sábado, 29 de outubro de 2016

A Nova Religião (por Abbé Henri Stéphane)

Grosseiramente falando, pode-se dizer que a nova religião é a "religião do Homem." Tendo Deus morrido, podemos dizer que é uma religião "ateia". Não tem mais propósito de "religar" homem à Deus, mas os homens entre eles. É também uma "forma" de socialismo ou comunismo.

Paradoxalmente, assume muitas formas, mas isto é apenas uma aparência exterior: o ateísmo e o humanismo permanecem sendo o denominador comum destas diferentes formas. Há, por exemplo, a "fé sem religião", a fé em estado puro, sem conteúdo, sem dogmas, sem ritos; é uma espécie de protestantismo extremo que Lutero ou Calvino vomitariam. Esta "religião sem fé" era, há cem anos, o "formalismo" exterior as pessoas que praticavam sem crer seriamente, ou por razões comerciais. Hoje esta forma tomou outro aspecto: é o 'comunitarismo'. Repete-se ad nauseam aos Cristão que eles formam uma 'comunidade': o batismo os introduz em uma comunidade, como você se inscreve ao Partido Comunista; a Eucaristia não é mais que uma refeição comunitária; o pecado em si é concebido como uma ruptura ou distanciamento da comunidade, e a penitência, como no tempo da Igreja primitiva, é concebido como a reintegração na comunidade, com a diferença que os judeus e os pagãos convertidos ao Cristianismo acreditavam em Deus. Em nossos dias, as virtudes "teológicas" não possuem nada além de um sentido humano: se crê no Homem, se espera o futuro da Humanidade, graças à Ciência e ao Progresso, e se ama o próximo como tal. 

Em tal perspectiva, o Cristo não é mais do que o chefe da comunidade, e é para isso que "Deus morreu em Jesus Cristo". Outros vão mais longe, e não enxergam em Jesus Cristo mais do que um "agitador social". A tese é bastante conhecida para que julguemos útil em insistir. Em tudo isso, não há mais a questão da "vida eterna", e o Reino de Deus não é mais que a "cidade terrestre" a ser construída.

Desta maneira, só o homem importa, seu trabalho e sua ação no mundo. Alguns até mesmo veem nele um continuador da Criação, que Deus não concluiu, mas tal concepção da Criação é totalmente diferente da concepção tradicional, que equivale a negar Deus: se Deus criou o mundo "no tempo", e não continua "criando-o em cada instante", segundo o conceito exato da criação, então Deus não é o "Criador", e negar um de seus atributos equivale a negá-Lo por completo. Em geral, uma cosmologia não-tradicional, por exemplo, a evolucionista, conduz inevitavelmente a uma ideia falsa de Deus, e, por tanto, a sua negação.

Assim pois, sob qualquer forma em que se enfoque, a "nova religião" é essencialmente ateia. Tudo o que é sagrado - considerado pelos defensores da "fé sem religião" como uma sobrevivência do judaísmo e do paganismo - só pode, então, desaparecer rapidamente. Não se vê nestas condições para que se falar de Sacerdócio, da "crise das vocações", do estatuto clerical, etc. Tudo isto está destinado a desaparecer. 

Chegará, então, uma pseudo-religião, a "religião do Homem", cuja existência será tão efêmera como o "reino do Anticristo" nos "fins dos tempos". E sua decadência já está anunciada pelos estruturalista que predizem a "morte do homem". Depois disso, evidentemente, não restará mais do que a "morte do Cosmos", isto é, precisamente o "fim do mundo" que acabamos de mencionar.

É evidente que, se "Deus está morto", pelo menos na consciência do homem, nem a Igreja, nem a religião, nem o homem, nem o mundo, podem "sobreviver muito tempo". Se for objetado que Deus "não está morto" em si mesmo, mas apenas na consciência do homem, e que a relação ontológica entre Deus e a alma imortal não poderia ser afetada por uma "atitude de conhecimento", responderemos que, devido a identidade do ser e do Conhecer, qualquer deterioração na ordem do Conhecimento tem sua repercussão, se não na ordem do Ser enquanto tal, ao menos na ordem da Existência, da qual o Ser é o Princípio.

O homem enquanto ser certamente não pode desaparecer ou ser destruído (o que é expresso de um modo geral na imortalidade da alma), mas enquanto existente em diferente níveis, ou graus de realidade, pode "morrer". Em outras palavras, não é por uma ou outra de suas modalidades que o homem pode morrer: a morte no sentido ordinário não é nada mais do que o desaparecimento da modalidade corporal do homem, assim como a "segunda morte" que fala no Apocalipse (XX, 14) é nada amais do que a desaparição de sua modalidade psíquica, mas o ser do homem não pode morrer.  Se compreende assim que a morte corporal pode ter sido a consequência do "pecado original". Agora bem, tudo o que acabamos de dizer sobre o homem individual se aplica a toda humanidade: no "fim dos tempos" é uma modalidade da humanidade ou da "humanidade atual" que desaparece, e se concebe que esta, chegado a um grau total de ateísmo, - ainda não estamos lá - seja condenada à morte. Em outras palavras, a humanidade total, ao nível do Ser, não pode desaparecer, mas uma humanidade parcial pode morrer, e outra humanidade pode nascer em condições cósmicas muito diferentes evocadas por um "novo céu e uma nova terra" de que fala o Apocalipse; entre os dois, no entanto, estritamente falando, não há continuidade, isto é, segundo o modo que concebemos comumente: não pode haver senão uma continuidade "analógica". 


quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Como o Ocidente tornou-se Ateu (por Jay Dyer)

Como foi possível para o Ocidente, com séculos de fé Cristã, enraizado na tradição da Igreja, ter chegado ao ateísmo e a teomaquia pura e simples, na guerra contra Deus? Nos meus vinte anos, estive inteiramente imerso no sistema religioso-filosófico conhecido como Tomismo. O catolicismo era um castelo intocável de argumentação, imune a qualquer desafio cético que poderia bombardeá-lo (como eu assumia) com ataques fúteis. Lembro-me de ler que, em sua dissertação sobre a estética de Aquino, Umberto Eco comentou que ele, também, já tinha sido um fervoroso tomista até que chegou à conclusão de que o sistema simplesmente não funciona. Naquela época, eu não conseguia entender como alguém poderia chegar aquela conclusão. Como algo tão vasto e, como meu amigo James Kelley diz, "elegante", pode ser fundamentalmente falho? Isso foi há cerca de dez ou mais anos, e nesse espaço de tempo, o Tomismo desmoronou aos meus olhos.


Além disso, o esquema Tomista é precisamente aquilo que conduziu ao Iluminismo e ao subsequente deísmo e ateísmo do Ocidente. Não estamos analisando Agostinho, nem as motivações ou psicologia de Aquinas, nem Calvino sobre esta questão. O que está em jogo aqui é a posição oficial de Aquinas (e Agostinho, por extensão) e se esta exerceu uma influência instrumental no Iluminismo e no percurso da filosofia ocidental até o modernismo e ao lamaçal sem fim que vemos na filosofia atual. Minha convicção é que a crítica - pouco conhecida - do Oriente Cristão está correta ao fazer a forte afirmação que o Tomismo é o passo pivotal no percurso ocidental naquilo que poderia ser chamado de uma epistemologia revelacional até empirismo Iluminista, cienticifismo, o deísmo e o ateísmo.

Isto não quer dizer que considero que a posição oriental é livre de todos os problemas e dificuldades, mas que ela fornece uma crítica suficientemente forte que dificilmente me será possível reconciliar-me com o Tomismo novamente, assim como eu nunca voltaria ao Protestantismo mais uma vez. De fato, é bastante evidente para mim, que o Tomismo, mesmo possuindo alguns pontos que podem ser recuperados, é tão fundamentalmente problemático que ele realmente impulsionou o Ocidente em seu espiral descendente de dissolução.

A questão-chave a ser investigada para entender este problema no Tomismo está na relação e ação de Deus no mundo. Aquinas começa com a suposição da simplicidade divina que significa que Deus é o que Deus tem, e que Deus é o que Deus faz. Deus é actus purs, ou ato puro, sem nenhuma potencialidade. Sua essência é totalmente simples, de tal forma que qualquer predicado de Deus só se distingue logicamente. Isso significa que as distinções feitas entre os atributos são apenas distinções adequadas a cognição finita humana, e não verdadeiras distinções em realidade. Desta forma, o ato de criação de Deus pode ser distinguido, na mente humana, de Sua justiça ou presciência, mas, na realidade, estes atos, atributos e predicados, são rigorosamente idênticos à essência divina, ou ousia. Esta é uma lei fundamental no Tomismo, bem como em Agostinho. Isto é muito claro tanto na Summas como em outras obras como De Veritate.

Como, então, um Ser assim constituído opera em um mundo de fluxo e temporalidade? A resposta de Aquino é dominada pela ideia da analogia entis: nós conhecemos Deus por Seus efeitos criados no mundo. É por isso que a causalidade desempenha um papel tão grande em sua teologia. Deus não é só a Primeira Causa, seguindo Aristóteles, mas também o soberano providencial ao longo da história e da causalidade temporal dentro da história. A presciência de Deus é sua justiça e amor, e toda história está no processo de sua consumação no grande telos de todas as coisas retornando à sua fonte, a Primeira Causa, na visão beatifica da eternidade onde sua criação racional verá todas as coisas na singular e extremamente simples essência. Essa é uma declaração conforme a afirmação geral dentro do sistema Tomista, mas o que emerge é um problema sério: como uma divindade assim definida de fato atua neste mundo?

Para Agostinho, o principal mentor teológico de Tomas, Deus atua através dos efeitos criados de forma que até mesmo as aparentes ações diretas ainda assim são efeitos criados. Ou, para ser mais exato, efeitos criados especiais: no De Trinitate, Agostinho estipula que as manifestações do Anjo do Senhor só poderiam ter sido hologramas angelicais temporários. Elas não poderiam ter sido o Logos (a despeito do que os outros escritores patrísticos tenham dito). Chega-se a essa conclusão porque era impossível que o divino se manifeste diretamente no tempo e espaço, uma vez que isso significaria que Deus não era mais simples. Qualquer ser localizado em um determinado ponto do espaço e tempo era tido como um ser composto ou em partes, e, portanto, não era absolutamente simples. Para Aquino esta lei também é considerada, na medida em que a analogia entis é um componente central de sua superestrutura: Deus só é conhecido por analogia às coisas criadas, porque não temos acesso a ousia divina nesta vida. Deus concede a iluminação, certamente, mas estes dons que Ele dá ainda são um efeito criado da graça sobrenatural. O conhecimento de Deus e a participação na vida divina são teologicamente impossibilitados de qualquer experiência direta divina até a visão beatifica. Isso não quer dizer que Deus não pode falar com os homens ou transmitir bênçãos, mas que estas ainda são, para nós, efeitos criados.

Sendo honesto com Aquinas e Agostinho, eles falam de "vida divina", "deificação", etc. mas como isso é possível, em ambos teólogos, é muitas vezes complicado. Às vezes soa como se os fiéis estão participando na essência divina, e outras vezes a impossibilidade de tal ideia os impede de fazer qualquer sentido. As divisões romanas da graça em todas as "categorias" como precedente, santificante, sobrenatural, etc. frequentemente são empacotadas como explicações, mas nenhuma dessas servem para explicar o problema em mãos: como nós participamos nesta vida divina se não há acesso a ousia divina nesta vida? De fato, quando Cristo ressuscitou na teologia cristã clássica, o que era a luz divina que mostrou-se irradiando Dele? A resposta do Oriente é muito diferente da resposta do Ocidente. Para o Ocidente, tal luz era um efeito criado, enquanto para o Oriente, era a própria energia divina. A questão do Tabor verdadeiramente serve para solidificar estas duas posições, uma vez que a questão da "deificação" da carne de Cristo é o mesmo problema da deificação do fiel.

Da mesma forma, para Aquino, a revelação de Deus só pode ter sido através de efeitos criados devido a abordagem empírica de sua teologia. Uma vez que ele aceita basicamente a abordagem aristotélica para a psique humana, onde o conhecimento do homem, mesmo o de Deus, provém da experiência sensorial. Uma vez que a mente humana, até mesmo na obtenção do conhecimento natural, faz isso através de uma abstração de um conceito universal dos fantasmas apresentados à mente pela experiência sensorial, o mesmo problema de antes surge para epistemologia no local onde Tomas localiza o universal. Os conceitos universais são localizados na Mente divina, que, como você pode ver, é também a essência divina. Na filosofia medieval e clássica, isto é chamado de exemplarismo. Isso significa que as ideias por trás das coisas, muitas vezes funcionando como a essência de uma coisa, estão, em última análise, contidas na Mente de Deus.

Para Aquino e Agostinho, o exemplarismo é verdadeiro, e os exemplares, ou formas das coisas, estão localizados em Deus. Assim, para Aquino, mesmo o conhecimento que o homem possui naturalmente é obtido por meio de uma experiência empírica que, em última análise, baseia-se em um conceito universal localizado em Deus. Mas um dilema surge: como a mente humana supostamente pode abstrair o universal em seu pequeno espelho da mente, quando não possui acesso direito ao divino? A única maneira que isso pode funcionar é se existir alguma ponte entre o fantasma e o conceito atual na Mente divina. Mas mesmo que seja dito que se trata de um espelho débil do conceito "real" na mente divina, não mudaria o caso, uma vez que a definição da simplicidade divina já impede distinções na Mente divina. Em outras palavras, com isso, o problema é movido um passo para atrás, uma vez que nenhuma mente nesta vida tem acesso à visão beatifica. Para que o esquema de Tomas funcione, ele precisa acesso direto ao divino de alguma forma ou de outra, nesta vida. Mas lembre-se: a definição dele de simplicidade opõe-se absolutamente a uma tal experiência direta, revelacional, da própria divindade. Tudo o que pode ser conhecido de Deus nesta vida é Seus efeitos criados no mundo nos quais, de forma debilitada, supostamente nos deveria mostrar alguma analogia com Sua essência. É também por isso que Máximo, o Confessor, identifica o logoi (sua versão de exemplares) como as energias divinas, e não a essência divina.

Outro problema que esta perspectiva possui é que a analogia entis estabelece Deus como se operasse num continuum de ser onde, devido a estranha interpretação de Aquinas do "Eu sou o que Sou" como "Eu sou Ser Puro", faz com que o ser de Deus seja como qualquer outro ser. Esta é a base da analogia entis onde se toma a suposição de que as coisas "são" e Deus "é", então há algum tipo de analogia fraca do ser que pode ser compreendida entre o ser criado e o ser divino. No entanto, o mesmo problema incomodo emerge mais uma vez em relação a simplicidade divina absoluta. Como pode haver qualquer semelhança entre o "ser" do criado, temporal, e o "ser" incriado, eterno? Não há qualquer semelhança.

De fato, a teologia apofática, que Aquino professa manter, diz que o infinito e o incriado só são entendidos pela negação - por aquilo que não é. "Mas espere", você pode responder, "isso significa que nós não podemos conhecer Deus, uma vez que não há predicação analógica. Aquino rejeita a predicação unívoca e equívoca de Deus, optando por uma predicação analógica!". Sr. Tomista, você não entendeu. Aquino não resolveu seu dilema, mas o agravou, fazendo a essência divina análoga ao ser criado (que é idolatria). É a energia divina que é conhecida, não a essência de Deus. A essência divina é inteiramente impossível de ser conhecida ou imaginada, precisamente porque a mente criada será sempre finita. Nenhum homem ou anjo poderia assumir a onisciência, onipresença ou onipotência.

Assim, o que se apresenta é um caminho duplo que o Tomismo pode escolher com essas suposições assumidas. Ele pode 1) dizer que o divino está confinado em seu domínio, interagindo neste mundo somente através de efeitos criados, da graça criada e várias causas criadas, mas este caminho significaria que os fundamentos do Cristianismo não são mais possíveis.  A Pessoa Divina de Cristo não seria realmente capaz de deificar a carne, os sacramentos são apenas condutos da "graça criada", e o conhecimento humano nesta vida nunca é uma iluminação divina, ou 2) pode fazer com que a essência divina seja compartilhada com o ser criado, caso em que o panteísmo seguiria. Ambos caminhos são um beco sem saída, e ambos são necessários por causa da rejeição da distinção essência/energia e da definição neo-platônica rígida, inflexível, do que a simplicidade é. Quero enfatizar que se trata do mesmo problema nestes exemplos, pois referem-se a questão de como relacionar a ideia de Tomas de um ser absolutamente simples do Puro Ato com o mundo criado de fluxo e tempo.

Uma vez que este contexto é apreendido, torna-se claro como isso pode conduzir ao ceticismo iluminista, o deísmo, o racionalismo e o ateísmo. Se tudo o que se pode conhecer de Deus são seus efeitos criados nesta vida, ou se Deus é colocado em um continumm de "ser" onde a essência divina é comparada ao ser criado, então não faz sentido acreditar neste Deus, especialmente quando o ponto de partida da teologia é empírica. Como poderia os dados empíricos dos sentidos dar qualquer "evidência" que seja de um ser que, mesmo de acordo com a definição da simplicidade divina, não tem qualquer relação com o ser criado? A essência divina absolutamente simples não tem causa, e não é ela própria causada ou uma causa, então de que adianta a analogia entis afirmar que é uma "Causa Primeira"? É uma frase sem sentido, uma vez que não nos diz nada e ainda nunca preenche a lacuna impenetrável da simplicidade Tomista. De que adianta dizer que o conhecimento humano é fundamentado no exemplar intocável na essência divina? Mais uma vez, é inútil e nos diz nada - de fato, é impossível dentro desses próprios fundamentos! Aqueles que leram a argumentação de Palamas com Barlão, imediatamente estarão a par com a semelhança da argumentação. Na verdade, é precisamente esses pontos - que Palamas fez a Barlão - que o leva a concluir profeticamente que as pessoas que adotaram este caminho seriam logicamente conduzidas ao ateísmo. Independentemente do que se pensa sobre a teologia oriental, Palamas foi presciente quando previu para onde a teologia ocidental iria.
São Gregório Palamas
O caminho para o ceticismo iluminista, o deísmo, o racionalismo e o cientificismo procede diretamente da teologia empírica que até mesmo precede Aquino em pensadores como Abelardo, sendo contemporâneo de Aquino em pessoas como Ockham. Embora Thomas não tenha sido um nominalista, ele aceitou o mesmo ponto de partida dos nominalistas, nomeadamente, o empirismo, e a teologia baseada empiricamente, que, novamente, deriva da analogia entis. O nominalismo é absurdo, e certamente pior do que Aquino, em muitos aspectos, mas, na medida em que os dois sistemas de pensamento partilham do mesmo ponto de partida empírico, eles eram consistentes.  Se Deus é banido de estar diretamente presente no mundo através de Suas energias imanentes, tudo o que resta é um mundo material de casualidade, presidido por uma divindade desconhecida trancada em si mesma. Essa posição é o deísmo, e o deísmo rapidamente leva ao ateísmo. Se os dados dos sentidos são a única fonte do conhecimento humano, e os dados dos sentidos são, assim, a fonte do conhecimento de Deus, nenhum desses efeitos criados causais equivalem ao conhecimento real da própria divindade. O divino nunca é acessado ou experimentado, mas somente uma série de causas criadas. Isso, meus leitores, é a opinião de David Hume - e é assim como o Tomismo conduz ao ateísmo do Iluminismo.


Por Jay Dyer, encontrado no https://jaysanalysis.com/2016/10/18/how-the-west-became-atheist-2/

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

O Terceiro Sexo (por Julius Evola)

I

Não há dúvida de que o aumento da homossexualidade e o avanço do chamado "terceiro sexo" representam um fenômeno característico do nosso tempo, presente não só na Itália, mas também em outros lugares. 

No que diz respeito à homossexualidade ou, mais precisamente, a pederastia, devemos destacar, como um traço particular, que não se limita em absoluto, como é o caso da grande maioria, a certos meios das classes superiores, a classe artística, os estetas, os decadentes entusiastas por perversões e experiências fora da norma, mas é um fenômeno que também tem alcançado as "pessoas simples" e as classes subalternas, sendo preservado apenas a classe média, em certa medida. 

Aqui não é lugar para aprofundar a questão da homossexualidade enquanto tal. Já tivemos a oportunidade, em uma de nossas obras[1], de estudar sistematicamente todas as formas possíveis do eros, sem nos limitar a formas "normais" e ocupando-nos até mesmo com outras épocas e outras civilizações. No entanto, naquele livro, passamos praticamente em silêncio sobre a homossexualidade. Isso porque, partindo do próprio conceito de sexualidade, mesmo em seu sentido mais amplo e além de todo preconceito social, não é fácil esclarecer o fenômeno homossexual. Este encontra-se essencialmente no campo da "patologia" em um sentido mais amplo e objetivo, que não ser definido por oposição ao que seria "saudável" segundo as concepções comuns da moral burguesa. Iremos abordar o assunto de forma sucinta, distinguindo dois aspectos. O segundo nos levará ao nível sociológico e, de alguma forma, para as mesmas considerações do capítulo anterior.

Em nossa obra mencionada anteriormente partimos da ideia de que toda a sexualidade "normal" deriva de estados psicofísicos suscitados pela oposição, como dois polos magnéticos, de dois princípios, do masculino e do feminino. Dizemos masculino e feminino em absoluto, compreendendo com isso dois princípios de ordem metafísica, anteriores e superiores ao plano biológico, princípios que podem estar presentes em variados graus entre os homens e entre as mulheres. Com efeito, em verdade, as mulheres e os homens "absolutos" existem tão pouco quanto o triangulo abstrato da geometria pura. Existem, ao contrário, seres nos quais é predominante a qualidade homem (os "homens") ou a qualidade mulher (as "mulheres"), sem que a outra qualidade por isso esteja completamente ausente. A lei fundamental da atração sexual, lei já percebida por Platão e Schopenhauer, depois exatamente formulada por Weininger, é que a atração sexual em suas formas mais típicas nasce do encontro de uma mulher e do homem de modo que a soma das partes da feminilidade e da masculinidade contida em cada resulte no total em um homem absoluto e uma mulher absoluta. Por exemplo, o homem que tivesse três quartos de homem e um quarto de mulher encontraria seu complemento sexual natural, aquele que se sentiria atraído de um modo irresistível e magnético, em uma mulher que tivesse três quartos de mulher e um quarto de homem: porque, então, a soma será precisamente formada por um homem absoluto e uma mulher absoluta, que se unem. Esta lei aplica-se para todo o erotismo intenso e profundo, elemental entre os sexos; não diz respeito as formas debilitadas, burguesas ou apenas "ideais" e sentimentais do amor e da sexualidade. 

Portanto, esta lei também nos permite descobrir os casos em que a homossexualidade é compreensível e "natural": são os casos em que o sexo, nos dois indivíduos que se encontram, não está muito diferenciado. Tomemos, por exemplo, um homem que não é mais que 55% "homem", e "mulher" no resto. Seu complemento natural será um ser "mulher" em 55% e um "homem" em 45%; mas tal ser, de fato, se diferencia pouco do homem, e uma vez que deve-se considerar não somente o sexo exterior, físico, mas também (se não especialmente) o sexo interior, este ser poderá ser apenas um "homem", o mesmo acontecerá no caso da mulher. 

É possível corresponder o conceito de "terceiro sexo" com as "sexualizações" pouco diferenciadas, ainda que se trate apenas, como vemos, de casos-limites. Assim é esclarecido a origem e a base das relações entre pederastas ou entre lésbicas como fenômenos "naturais" que procedem de uma conformação inata particular e da mesma lei que, com uma conformação diferente, conduz as relações normais entre os sexos. Nestes casos, mas só nestes casos, estigmatizar a homossexualidade como uma "corrupção" não faz sentido (porque, para seres como esses que falamos, as relações chamadas "naturais" não seriam naturais, mas contrárias a sua natureza); crer na eficácia de qualquer profilaxia ou terapia igualmente não tem sentido, rejeita-se pensar (e esta negação é razoável) que com medidas deste tipo seja possível modificar o que na biologia chama-se biotipo, a constituição psicofísica congênita. Se for preciso fazer um julgamento moral diante do estado que correspondem estes casos-limites, é especialmente sobre a pederastia que deve ser censurável, porque aqui um dos dois companheiros - o homem enquanto "pessoa" - é degradado, usado sexualmente como uma mulher. Não é o mesmo caso das lésbicas; se é verdade, assim como diziam os Antigos, que tota mulier sexus, isto é, se a sexualidade é o fundamento essencial da natureza feminina, uma relação entre duas mulheres não parece tão degradante. Desde que não se trate aqui da caricatura grotesca de uma relação heterossexual normal, mas de duas mulheres igualmente femininas, sem que uma delas, masculinizada e degenerada, desempenhe  o papel de homem em relação a sua companheira. 

Se esta estrutura geral não explica todos os casos de homossexualidade, isto é devido ao fato de que uma grande parte deles se enquadram em uma categoria diferente, em uma categoria de formas anormais em um sentido específico, determinadas por fatores extrínsecos, contra os quais os juízos devem ser diferentes. Se temos que dar uma visão geral do fenômeno tal como ele se apresenta na história e em outros povos, devemos considerar uma outra ordem de considerações. Queremos dizer que não mais trata-se de fenômenos explicáveis pela lei de atração sexual suscitada por uma forma qualquer de polaridade do princípio masculino e feminino (tomado em si mesmos, abstraindo sua dosagem variável entre os homens e as mulheres vivas). Por exemplo, a pederastia do mundo clássico representa um fenômeno à parte. Sabemos que Platão procurou relacioná-lo com o fator estético. Mas, neste caso, é evidente que não se pode falar mais de uma atração erótica em sentido estrito. Trata-se, com efeito, do caso em que a faculdade genérica de êxtase e embriaguez que desperta-se geralmente, devido à polaridade dos sexos, frente a um ser de sexo diferente, consegue ser acelerada por outros objetos que simplesmente servem de apoio ou de ocasião a esta faculdade.  Ao mesmo tempo Platão falou do eros como uma forma de "entusiasmo divino", de mania, próxima a outras formas que não tem nada a ver com o sexo, e que separa-se sempre do plano corpóreo, para não dizer carnal. Estabelece então uma progressão onde o encantamento e o eros despertados por um efebo representam apenas o grau mais baixo - o encantamento e o eros são suscitados em outros graus pela beleza espiritual - antes de chegar à ideia de beleza pura, abstrata e supra-terrestre. Até que ponto o tal "amor platônico" homossexual (que, ao seu nível mais baixo, não tendo uma mulher por objeto, seria mais "puro", não podendo ter, obviamente, finalidades genésicas) justificou verdadeiramente a prática efetiva da pederastia antiga, é outra questão. No caso da romanidade na decadência, certamente não há dúvidas.

A teoria de Platão teve certos equivalentes em certos meios islâmicos. Mas seria difícil relacionar com a pederastia comum. Por exemplo, entre os turcos, no exército otomano, chegava a um ponto em que a recusa do soldado em atender os desejos de um superior era tido como insubordinação (ver o caso relatado pelo coronel Lawrence). Por outro lado, neste caso, parece ter atuado, por vezes, um outro fator, alheio à sexualidade em sentido próprio; em uma confissão que nos foi relatada, tratava-se (na Turquia) da embriaguez suscitada no pederasta ativo de um "sentimento de potência". Mas há algo pouco claro aqui, visto o número de maneiras em que uma libido dominandi pode ser exercida e satisfeita em relações normais com mulheres. A pederastia no Japão nos põe um problema semelhante.

Em geral, todos esses fenômenos não se explicam como casos-limites da lei, indicada mais acima, da complementariedade sexual, porque não ocorre a condição de um sexo pouco diferenciado entre os dois parceiros. Em uma relação pederasta, um dos dois indivíduos pode ser fortemente viril, por exemplo (isto é, com uma elevada percentagem de qualidade "homem"); é o oposto de um relacionamento entre dois representantes do "terceiro sexo" como uma forma intermediária híbrida.

O fenômeno observado acima do desvio do eros que possibilita o despertar fora das condições normais da atração sexual (a bipolaridade dos sexos, com o magnetismo relacionado) e, em certo sentido também, os fenômenos de "deslocalização" do eros, sua transferência para um objeto diferente (fenômeno amplamente verificado pela psicanálise), podem, assim, serem considerados como uma explicação adicional da homossexualidade. Mas é preciso acrescentar a isto outra ordem de consideração. 




                                                                          II

Temos considerado a constituição dos indivíduos com relação ao sexo (sua "sexualização", o grau de diferenciação de sua qualidade homem ou mulher) como algo pré-formado e estável. No entanto, deve-se introduzir o caso em que, ao contrário, determinadas alterações tornam-se possíveis sob o efeito de processos regressivos, favorecidos eventualmente pelas condições gerais do meio, da sociedade e da civilização.

A título de premissa, é importante ter uma ideia mais precisa do sexo, nos seguintes termos. O fato de que só excepcionalmente se é cem por cento homem ou mulher e que em cada indivíduo subsistem resíduos de outro sexo está relacionado com outro fato, bem conhecido na biologia, que o embrião, inicialmente, é sexualmente indiferenciado, apresentando na origem as características de ambos sexos.  É um processo posterior (ao que parece, começa a partir do quinto ou sexto mês da gestação) que produz a "sexualização": logo, as características de um sexo prevalecerá e desenvolverá mais e mais, e aquelas do outro sexo se atrofiará ou passará para um estado latente (no domínio puramente somático, se tem como resíduos do outro sexo os mamilos no homem e o clitóris na mulher). Assim, quando o desenvolvimento estiver concluído, o sexo de um indivíduo masculino ou feminino deve ser considerado como o efeito de uma força predominante que imprime sua própria marca, enquanto que neutraliza e exclui as possibilidades originalmente coexistentes do outro sexo, especialmente no domínio corporal e fisiológico (no domínio psíquico, a margem de oscilação pode ser muito maior). 

Desta forma, é admissível pensar que este poder dominante, do qual depende a sexualização, seja enfraquecido pela regressão. Portanto, assim como na política, com o resultado do enfraquecimento da sociedade de toda sua autoridade central, as forças inferiores, até então travadas, podem libertar-se e reaparecer, também podemos verificar no indivíduo uma emergência dos caracteres latentes do outro sexo e, consequentemente, uma tendência bissexual. Nos encontramos, assim, novamente, diante da condição do "terceiro sexo", e é evidente que um terreno particularmente favorável ao fenômeno homossexual está presente. A condição é um decaimento interno, uma debilitação da "forma interior" ou, melhor, do poder que dá forma e que não se manifesta apenas na sexualidade, mas também no caráter, na personalidade, ao fato de ter, como regra, uma "face precisa".

Portanto, é possível compreender por que o desenvolvimento da homossexualidade entre as camadas populares e, eventualmente, sob formas endêmicas, é um sinal dos tempos, um fenômeno que se encaixa logicamente no conjunto dos fenômenos que faz com que o mundo moderno seja apresentado como um mundo regressivo. De tal forma encaminhamo-nos para as considerações formuladas no capítulo anterior.

Em uma sociedade igualitária e democratizada (em um sentido amplo), em uma sociedade em que não existe nem mais castas, nem classes funcionais orgânicas, nem Ordens; em uma sociedade em que a "cultura" tem algo de nivelado, extrínseco, utilitário, e em que a tradição deixou de ser uma força formadora e viva; em uma sociedade em que o pindárico "Seja você mesmo" tornou-se uma frase desprovida de sentido; em uma sociedade em que possuir um caráter é tido como algo luxuoso que só um tolo poderia permitir-se, enquanto que a debilidade interior é a norma; em uma sociedade que, em suma, tem confundido aquilo que pode estar acima das diferenças de raças, de povo e de nação com o que efetivamente está abaixo de tudo isso e que tem, portanto, um caráter informal e híbrido - em tal sociedade atuam forças que, em última análise, não poderiam deixar de ter incidência sobre a própria constituição dos indivíduos, atacando tudo que é típico e diferenciado, mesmo no domínio psicofísico. 

 A "democracia" não é um simples estado político e social; é um clima geral que conduz à consequências regressivas sobre o plano existencial. No domínio particular do sexos,  pode ser favorável, sem dúvidas, ao decaimento interno, este enfraquecimento do poder interior sexualizador que, como dissemos, é a condição da formação e da propagação do "terceiro sexo" e, com ele, de vários casos de homossexualidade, que os costumes atuais nos apresenta de uma forma que não pode deixar de nos chocar (2). Por outro lado, tem-se como consequência a banalização e a barbarização visível das relações sexuais normais entre os jovens das gerações recentes (causado por uma baixa tensão , devido à diminuição da polaridade). Incluso alguns fenômenos estranhos que, ao que parece, eram muito raros em outros tempos, a mudança do sexo no plano físico - homens que se tornam somaticamente mulheres, ou vice-versa - somos levados a considerá-los segundo o mesmo modelo e pelas mesmas causas: é como se as potencialidades do outro sexo - contidas em cada um - tivessem adquirido, no clima geral presente, uma possibilidade excepcional de recorrência e ativação, devido ao enfraquecimento da força central que, também biologicamente, define o "tipo", até chegar a deslocar e alterar o sexo do nascimento.

Em tudo o que podemos dizer de forma convincente até aqui, devemos apenas registrar um sinal dos tempos e reconhecer a completa inutilidade de todas as medidas repressivas de base social, moralista e conformista. Não é possível segurar a areia que escorre por entre os dedos, qualquer que seja o esforço que você fizer. Seria necessário voltar ao plano das causas primeiras, do qual todo o resto, em diferentes domínios, incluindo os fenômenos aqui considerados, são apenas consequências e atuar neste plano, produzir ali uma mudança essencial. Mas isso significa que o começo de tudo deveria ser a superação da civilização e das sociedades atuais, a restauração de um tipo de organização social diferenciada, orgânica, bem articulada graças à intervenção de uma força central viva e formadora. No entanto, uma perspectiva deste gênero parece cada vez mais uma pura utopia, pois, hoje, é no sentido exatamente oposto pra onde conduz o "progresso", em todos os domínios. Aqueles que interiormente não pertencem e não querem pertencer a este mundo, resta apenas a constatação das relações gerais de causa e efeito que escapam a loucura de nossos contemporâneos e a contemplação tranquila de todas as excrescências que, seguindo uma lógica bastante reconhecível, florescem no solo de um mundo em plena decomposição.

(1) Metafísica del sexo, Pequeña Bibliothêque Payot, París, 1976.

(2) Isto está de acordo com o fato de que hoje, o aumento das lésbicas é praticamente insignificante em relação aos pederastas; de fato, como Aristóteles já havia reconhecido, é eminentemente "homem" o portador do princípio em que repousa a "forma".

sábado, 6 de agosto de 2016

Feminismo e Ideologia de Gênero desde uma perspectiva Tradicional


Voltando ao tema que nos ocupa, sobre a importância do feminino como símbolo do "pilar da emancipação", e sua exclusão posterior do núcleo ideológico do paradigma moderno, se observarmos as antigas tradições espirituais pode-se notar que geralmente se tem associado ao masculino o ativo e o exterior, o aspecto exotérico de uma cultura, enquanto que o feminino está associado ao passivo, o interior, o oculto, aquilo que não é mostrado explicitamente à luz - a alma, por exemplo, está sempre relacionada com o feminino -, e assim, o feminino está relacionado não tanto com o polo exotérico, mas com a dimensão esotérica - interior - da tradição.

 Nós já discutimos em outros momentos sobre o conceito tradicional dos opostos, não como inimigos, que parecem apenas aparentemente, mas como complementares que deverá conduzir a um novo equilíbrio e ordem que os transcende. A superação de ambos produz em uma síntese criativa, que muitas tradições representavam basicamente sob duas imagens:

 - O "mito do andrógino '- assim, por exemplo, em Platão e em toda a tradição hermética ocidental (sob a forma de Rebis).
 
- O Hierogamos - em tradições cabalísticas, como foi recentemente exposto por Moshe Idel e muitas vezes presente na literatura mística ocidental. É a partir deste modelo de Eros platônico e Hierogamos, como forma de ultrapassar manifestação individual, que a cultura do amor cortês medieval se desenvolveu.
 
Às vezes, ambos os mitos tornaram-se complementares e referiam-se a momentos diferentes da manifestação, assim, por exemplo, na tradição platônica, o mito do 'andrógino primordial' foi adicionado como um complemento reconstitutivo do mito do Eros como força de união dos opostos.  




Se considerarmos por um momento o modelo de representação da Árvore Sefirótica, veremos que os pilares exteriores representam os polos masculinos e femininos, enquanto que o Pilar Central representa a (re)-união dos dois opostos em um equilíbrio perfeito, que é imediatamente associado com a ideia mítica do andrógino que estamos analisando. 

 Para mostrar como esta reunificação das potências humanas tomava a forma mítica da androginia e até que ponto o masculino e o feminino eram compreendidos como fatores complementares e não como opostos, tomaremos um exemplo da Cabala Hebraica, uma tradição considerada como o paradigma do machismo patriarcal mais indesejável para o pensamento profano e moderno. 

    "Todos possuem necessariamente aspectos masculinos e femininos. Isto é particularmente o caso de tzaddiq [o 'justo']. (...) O aspecto masculino significa o que sempre emana. (...) Mas também há um aspecto feminino, ou seja, aquele que recebe e atrai o influxo dos mundos superiores para os mundos inferiores". (Heshel de Apta, 'Ohev Yisra'el')

A referência ao 'justo' é particularmente significativa, uma vez que enfatiza como aquele que se realiza espiritualmente aperfeiçoa esta complementaridade entre os aspectos masculino e feminino - que tudo o que existe necessariamente possui - o que nos leva para a reconstrução mítica do andrógino primordial como dizíamos.  O "justo" realiza em si esta verdade primordial que simboliza o mito do andrógino, esse detalhe é importante como mostraremos no fim do artigo. Importa notar que esta ideia da presença inseparável do masculino e do feminino na totalidade do que existe já está contida na representação da Árvore cabalística, pois todas as séfiras, ou esferas, são femininas em relação aquelas que lhe são superiores - pois recebem delas - e masculina em relação aquelas que lhe são inferiores - pois emanam até elas.


O falso retorno do feminino na modernidade
 
No entanto, a modernidade não conjugou estes opostos para desenvolver um equilíbrio entre eles. Devido a algumas razões que analisaremos mais adiante, para o paradigma moderno, o polo que denominamos como o 'de controle' tem sido a tal ponto hegemônico no desenvolvimento da civilização europeia ocidental que tem expulsado por completo aqueles modos de ser e entender o mundo - assim como toda disciplina de conhecimento - que poderiam estar associadas com o polo feminino ou 'emancipador'. Este fenômeno de exclusão da diferença está, como veremos a seguir, na base da extrema rigidez do paradigma moderno e na consequente perda de flexibilidade e diversidade que o acompanha desde sua origem.

 Antecipando em quase dois séculos a revisão cultural que aquilo que o feminismo moderno tem pretendido nas últimas décadas, Goethe advertiu esta expulsão do feminino do quadro mental e conceitual ocidental e alegou que recuperou o que se chamou de o 'eterno feminino'. A este 'eterno feminino' haviam estado secularmente associados as disciplinas humanistas e liberais como as arte, a poesia e outras; disciplinas que, como facilmente nota-se, foram deslocadas do núcleo do novo paradigma dominante e que perdeu muito de seu prestígio na nova ciência, mais semelhante ao paradigma moderno, racionalista, rígido e excludente.

 Desde então, o retorno do feminino visto por Goethe não ocorreu, e o ocidente continuou a abandonar-se ao racionalismo mais extremo e o desenvolvimento mais titânico, que representa - para a modernidade - a essência da masculinidade.

Curiosamente, as primeiras críticas à hegemonia da masculinidade e do racionalismo, que anunciou de alguma forma o começo da desintegração do paradigma atual, vieram da psicanálise, que, ao seu modo, marcadamente anti-tradicional, ao menos voltou sua atenção para a alma humana, desprezada por séculos pelo paradigma racionalista e cientificista. Não queremos dizer com isso que a psicanálise desempenhou um papel saudável ou benéfico para a civilização ocidental, pois não acreditamos que sim, mas que deixou claro as rachaduras no paradigma moderno e colocou a atenção sobre algumas de suas principais falhas. Foi precisamente Jung que recuperou a antiga proposta de Goethe, reivindicando o papel do feminino em mitos e símbolos ocidentais, fazendo amplo uso de algumas expressões que já mencionamos antes, como o "eterno feminino" ou "andrógino".
 
Nós podemos mostrar graficamente as diferentes situações do feminino no contexto dos dois paradigmas - tradicional e o moderno - pela ilustração a seguir.



 
No paradigma tradicional fica claro que se estabelece uma diferença entre os polos masculino e feminino - na retórica moderna seriam "gêneros" - que aparentemente aparecem como opostos. Para representar graficamente tal relação entre o masculino-feminino temos nos inspirados mais uma vez a Árvore Sefirótica e seus dois pilares ou colunas, qualificados tradicionalmente como masculino e feminino. Entretanto, seria um erro interpretar essa diferença como uma superioridade de um polo sobre o outro, porque é claro que se quer indicar a complementariedade. 
 
No fundo, esta divisão, corresponde aquela que já citamos entre a Razão e o Intelecto, sendo o polo racional, o masculino - aquele que requer o desenvolvimento lógico e reflexivo - e o polo intelectual, o feminino - que é considerado intuitivo e direto. O polo feminino seria o âmbito típico de poetas e artistas, mas também dos profetas e xamãs, e o masculino, da ciência e da filosofia racionalista.

De modo que, estritamente falando, o polo feminino deve ser um pouco mais elevado que o masculino, pois a faculdade intelectual, como já dissemos aqui, é superior, por natureza, à faculdade racional, uma vez que é mais principial: está mais próxima dos princípios imutáveis e não depende de acidentes.
 
Justificar tudo o que disse acima seria muito longo, especialmente por causa da imensa propaganda existente direcionada para nos convencer do contrário, então nós preferimos deixar para outra ocasião. Só diremos, como exemplo histórico para ilustrar estas reflexões, que, na Grécia antiga, o profetismo era uma coisa quase exclusiva as mulheres, porém estas - sibilas, sacerdotisas, hetairas - não eram tomadas como inferiores, ao contrário, eram respeitadas por toda a sociedade e em particular por os homens, a tal ponto que o próprio Sócrates diz ter sido iniciado nos Mistérios por uma mulher, Diotima, a qual ele tratava como mestra, com veneração e respeito. Algo inédito e surpreendente para a história moderna, na qual se acusa de doença mental o fenômeno místico, onde se encontra na literatura acadêmica que muitas místicas e visionárias medievais - e algumas delas santas, incluindo até mesmo Doutoras da Igreja - descritas como neuróticas. Claro que é necessário nunca ter lido uma página escrita por estas mulheres nem saber sobre sua vida - assombrosamente ativas - para dizer tais coisas. Gostaríamos de saber se talvez esta não é uma negação a todo custo do nível supra-racional, um desprezo absoluto pelo "feminino".
 
Além do mais, o modo em que a civilização clássica grega aceitava a religião, o misterioso e, em geral, o não-racional (em vez de irracional) - incluindo certas tradições xamânicas que sobreviveram entre eles por muitos séculos - como parte do cotidiano, refuta claramente a imagem hiper-racionalista que o ocidente tem tentado construir desta parte da história em relação com outras civilizações daquela época. Mais uma vez, o núcleo ideológico - e supersticioso - que caracteriza a modernidade não se vê afetado pelo fato de que a realidade desmente seus falsos mitos repetidos ou que seus argumentos sejam tão escandalosamente falsos. 
 
E, finalmente, ver nessa diferença uma injustiça flagrante a ser reparada supõe algo muito próprio do pensamento homogeneizador e impositivo que funciona na modernidade: negar a realidade de que estas diferenças existem. Acaso os homens e as mulheres não são diferentes? Acaso diferente é sinônimo de inferior? E, além do mais, são diferentes por natureza, o que parece ser um detalhe especialmente odioso para modernidade, obcecada desde décadas em mostrar que tais diferenças são relacionadas ao ambiente... É o homem moderno que vê "opressão" e "injustiça" e que deve libertar-se de todas as partes, embora, talvez a maior injustiça - especialmente quando se referem as sociedades passadas que não compreendemos nada - esteja no seu olho e em seu olhar do que na própria realidade.

Dito isto, e retornando à ilustração anterior, na qual o modo pelo qual o feminino é representado nos paradigmas moderno e tradicional, com o esquecimento e desprezo do poder intelectual pelo paradigma racionalista, o polo feminino foi completamente subordinado ao polo masculino, viu-se privado de qualquer direito de existir - representava o anormal e devia ser abolido - e assim foi banido para as profundezas do subconsciente, o único lugar onde poderia sobreviver. Neste ponto, é muito interessante as reflexões de Patrick Harpur, sobre como aquilo que é 'aprisionado' e reprimido no subconsciente volta à consciência de forma cada vez mais monstruosa e problemática, criando, entre outras coisas, doenças mentais e desequilíbrio social. É para isto que Freud e a psicanálise dirigiram sua atenção, como observamos anteriormente. Mas, esta realidade dolorosa, óbvia, não importa de modo algum para a elite intelectualista do paradigma hegemônico da modernidade, nem as doenças de seus habitantes nem os desastres da sociedade que movem as ciências sociais modernas - a (pseudo)-psicologia moderna por exemplo - faz com que abandonem o tão querido paradigma cientificista atual.

 Um subconsciente-feminino que, aliás, perdeu o polo superior - espiritual - que deve guiar a vida humana, não demorou em voltar-se para arte moderna, já desde o romantismo - mas ainda mais nas vanguardas do século XX  - em plena decomposição. O que deixa bem claro que em verdade não há lugar para a arte verdadeira na racionalidade exclusivista, o que quer dizer que o paradigma moderno expulsou a arte para fora de si para poder impor o seu modelo de vida e sociedade, radicalmente pragmático e extremamente vulgar. Isto pode surpreender alguns, mas ficará claro em mostrar que a única 'arte' - se assim pode ser chamada, o que não cremos - que permite o paradigma racionalista ocidental é precisamente aquela que brota da parte mais inferior, passional e irracional da alma humana. Uma 'anti-arte' que, em vez de apontar para algo superior, claramente conduz ao infernal. Com efeito, a arte é uma expressão privilegiada da alma humana e, quando esta alma está doente ou é diretamente negada, que arte pode surgir?
 
Em última análise, no novo paradigma racionalista, cientificista e mecanicista, caracterizado antes de tudo por des-animar - extrair a alma - o mundo, o feminino foi relegado para o subconsciente - identificado com o emocional, o enfermo, o irracional, bruxaria, magia, etc... - e o masculino identificou-se de forma exclusiva com a racionalidade técnico-prática, materialista. Assim, as trevas da razão veio a obscurecer a luz do intelecto.

Em conclusão, acreditamos que é impossível uma crítica profunda à racionalidade prática impositiva e excludente que tem sido praticada no ocidente ao longo dos últimos séculos se se carece de uma perspectiva tradicional que situe a razão e o intelecto em seus devidos lugares. Sem essa perspectiva, todas críticas serão parciais ao paradigma ocidental, e nos encontraremos novamente diante do paradoxo que exige o 'cumprimento do programa ilustrado', quando é este mesmo programa - social e epistemológico - a origem do problema. E esperamos que nunca chegue a ser cumprido, pois o desastre seria de proporções cósmicas.


O feminismo moderno visto desde a Tradição

Disto isto, pode parecer que o feminismo moderno venha a recuperar esta feminilidade perdida a que nos referimos, secularmente associado com o 'pilar da emancipação' e testemunho inegável de outros modos de ser e compreender o mundo, mas a verdade é que este está longe de ser o caso, pois o feminismo moderno é verdadeiramente a antítese do que tradicionalmente simboliza o feminino, opondo-se radicalmente e visando substituir permanentemente. 

Embora seja verdade que durante décadas se reivindica um retorno do feminino à sociedade, com a repetida acusação de promover valores exclusivamente associados à masculinidade - racionalismo, competitividade, etc -, o retorno que tomou lugar é meramente exterior e não envolve a menor mudança no modo de entender e construir a ordem social.  Ao contrário: o que trouxe consigo, esta espécie de 'tendência cultural', que é o feminismo moderno, não tem sido uma mudança no modo de compreender o mundo nem uma transformação revolucionária do mesmo, como o discurso de poder quer nos fazer querer acreditar, mas apenas uma maior visibilidade das mulheres na sociedade, totalmente exterior e, portanto, sem importância para todos efeitos: as mulheres ainda estão completamente imersas em uma sociedade que continua a ser a mesma que era antes de sua especial 'libertação feminista', imersa em um paradigma ideológico e social radicalmente machista e racionalista.

Assim, a maior presença exterior do feminino não se constitui como uma alternativa - nem como uma dissidência - em relação à ordem do paradigma predominante, proveniente do 'pilar do controle', mas, ao contrário, representa um passo em direção ao aprofundamento nele mesmo e em sua hegemonia no ordenamento da sociedade, destruindo as últimas resistências ao mesmo, a saber: a família e a figura da maternidade.

Não é por acaso que a maternidade tornou-se a 'besta negra' do feminismo moderno mais radical, contra a qual se dirigem as mais duras injúrias progressistas, o que confirma outra de nossas teses: o ódio da modernidade à natureza.  É a clássica oposição entre a natureza e a cultura - expressa também como irracional vs racional -, onde a natureza deverá ser completamente abolida para criar uma realidade exclusivamente construida, isto é, técnica, abolindo mais uma vez o emocional e o interior em prol do pragmatismo.

Como podemos ver, mais uma vez, a modernidade não se trata de integrar a diferença - o 'pilar da emancipação' que está associado com o natural e o irracional - mas ao contrário, de eliminá-lo. Assim resulta que, desvendando a retórica progressista que cativa a sociedade, a mulher não é um 'sujeito a libertar-se', mas sim um 'objeto a ser destruído' por parte do feminismo como projeto político e da revolução feminina como fato social. Acrescentamos que, o que se esconde por trás da promessa de libertar o homem e a mulher de todas suas 'correntes' é apenas isto: negar e roubar sua natureza essencial; toda essência, toda qualidade, deve ser destruída para que, por fim, a nova ordem seja imposta, o novo mundo que a modernidade tanto anseia. Finalmente chega-se a imersão na matéria indiferenciada e desqualificada para realização do "reino da quantidade", nas palavras de Guénon.

O que dizemos é confirmado quando comprova-se que o feminismo moderno não se trata da contribuição da mulher para a civilização moderna dos valores que o feminino tradicionalmente incorporaram nas sociedades pré-modernas, trata-se exatamente do oposto: esses valores tradicionais, associados ao 'pilar da emancipação', simbolizada pela mulher, família, o respeito às tradições dos antepassados e o mundo rural, são vistos pelo feminismo moderno não como valores a serem recuperados, mas como desvalores a serem combatidos e apagados, vestígios de um passado que deve ser completamente esquecido - mas uma vez nos deparamos com a 'cultura do palimpsesto' -. O feminismo moderno é apenas um passo nesta direção, da supressão das raízes e desenraizamento do homem moderno, o que significa a construção de uma nova feminilidade ultra-moderna, cada vez mais próxima do 'pólo masculino' que governa a sociedade e que tanto se tem criticado e se diz combater. A realidade é que dessa forma não se combate em verdade o 'pilar do controle' mas, ao contrário, serve a ele mesmo mediante a destruição de suas possíveis alternativas.

Por esta razão, o feminismo nascido depois da Segunda Guerra Mundial,  descaradamente anti-tradicional, não significa o retorno da visão emancipatória e feminina da realidade, mas envolve, ao contrário, sua anulação final com base na derradeira destruição das poucas resistências que poderiam derrubar o domínio absoluto do 'pilar do controle' monolítico e seus ideais humanistas.


Feminismo e machismo, dois lados da mesma modernidade anti-tradicional.

Algumas considerações finais se impõem. Em primeiro lugar, se reconhecermos que o feminino e a emancipação foram expulsos do núcleo paradigmático Ocidental e da construção de sua identidade a partir de sua origem, o retorno do feminino, se é real e não meramente uma aparência revolucionária - uma máscara de poder - como tem sido apresentada pelos diversos feminismos, deve implicar o fim - ou pelo menos uma certa alternativa - da mesma mentalidade moderna lhe marginalizou.

E, uma vez que a modernidade - como paradigma de conhecimento - exclui o polo feminino da emancipação por definição, o retorno dos valores e realidades que isso implica nunca poderá ocorrer dentro da própria modernidade. Portanto, aqueles "feminismos" que defendem e fortalecem a modernidade - que reivindicam uma maior conformidade com o programa ilustrado - só podem ser julgados como cúmplices da ordem vigente, cúmplices da destruição daquilo que verdadeiramente sempre simbolizou o feminino.

Por outro lado, verificamos muitas vezes que o conceito de feminismo opõe-se a seu conceito antagônico: o machismo. Assim, é extremamente necessário notar o paradoxo de que o feminismo moderno, na medida em que é precisamente moderno, não pode lutar contra o machismo sistêmico que diz denunciar - o tão conhecido patriarcado - pois faz parte indissoluvelmente da ordem social que lhe moldou e dele necessita para existir.

O feminismo, com toda sua aparência de oposição e reivindicação, não é mais que um passo no avanço do paradigma machista hegemônico dos últimos séculos e que moldou a civilização atual. Um paradigma em que a técnica, o estado e o capital têm prioridade sobre o indivíduo, seja homem ou mulher. Esta é a terrível realidade de uma sociedade que mistifica um modo de conhecimento - a técnico-ciência - que não está a serviço dos seres humanos, mas de um poder cada vez mais distante e desumanizado, e denunciar as desigualdades de gênero antes de denunciar esta verdade - que se encontra na base daquelas - é demagogia ou mascarar a verdade.

Assim, portanto, o feminismo não é uma luta contra o machismo - contra o qual, ainda se quisesse, não poderia combater, pois são filhos de um mesmo pai: a modernidade anti-tradicional -, mas antes de tudo uma luta contra o gênero, enquanto divisão socialmente apropriada dos papéis masculinos e femininos.

É evidente que o fato de que exista diferenças de 'gênero', assim como seu reconhecimento explícito, não implica por si só que um gênero submeta-se a outro. Mas, esta evidência lógica não significa nada para o feminismo moderno e sua propaganda moderna de desprezo de todo o passado, nem altera em nada seu programa político de redesenho e desconstrução da sociedade. Esta é a verdadeira agenda oculta do feminismo enquanto agente político de divisão e dominação social: a abolição de toda diferença entre o homem e a mulher. Por isso o feminismo jamais afirmou ou reivindicou os valores tradicionais da feminidade - aqueles que chamam de 'cúmplices do patriarcado' - mas antes pretende redefinir a feminidade, dissolvendo-a e destruindo tudo o que possa ser feminino. Aqui, seu caráter anti-tradicional é claramente demonstrado.

Subjacente a este propósito está o caráter que já definimos como fundamental na modernidade desde seu início: o ódio pela diferença; o qual é inevitavelmente seguido por seu corolário positivo: o igualitarismo. Esta abolição dos gêneros não conduz a igualdade alguma mas, como vimos no desenrolar destas páginas, a um estado de coisas muito consistente com o projeto social da modernidade: o igualitarismo a todo custo e a homogeneidade da sociedade.

Ou seja, na linguagem que estamos empregando para definir este paradigma, o que se busca não é outra coisa senão a ausência da diversidade, pois, como já vimos, a diversidade - assim como a liberdade verdadeira, não a libertação revolucionária - é vista como uma ameaça potencial à ordem vigente do 'pilar do controle'. A modernidade considera a igualdade como a 'ausência de diferença' - a conhecida doutrina de 'todos somos iguais' - e, especialmente, tendo em conta a prioridade que o exterior e a aparência possuem nas mentalidades modernas mais radicais, a 'ausência de diferenças exteriores'.


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Ainda há mais. Este igualitarismo esconde atrás de si uma realidade ainda mais inquietante. Tem sido dito muitas vezes que a modernidade impõe um igualitarismo por baixo e há evidências irrefutáveis disso, como visto nas tendências que gradualmente ganham força na sociedade de hoje, como a desconstrução de gêneros, os novos tipos de mulher e de (pseudo)-feminidade - marcados por uma exagerada androgenização, mais uma vez anti-tradicional, incluindo o estético - ou na moda conhecida como unisex, por exemplo, sem necessidade de falar nas novas sexualidades e modelos de relacionamento que todo tempo estão a inventar. É em direção a esta "ausência de diferença" para onde aponta as conquistas feministas do último século.

O que está por trás dessas atitudes não é apenas uma campanha de destruição da masculinidade, aqui há um ódio de igual forma ao masculino e feminino. Portanto, para o feminismo, assim como para todo o projeto globalista, não se trata em combater a desigualdade, mas destruir toda diferença, uma diferença que parece incomodar especialmente a modernidade mais radical.

Não é surpreendente, portanto, que a feminização e a desconstrução do homem - exterior e também de seu caráter - tenha acontecido lado a lado uma extrema androginização da mulher. Tal tendência, já denunciada no início do século XX, demonstra que o paradigma machista-racionalista não mudou em nada e continua a ser hegemônico em todos lugares, inclusive entre as mulheres, pois estas, em vez de afirmarem-se como o que são - mulheres - tem imitado quase sempre o protótipo do sexo masculino para sentirem-se aceitas na sociedade que dizem criticar, já desde os primeiros coletivos feministas - o que denota algo patológico e não um desejo de emancipação; na realidade invejam a situação social dos homens - e mostram-se cada vez mais na sociedade naquilo que antes era competência exclusiva dos homens. E, sobretudo, imitando o polo masculino em seu pior, isto é, naquelas atitudes mais brutas e grosseiras, como é evidente para qualquer pessoa que está livre de preconceitos. Para realizar tudo isso, a ideologia feminista, que, como toda ideologia moderna é "contra alguma coisa" - define-se por seu inimigo - vem aplicando a tática de se vitimizar, problematizar e inferiorizar as mulheres até o ponto em que odeiam quem são.

Sendo o feminismo moderno mais um subproduto, e dos mais grotescos, da pós-modernidade anti-tradicional, aquela que celebra destruir a si mesma, compartilha plenamente com ela seu característico ódio a si mesmo, a seu passado e a tudo o que é; e sua última missão, não é acabar com o 'patriarcado' moderno - representado sobretudo pelo par Estado-Mercado - mas redefinir a noção de sujeito, desconstruir as pessoas desde sua sexualidade e redesenhar a sociedade... em última análise, dissolver.

O feminismo é, portanto, uma força dissolvente mais forte; um verdadeiro niilismo, dos muitos que atualmente desmembram nossa sociedade.


O andrógino moderno como inversão do andrógino primordial.

Chegamos a conclusão de nossa análise. Como podemos ver, estamos aqui diante da inversão exata do mito tradicional do andrógino primordial. Se o ideal dos alquimistas e dos hermetistas cristãos era essencialmente a integração em sua personalidade de suas duas polaridades - entendidas como complementariedades -, o que é, antes de tudo, um processo interior de assunção da própria natureza, não excludente mas inclusivo, em que pouco poderia importar a aparência externa, o ideal do "novo andrógino" é o nivelamento por baixo entre o homem e a mulher, uma espécie de dessexualização e queda na indiferenciação da matéria primordial. Tal indiferenciação primordial é sobretudo uma imagem da ausência de qualidades, o que é um sinal evidente do 'reino da quantidade' como já nos avisou magistralmente René Guénon.

  Assim, a convergência dos gêneros masculino e feminino em um universo unisex, é um caso análogo ao que representa o ideal da proletarização universal que anunciavam e sonhavam os utopismos do século XIX, contrário a ideia tradicional da ordem social baseada em castas. O proletário não supera as castas por cima - o que seria o ideal do ativarna hindu - mas sim por baixo, anunciando a desqualificação completa do homem - que é, de fato, o avarna, literalmente "sem cor", isto é, sem qualidade. Ambos modelos de igualitarismos revolucionários envolvem a desqualificação do sujeito e, portanto, um rebaixamento de sua dignidade ontológica, um sujeito que, coisificado, passa a ser uma peça do sistema, sem qualidades que lhe defina ou lhe diferencie do resto de outras peças, e, sendo assim, perfeitamente intercambiável por qualquer outra peça, em uma homogeneidade que é uma imagem dessa indiferenciação própria da Matéria Prima que dizíamos e que reflete na mesma sociedade a ideia da cadeia de montagem industrial. Tudo isso anuncia um futuro de prevalência indiscutível dos sem castas: a 'ditadura do proletariado', uma massa de pessoas sem passado, sem raízes, sem terra, controlados por um sistema de produção completamente exteriorizado e alheio; como pode-se defender semelhante projeto social?

Se o andrógino tradicional era antes de tudo uma realidade interior e implicava uma superação dos gêneros - para o qual é necessário aceitar e assumir previamente-, com vistas de dar lugar a uma ordem e equilíbrio que transcenderia por cima, pelo alto - tal e como citamos o modelo do ativarna, o homem que supera toda as castas-, agora, o novo equilíbrio unisex passa a negar a diferença, e até mesmo a existência, de tais realidades masculinas e femininas, igualando por baixo, em sua parte inferior, em um retorno à indiferenciação da matéria sem forma, isto é, sem qualidade. Se por um lado a androginia tradicional simboliza a integração da alma do sujeito, em um interior harmônico e equilibrado, a perfeição da alma humana; a androginia pós-moderna, por outro lado, é sua antítese terminal: representa a indiferenciação primordial contida no caos primevo, uma descida ao inferior - o reino da matéria - e, como tal, pode certamente ser descrita como infernal.

Mais um exemplo de como a modernidade é a inversão infernal - inferior - da ordem tradicional ou normal.


Escrito por Ramés, no blog Agnosis (link)