirmar ou rejeitar a comunhão existencial com Ele.  A convocação «cria» as hipóstases, atribuindo identidade real para as potenciais existenciais como consequência do chamado: hipostasia não somente o criativo, mas também a dinâmica atraente da convocação, a potencialidade da relação.

A convocação de Deus pressupõe a resposta humana não simplesmente como uma expressão da vontade, mas como um modo de ser, como um evento existencial. Assim, a referencialidade do relacionamento, o modo do logos, não é um dos «atributos» ou «capacidades» do sujeito, mas a potencialidade condicional do estabelecimento e construção do sujeito.

Portanto, a terminologia psicanalítica permite-nos reafirmar a definição eclesiástica da pessoa humana: o ser humano é uma existência pessoal porque é estabelecido, construído e age como um evento de relacionamento. Não é simplesmente colocado, como todo ser biológico é, na trama de inter-relações e inter-ligações de trocas de energias que compõem a biosfera. Em vez disso, a sua própria existência é uma realização dinâmica de relacionamentos, o ímpeto de desejo por um relacionamento existencial pleno.

A pessoa humana nasce no espaço de Deus. O ímpeto de desejo por um relacionamento pleno com Ele é o Seu chamado que dá vida, que estabelece e constrói a pessoa humana como um evento existencial de referência erótica. A relação entre o ser humano e Deus não é uma decisão intelectual ou uma tentativa ética consciente. É um evento do modo pessoal de existência, um modo de existência que engloba as manifestações conscientes e inconscientes de Sua existência. Por esta razão, a Igreja rejeita a moralidade (que pertence somente a vontade consciente) e insiste na ascese (que aspira o modo total de existência, consciente e inconsciente). Não é a vontade lógica e consciente que informa o evento existencial do relacionamento. É o relacionamento que constrói o logos, e não o logos o relacionamento. O modo do relacionamento molda a consciência e também o inconsciente do sujeito. 

Se a pessoa humana é a resposta hipostática ao chamado divino para um relacionamento, se ela deve sua origem existencial a energia de convocação do Incriado, então seu caráter pessoal repousa sobre a liberdade de realizar ou rejeitar a existência enquanto uma relação mútua, enquanto uma comunhão amorosa do ser. Se a pessoa humana só passa a existir graças à energia do chamado de Deus, que é somente amorosa, e se a resposta existencial para o chamado não é uma afirmação, mas uma negação, então, podemos tirar duas conclusões: ou a livre negação do criado nega e anula a energia amorosa do Incriado, ou a energia do chamado Incriado, que é atemporal, torna a negação existencial do criado também atemporal.

A segunda possibilidade refere-se ao absoluto do amor, que respeita a liberdade, mesmo se a liberdade hipostiza a negação da reciprocidade amorosa. Tal negação significa um corte, uma mutilação, uma diminuição de potencialidades existenciais de desejo, potencialidades de ser enquanto relacionamentos plenos e amorosos. Neste caso não deriva de uma «graça» deficiente (dom da energia do chamado vivificante de Deus), mas de uma livre negação do recipiente em hipostatizar a graça como um evento existencial de relação. E, assim, o rompimento do desejo em objetivos egocêntricos narcisistas é somente auto-punição: a tortura de uma existência que ativamente nega a si mesmo, sem, no entanto, ser capaz de anular sua composição hipostática.

Outra contribuição fundamental da psicologia-psicanálise moderna para o debate teológico é que essa ilumina a auto-tortura do egocentrismo narcisista com a linguagem realista da experiência clínica a respeito da neurose e psicose.
Christos Yannaras