sexta-feira, 30 de outubro de 2015

A Ilusão da Vida Vulgar (Por René Guénon)

             A atitude materialista, quer se trate de materialismo explícito e formal, quer de simples materialismo «prático», traz necessariamente, em toda a constituição «psico-fisiológica» do ser humano, uma modificação  real e bastante importante; isto é fácil de compreender, e, de facto, basta olhar à nossa volta para constatar que o homem moderno se tornou verdadeiramente impermeável à qualquer influência que não seja a que está ao alcance dos seus sentidos; não só as suas faculdades de compreensão se tomaram mais limitadas, mas o próprio campo da sua percepção, da mesma forma, se restringiu. 

                    Resulta deste fato uma espécie de reforço do ponto de vista profano, já que, se este ponto de vista nasceu inicialmente de um defeito de compreensão, logo, de uma limitação das faculdades humanas, esta mesma limitação, ao acentuar-se e ao estender-se a todos os domínios, parece logo em seguida justificá-la, pelo menos aos olhos daqueles que são afectados por ela; - que razão poderiam eles ter ainda, com efeito, em admitir a existência do que não podem realmente conceber nem perceber, isto é, de tudo o que lhes poderia mostrar a insuficiência e a falsidade do ponto de vista profano em si ?

                  Daí provem a idéia daquilo que se designa comummente como a “vida vulgar”, ou a «vida comum»; o que se entende por esta expressão, com efeito, é bem, e antes de mais, alguma coisa onde, por exclusão do carácter sagrado, ritual ou simbólico (quer se tome no sentido especialmente religioso ou segundo qualquer outra modalidade tradicional, pouco importa, já que se trata igualmente de uma acção efectiva das «influências espirituais» em todos os casos), nada que não seja puramente humano intervêm nela de qualquer modo; e mesmo estas designações implicam, além disso, que tudo o que ultrapassa uma tal concepção, mesmo quando não é expressamente negado, está pelo menos relegado a um domínio do «extraordinário», considerado como excepcional e inabitual; há, pois, propriamente falando, uma inversão da ordem normal, tal como é representada pelas civilizações integralmente tradicionais, em que o ponto de vista profano não existe de modo nenhum, e esta inversão só pode conduzir logicamente à ignorância ou à negação completa do «supra-humano». 

                 Fora isso, alguns chegam mesmo a utilizar, com o mesmo sentido, a expressão «vida real», o que, no fundo, é uma singular ironia, porque a verdade é que aquilo que eles chamam desse modo é, pelo contrario, a pior das ilusões; não queremos dizer com isto que o que se inclui nessa expressão seja, em si mesmo, desprovido de qualquer realidade, mesmo que essa realidade, que é afinal a da ordem sensível, esteja no grau mais baixo de todos, e que acima dela não haja mais do que aquilo que está propriamente abaixo de toda a existência manifestada; mas é a maneira como todas as coisas são encaradas que é inteiramente falsa, e que, separando-as de qualquer princípio superior, lhes nega precisamente aquilo que faz toda a sua realidade; é por isso que não existe efectivamente um domínio profano, mas tão somente um ponto de vista profano, que se faz cada vez mais invasor, até englobar finalmente toda a existência humana.

          Vê-se assim facilmente nesta concepção da «vida vulgar», como se passa quase insensivelmente de um estágio a outro, e como a degenerescência se vai acentuando progressivamente: começa-se por admitir que certas coisas sejam subtraídas a qualquer influência tradicional, depois estas mesmas coisas são consideradas como normais; daqui facilmente se chega a considerá-las como as únicas «reais», o que acaba por afastar como «irreal» todo o «supra-humano», e, como o domínio do humano vai sendo concebido de forma cada vez mais limitada, vai-se reduzindo-o a uma única modalidade corporal, e afastando tudo aquilo que é simplesmente de ordem supra-sensível; basta reparar como os nossos contemporâneos empregam constantemente, e mesmo sem pensar, a palavra «real» como sinônimo de «sensível», para nos darmos conta que é neste último ponto que eles se encontram efectivamente, e que esta maneira de ver se incorporou de tal modo na sua própria natureza que se 
tornou para eles quase instintiva. 

                   A filosofia moderna, que afinal não é, em princípio, mais do que uma expressão «sistematizada» da mentalidade geral, antes de reagir por seu lado numa certa medida, seguiu uma marcha paralela a esta: começou com o elogio cartesiano do «bom senso», de que já falamos atrás, e que é bem característico a este propósito, porque a "vida vulgar" é seguramente, por excelência, o domínio deste «bom senso», também conhecido por «senso comum», tão limitado como ela e feito do mesmo modo. A seguir do «racionalismo», que, no fundo, não é mais do que um aspecto especificamente filosófico do «humanismo», isto é, da redução de todas as coisas a um ponto de vista exclusivamente humano, chega-se pouco a pouco ao materialismo ou ao positivismo: quer negue expressamente, como faz o primeiro, tudo o que está para além do mundo sensível, quer se contente, como o segundo (que por isso mesmo gosta de se chamar «agnosticismo», gritando um título de glória que não é mais do que a confissão de uma incurável ignorância, em recusar ocupar-se dele declarando-o «inacessível» ou «inconhecível», o resultado é, de facto, exactamente o mesmo nos dois casos, e é bem aquele que acabamos de descrever.



                      Voltaremos a dizer que, para a maior parte das pessoas, se trata naturalmente daquilo a que podemos chamar um materialismo ou um positivismo «prático» independente de qualquer teoria filosófica, que é e será sempre coisa bastante estranha para a maioria; mas isso é mais grave ainda, não só porque um tal estado de espírito adquire por isso mesmo uma difusão incomparavelmente maior, mas também porque é tanto mais irremediável, quanto mais irreflectido e menos claramente consciente, porque isso prova que penetrou verdadeiramente e impregnou toda a natureza do indivíduo. 

                          O que já dissemos do materialismo de facto e da maneira como se acomodam a ele as pessoas que se crêem «religiosas» mostra-o bem; e, ao mesmo tempo, vê-se por este exemplo que, no fundo, a filosofia propriamente dita não tem toda a importância que alguns lhe querem atribuir, ou que, pelo menos, só tem enquanto pode ser considerada como «representativa» de uma certa mentalidade, mais do que agindo efectiva e directamente sobre esta; de resto, poderia uma concepção filosófica qualquer ter o mais pequeno sucesso se não respondesse a algumas das tendências predominantes da época em que é formulada? Não queremos dizer com isto que os filósofos não têm, tal como os outros, o seu papel no desvio moderno, o que seria exagerado, só que esse papel é mais restrito do que se poderia supor à primeira vista, e bastante diferente do que pode parecer exteriormente; aliás, de um modo muito geral, o que é aparente é sempre, segundo as próprias leis que regem a manifestação, mais uma conseqüência do que uma causa, um ponto de chegada mais do que um ponto de partida , e em todo o caso, não é nunca aí que é preciso ir buscar aquilo que age de maneira verdadeiramente eficaz numa ordem mais profunda, quer se trate nela de uma acção que se exerce num sentido normal e legítimo, quer o contrário, como no caso que referimos presentemente.

                 O próprio mecanicismo e o materialismo só puderam adquirir uma influência generalizada ao passar do domínio filosófico ao científico; o que diz respeito a este último, ou aquilo que se apresenta com ou sem razão como revestido deste carácter «científico», tem seguramente, por razões diversas, muito mais acção do que as teorias filosóficas sobre a mentalidade vulgar, na qual há sempre uma crença pelo menos implícita na verdade de uma «ciência», cujo carácter hipotético lhe escapa inevitavelmente, enquanto que tudo o que se qualifica de «filosofia» deixa essa mentalidade vulgar mais ou menos indiferente; a existência de aplicações práticas e utilitárias num caso, e a sua ausência, no outro, não é totalmente alheia a isso. Este facto leva-nos mais uma vez à idéia da «vida vulgar», na qual entra efectivamente uma boa dose de «pragmatismo»; e o que dizemos é ainda, claro, totalmente independente do facto de alguns dos nossos contemporâneos quererem erigir o «pragmatismo» a sistema filosófico, o que só foi possível devido exactamente ao cariz utilitário que é inerente à mentalidade moderna e profana em geral, e também porque, no estado actual de decadência intelectual, se chegou a perder completamente de vista a própria noção de verdade, de tal modo que a de utilidade ou de comodidade acabou por substitui-la totalmente. 

                   Seja como for, logo que se convencionou que a «realidade» consiste exclusivamente naquilo que cai no domínio dos sentidos, é natural que o valor que se atribua a uma coisa qualquer tenha, como medida, de certo modo, a sua capacidade de produzir efeitos de ordem sensível; ora, é evidente que a «ciência» considerada à maneira moderna, como essencialmente solidária da indústria, se não mesmo confundida mais ou menos completamente com esta, deve ocupar o primeiro lugar, e por isso mesmo encontra-se o mais possível misturada a essa «vida vulgar», da qual se torna mesmo um dos principais factores; em contrapartida, as hipóteses sobre as quais ela pretende fundar-se, por mais gratuitas e mais injustificadas que possam ser, beneficiarão também dessa situação privilegiada aos olhos do vulgo.

                    É claro que, na realidade, as aplicações práticas não dependem em nada da verdade destas hipóteses, e podemos, aliás, perguntar-nos o que seria uma tal ciência, tão nula enquanto conhecimento propriamente dito, separada das aplicações a que dá lugar; mas, tal como está, é um facto que esta ciência tem «sucesso» e, para o espírito instintivamente utilitário do «público» moderno, esse «sucesso» torna-se uma espécie de «critério de verdade», se é que se pode falar aqui de verdade seja em que aspecto for.

                   Quer se trate de qualquer ponto de vista, filosófico, científico, ou simplesmente «prático», é evidente que tudo isto, no fundo, representa outros tantos aspectos diversos de uma só e mesma tendência, e também que essa tendência, como todas as que igualmente são constitutivas do espírito moderno, não pode certamente desenvolver-se espontaneamente; já tivemos bastantes vezes oportunidade de nos explicar sobre este último ponto, mas isto são coisas sobre as quais não é demais insistir; e teremos ainda que voltar a este assunto, quando falarmos do lugar que ocupa o materialismo no conjunto do «plano» segundo o qual se efectua o desvio  moderno. 

                 Claro que os próprios materialistas são, mais do que ninguém, incapazes de se darem conta destas coisas e até de conceberem a possibilidade da sua existência, de tal modo estão cegos pelas suas idéias pré-concebidas, que lhes fecham todas as saídas fora do domínio estreito em que estão habituados a mover-se; e sem dúvida que ficariam espantados se soubessem que existiram e que existem homens para quem aquilo que eles chamam «vida vulgar» é a coisa mais extraordinária que se possa imaginar, já que ela não corresponde a nada daquilo que se produz realmente na sua existência.  
   
             É, no entanto, assim, e o que é mais, são estes homens que devem ser olhados como verdadeiramente «normais», enquanto que os materialistas com todo o seu «bom senso» tão gabado e todo o «progresso» do qual se consideram orgulhosamente os produtos mais acabados e os representantes mais «avançados», não são, no fundo, mais do que seres nos quais certas faculdades estão atrofiadas, ao ponto de terem sido completamente abolidas. 

                  É, aliás, só sob esta condição que o mundo sensível pode aparecer-lhes como um sistema «fechado», no interior do qual se sentem em perfeita segurança; resta-nos ver como esta ilusão pode, em certo sentido e em certa medida, ser «realizada», pelo próprio materialismo; mas veremos também mais adiante, como, apesar disso, não representa mais do que um estado de equilíbrio eminentemente instável, e, de que maneira, no ponto em que as coisas estão actualmente, esta segurança da "vida vulgar», na qual se baseou até agora toda a organização exterior do mundo moderno, se arrisca fortemente a ser perturbada por «interferências» inesperadas.

René Guénon 
Cap XV de "O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos"
Ed. Irget, S. Paulo, 2009

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Cultura em Crise: As Teorias visionárias de Pitirim Sorokin

Introdução

Pitrim Sorokin, um grande sociólogo do século 20, é alguém que você precisa conhecer. Considere essa citação:
O organismo da sociedade e a cultural ocidental parece estar passando por uma das mais profundas e significativas crises de sua vida. A crise é muito maior que uma normal; sua profundidade é insondável, seu fim ainda não está à vista, e toda sociedade ocidental está envolvida nela. É a crise de uma cultura Sensível, em sua fase madura, a cultura que dominou o mundo ocidental durante os últimos cinco séculos... 
Devemos pensar, portanto, que, se muitos ainda não apreenderam claramente o que está acontecendo, eles pelo menos tem uma vaga sensação de que o problema não é apenas de "prosperidade", ou "democracia", ou "capitalismo", ou algo semelhante, mas envolve toda a cultura contemporânea, a sociedade e o homem?... 
Devemos pensar também na multidão incessante de crises maiores e menores que rolam sobre nós, como ondas do mar, durante as últimas décadas? Hoje, em uma forma, amanhã, em outra. Ora aqui, ora ali. Crises políticas, agrícolas, comerciais e industriais! Crises de produção e distribuição. Crises morais, jurídicas, religiosas, científicas e artísticas. Crises de propriedade, do Estado, da família, das industrias...
Cada uma dessas crises golpearam nossos nervos e mentes, cada uma tem abalado os alicerces de nossa cultura e sociedade, e cada uma deixou para trás uma legião de delinquentes e vítimas. E infelizmente! O fim não está à vista. Cada uma dessas crises tem sido, por assim dizer, um movimento de uma grande sinfonia aterrorizante, e cada uma tem sido notável por usa magnitude e intensidade. (P. Sorokin, SCD, pp. 622-623) 


Antecedentes


Pitirim Alexandrovich Sorokin (1889-1968) nasceu na Rússia, filho de pai russo e de mãe indígena (Komi, um grupo étnico relacionado com os finlandeses). Como outros intelectuais de sua idade, foi arrastado pela revolta contra o governo czarista. Ele ocupava um posto no gabinete de curta duração do Governo Provisório Russo (1917), e teve a distinção de ser preso sucessivamente por ambas as facções bolcheviques e czaristas. Eventualmente, condenado à morte, foi perdoado por Lenin, emigrou, e foi para os EUA. Lá ele teve uma longa e distinta carreira acadêmica, grande parte na Universidade de Harvard, onde atuou como chefe do departamento de sociologia.



Sua experiências e observações da política russa deixou-o unicamente adequado para a compreensão das forças transformadoras do século 20. Em 1937, publicou os três primeiros volumes de sua obra-prima, Social and Cultural Dynamics, mas continuou a refinar suas teorias por quase três décadas.

Com base em um estudo cuidadoso da história mundial - incluindo análises estatísticas das fases da arte, arquitetura, literatura, economia, filosofia, ciência e guerra - ele identificou três fenômenos notavelmente consistentes:

1. Existem dois padrões culturais elementares opostos, o materialista (Sensorial) e espiritual (Ideacional), juntamente com alguns padrões intermediários ou mistos. Um padrão misto, chamado Idealista, que integra o Sensível e de orientações Ideacional, é extremamente importante.

2. Toda sociedade tende a alternar entre períodos materialistas e espirituais, às vezes com períodos de transição, mistos, de forma regular e previsível.

3. Tempos de transição de uma orientação para outra são caracterizadas por uma acentuada alta prevalência de guerras e outras crises.

Cultura Sensorial (Materialista)

O primeiro padrão, que Sorokin chama de cultura Sensorial, tem as seguintes características:

  • O princípio de definição cultural é que a verdadeira realidade é sensorial - apenas o mundo material é real. Não há outra realidade ou fonte de valores.
  • Isso se torna o princípio organizador da sociedade. Ele permeia todos aspectos da cultura e define a mentalidade básica. As pessoas são incapazes de pensar em quaisquer outros termos.
  • A cultura sensorial busca pela ciência e tecnologia, mas dedica pouca atenção ao pensamento criativo para espiritualidade ou religião.
  • Valores dominantes são a riqueza, saúde, conforto físico, prazeres sensuais, poder e fama. 
  • Ética, política e a economia são utilitaristas e hedonistas. Todos os preceitos éticos e legais são considerados meras convenções artificiais, relativos e mutáveis. 
  • As artes e os entretenimentos enfatizam a estimulação sensorial. Nos estágios decadentes da cultura sensorial há uma ênfase frenética sobre o novo e o chocante (literalmente, o sensacionalismo). 
  • As instituições religiosas são meras relíquias de épocas passadas, despojadas de sua substância original, e tendendo para o fundamentalismo e fideísmo exagerado (o ponto de vista de que a fé não é compatível com razão). 
Cultura Ideacional (Espiritual) 


O segundo padrão, que Sorokin chama de cultura Ideacional, tem as seguintes características:

  • O princípio de definição é que a verdadeira realidade é supra-sensível, transcendente, espiritual. 
  • O mundo material é variado: uma ilusão (maya), temporário, desaparecendo ("estranho numa terra estranha", pecaminoso, ou uma mera sombra de uma realidade transcendente eterna. 
  • Religião muitas vezes tende a ascese e moralismo. 
  • Misticismo e a revelação são considerados fontes válidas de verdade e moralidade.
  • Ciência e a tecnologia são relativamentes desenfatizados. 
  • A economia está condicionada pelos mandamentos morais e religiosos (por exemplo, leis contra a usura). 
  • Inovação em teologia, metafísica e filosofias suprasensoriais.
  • Florescimento da arte religiosa e espiritual (por exemplo, as catedrais góticas). 

Cultura Integral (Idealista) 


A maioria das culturas correspondem a um dos dois padrãos báscios acima. Às vezes, no entanto, um padrão cultural misto ocorre. A multura mista mais importante Sorokin denominou cultura Integral (as vezes também chamado de cultura idealista - não deve ser confundida com uma cultura ideacional). Uma cultura Integral harmoniosamente equilibra as tendências sensoriais e ideacionais. Uma cultura Integral inclui o seguinte:

  • Seu princípio último é que a verdadeira realidade é ricamente variada, um tapete em que os fios do sensível, racional e o supra-sensível estão entrelaçados. 
  • Todos os compartimentos da sociedade e da pessoa expressam esse princípio.
  • Ciência, filosofia e teologia florescem juntos. 
  • As belas artes tratam tanto da realidade supra-sensível quanto os aspectos mais nobres da realidade sensorial. 

A história da cultura ocidental


Sorokin examina uma ampla gama de sociedades no mundo. Em cada uma ele acredita ter encontrado evidências da alternância regular entre as orientações sensoriais e ideacionais, às vezes um cultura Integral aparece. De acordo com Sorokin, a cultura ocidental agora está na terceira época Sensorial de sua história registrada. A tabela abaixo resume sua visão:




Com base em uma análise detalhada da arte, literatura, economia e outros indicadores culturais, Sorokin concluiu que a Grécia antiga mudou de uma cultura Sensorial para uma cultura Ideacional por volta do século 9 aC; durante esta fase Ideacional, temas religiosos dominaram a sociedade (Hesíodo, Homero, etc.).

Depois disso, na época clássica grega (cerca de 600 aC a 300 aC), uma cultura Integral reinou: o Partenon foi construído; a arte floresceu (as esculturas de Fídias, as peças de Ésquilo e Sófocles), assim como a filosofia (Platão, Aristóteles). Isto foi seguido por uma nova era Sensorial, associada primeiro com a cultura helenística (o império fundado por Alexandre, o Grande) e, em seguida, com o Império Romano.

Como a cultura sensorial de Roma decaiu, eventualmente acabou por ser substituída pela cultura Cristã Ideacional da Idade Média. A alta Idade Média e o Renascimento trouxeram uma nova cultura Integral, novamente associada com muitas inovações artísticas e culturais. Depois disso, a sociedade Ocidental entrou na sua era Sensorial atual, agora já em seu crepúsculo. Estamos, de acordo com Sorokin, a caminho para uma transição para nova cultura Ideacional, ou, de preferência, Integral.

Dinâmica Cultural 

Sorokin se interessava especialmente no processo pelo qual as sociedades mudam suas orientações culturais. Ele se opôs à opinião, sustentada pelos comunistas, que as mudanças sociais devem ser impostas externamente, como por uma revolução. Seu princípio de mudança imanente afirma que forças externas não são necessárias: as sociedades mudam porque está em sua natureza mudar. Embora tendências sensoriais ou ideacionais possam dominar, em determinado momento, cada cultura contém mentalidades em uma tensão de opostos. Quando uma mentalidade é levada ao extremo, ela põe em movimento forças transformadoras compensatórias.

O que ajuda a encaminhar a transformação é que os seres humanos são, eles mesmos, parte sensorial, parte racional e parte intuitivos. Sempre que uma cultura se torna exagerada em uma dessas direções, as forças dentro da psique humana, individualmente e coletivamente - trabalharão corretivamente.

Crises de Transição

Assim que a cultura Sensorial ou Ideacional atinge certo ponto de declínio, crises econômicas e sociais marcam o início de transição para uma nova mentalidade. Estas crises ocorrem em parte porque, como o paradigma dominante atinge sua fase decadente final, suas instituições tentam, sem sucesso, adaptar-se, tomando já medidas mais drásticas. No entanto, essas respostas às crises tendem a piorar as cosias, levando a novas crises. A expansão do controle do governo é um subproduto inevitável:
O principal efeito uniforme de calamidades sobre a estrutura política e social da sociedade é uma expansão da regulamentação governamental, arregimentação e controle das relações sociais. A expansão do controle governamental e regulamentação assume formas variadas, abraçando o totalitarismo socialista ou comunista, o totalitarismo fascista, a autocracia monárquica e a teocracia. Ora efetuado por um regime revolucionário, ora por um regime contra-revolucionário; ora por uma ditadura militar, ora por uma ditadura burocrática. Desde o ponto de vista quantitativo quanto qualitativo, tal expansão de controle governamental significa uma diminuição de liberdade, uma redução da autonomia dos indivíduos e grupos privados na regulação e gestão de seu comportamento individual e suas relações sociais, o declínio das instituições constitucionais e democráticas." (MSC p. 122)

Tendências dos nossos tempos

Sorokin identificou o que considerou três tendências fundamentais dos tempos modernos. A primeira é a tendência de desintegração da ordem Sensorial atual:

No século XX, a magnífica casa sensorial do homem ocidental começou a deteriorar-se rapidamente e, em seguida, a desmoronar. Há, entre outras coisas, uma desintegração de seus valores morais, legais e outros que, a partir de dentro, controlam e orientam o comportamento dos indivíduos e grupos. Quando seres humanos deixam de ser controlados por valores religiosos, éticos e estéticos profundamente interiorizados, os indivíduos e grupos se tornam vítimas de um poder bruto e de fraudes que se tornam forças de controle de seu comportamento, relacionamento e destino. Em tais circunstâncias, o homem se transforma em um animal humano impulsionado principalmente por seus impulsos biológicos, paixões e luxúria. O egoísmo irrestrito individual e coletivo inflama; uma luta pela existência se intensifica; força torna-se direito; e as guerras, revoluções sangrentas, crimes, e outras formas de conflitos inter-humanos e bestialidade explodem numa escala sem precedentes. Assim foi em todos grandes períodos transitórios. (BT, 1964, 24 p.)

O Ocidente e o Islã

Visto em termos das teorias de Sorokin, as atuais tensões entre o Ocidente e o Islã sugerem um conflito entre uma cultura ultra-materialista, madura, livre de sua herança religiosa e sem apreciação dos valores transcendentes, contra uma cultura Ideacional medieval que perdeu grande parte de sua criatividade espiritual inicial. Como Nieli (2006) escreveu: 

"Com relação ao atual embate entre o Islã e o Ocidente, Sorokin, sem dúvida apontaria que ambas as culturas atualmente encontram-se em fases finais de seus respectivos desenvolvimentos ideacionais e sensorial e estão muito atrasadas para uma mudança de direção. O estilo wahabista-Taliban do fundamentalismo islâmico desvia-se para longe da meta de equilíbrio da cultura Integral no sentido de Sorokin, assim como as sociedades sensoriais pós-cristãs do Norte e da Europa Ocidental."

O atual situação entre o Ocidente e o Islã, então, é mais bem caracterizada como uma oportunidade mútua, em vez de conflito inevitável. O Ocidente pode compartilhar seus avanços tecnológicos, e o Islã poderão mais uma vez - como fez em torno do século 12 - ajudar a revigorar o espírito de investigação teológica e metafísica no Ocidente.

Adaptado e traduzido de Culture in Crisis: The Visionary Theories of Pitirim Sorokin (link

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

O Erro Espírita: Um Resumo (por Charles Upton)

O que se segue é um resumo da obra O Erro Espírita de René Guénon baseado na tradução de um manuscrito por Dr. Rama Coomaraswamy. Sua exposição é bastante esclarecedora pois mostra que muito das chamadas doutrinas de "vanguarda" da Nova Era por vezes tem mais de um século de idade, além de também fornecer um pano de fundo histórico valioso para o movimento atual.

Guenon define espiritismo não apenas como uma crença que se é possível comunicar-se com os mortos, mas que essa comunicação pode ocorrer por meios materiais - "batidas" de espíritos, telecinese, materialização, etc. Ele não nega nem o poder dos médiuns espíritas em produzir tais fenômenos, nem a possibilidade de uma comunicação "mental, intuitiva ou inspirada" com o falecido - embora ele pouco contribui para definir exatamente o que essa forma de comunicação pode implicar. Mas ele repudia a ideia que tais comunicações são possíveis pelos métodos dos espíritas, e conclui, portanto, que os fenômenos espíritas representam algo completamente diferente.

Ele vê no espiritismo uma espécie de materialismo expandido. Descarte postulou uma divisão radical entre "corpo" e "espírito", assim, negando e culturalmente suprimindo a doutrina tradicional que, em sua forma mais simples, afirma que a forma humana é um ser tripartite, composto por corpo, alma e Espírito. Os espíritas, teosofistas e ocultistas, em uma tentativa equivocada em restaurar uma concepção mais abrangente e precisa, postulou um peri-espírito (espiritismo) ou 'corpo-astral' (Teosofia) como uma ponte entre o corpo e o espírito. Mas eles tinham-no, erroneamente, como uma espécie de corpo material sutil capaz de agir sobre a matéria. Na realidade, entretanto, uma vez que o corpo e o espírito não são como Descartes acreditava, completamente isolados um do outro, não é necessário postula-lo como um substituto para a doutrina tradicional da alma, uma realidade quase-material para preencher a lacuna inexistente entre eles.

Um problema dessa concepção da alma como um corpo sutil é que faz parecer como se a morte fosse nada mais do que um descarte do corpo material, após o qual a "vida" do indivíduo continua com pouca mudança fundamental. (De acordo com o monge Cristão Ortodoxo Seraphim Rose em seu livro "A alma após a morte", doutrinas como essa removem o sentido da morte como uma confrontação entre a alma humana e Deus, eliminando efetivamente todas idéias de um julgamento divino e destruindo os pontos fundamentais de uma orientação da vida espiritual.) Além disso, se o peri-espírito, sendo quase-material, pode agir diretamente sobre a matéria, porque é que a mediunidade é necessária para sua manifestação, como os espíritas afirmam universalmente? O Espiritismo ensina que um fluido sutil ou energia que emana do médium, chamado de 'força-ódica', 'ectenica', neurótica, ectoplasma, etc é um ingrediente necessário na manifestação do espírito. Por que, então, é necessário postular a existência de um per-espírito ou corpo astral, em primeiro lugar?

(A existência de um corpo sutil é, em verdade, não tão pouco-tradicional como Guenon, em sua reação contra as doutrinas claramente anti-tradicionais dos espíritas e contra Descartes, parece afirmar em O Erro Espírita - um lapso evidente que ele mais do que compensa em outras obras, nomeadamente O Homem e seu Devir segundo o Vedanta. O próprio Vedanta fala de um corpo sutil, o suksma sarira, que, de acordo com os Brahma Sutras, sobrevive até a Liberação final. Jesus, depois de sua ressurreição, apareceu em um corpo papável, embora glorificado, e tanto Mulla Sadra como Ibn al-Arabi, esoteristas muçulmanos, defendem que um corpo é necessário para alma em todas fases da existência. Um ser individual pode ser definido como uma relação entre sua fonte espiritual e sua manifestação formal, nenhum dos quais pode existir sozinho, pois eles são manifestações complementares de uma única Realidade. O pólo espiritual tem precedência sobre a forma, já que o Espírito, de fato, representa esta Realidade absoluta no modo de polaridade com sua própria manifestação, ainda assim, um pólo nunca existe sem o outro. E, tendo em vista essa doutrina, Guenon está correto em criticar os espíritas por ver a morte como nada mais que o desaparecimento do corpo material, deixando o corpo sutil exatamente como era antes,  porque esse próprio desaparecimento necessita uma 're-polarização' entre o Espírito e sua manifestação em um nível completamente diferente, situando, assim, o ser individual em um novo plano ontológico. Mas, na medida em que ele se opõe a tendência espírita de conceber o corpo material como uma espécie de modelo para o sutil, ao invés de um entendimento do corpo sutil como o modelo para o material, Guenon está correto em seu questionamento.)




Guenon apresenta uma breve história do espiritismo, que teve início em Hydes-Vine, Nova-Iorque, devido a manifestação de sons de batimentos dos "espíritos" na casa de uma família alemã chamada Fox (uma forma latinizada de Voss) em 1847. O "espírito" produziu ruídos de batidas, que estão entre os fenômenos relatados ao longo da história em relação com "casas mal-assombradas". Foram feitas várias perguntas ao espírito e foi respondido corretamente por meio das batidas. O que foi significativo, de acordo com Guenon, não era o fenômeno em si, mas o único conjunto de conclusões a partir dele: especificamente, que a sociedade humana estava para ser avançada e aperfeiçoada pelo estabelecimento de uma ampla difusão e comunicação permanente entre os vivos e os mortos. Um Quaker, chamado Isaac Post apareceu, e que - no verdadeiro espírito ianque - concebeu um "telégrafo para espírito", uma espécie de tabuleiro de ouija, assim o espírito poderia se comunicar com mais facilidade. (Guenon comenta sobre as semelhanças entre a forma de culto dos Quakers e as práticas dos médiuns espíritas.) Foi então descoberto que o fenômeno se acentuava quando as irmãs Fox estavam na sala, e esse, de acordo com Guenon, foi o momento preciso em que o mundo moderno descobriu a mediunidade. O "espírito" alegou ser um mascate que tinha sido assassinado e enterrado na adega da casa Fox. Posteriormente, a adega foi desenterrada e um esqueleto foi descoberto. O interesse por esses acontecimentos cresceu rapidamente até se tornar um movimento internacional bastante influente conhecido como Espiritismo. A primeira convenção espírita nacional ocorreu em 1852 em Cleveland, Ohio, apenas cinco anos após as primeiras manifestações.

Os "espíritos" que abundavam em torno de Hydesville alegaram que eram liderados por Benjamin Franklin, o arquétipo de todos os experimentadores ianques. Eles também sustentaram que as pesquisas modernas sobre eletricidade tinham pavimentado o caminho para comunicações com eles, e que Franklin estava sendo guiado de forma que melhorasse essa comunicação. O autor também menciona, em outro contexto, o caso de Thomas Edison, o experimentador ianque que se tornou capitão da industria, que seriamente tentou construir uma comunicação à rádio com os mortos!


Guenon se pergunta por que, um fenômeno que desde a antiguidade sempre foi associado a casas assombradas de repente, no meio do século 19, gera um movimento pseudo-religioso internacional. Embora admitindo que o clima dos tempos fez esse desenvolvimento possível, ele também observa o fato significativo de que a Madame Emma-Hardinge-Britten, membro da sociedade secreta conhecida como a Irmandade Hermética de Luxor, que Guenon havia investigado anteriormente, se associou com o movimento espiritualista desde seu início, escrevendo um livro intitulado a História do Espiritualismo Americano Moderno (1870). A importância reside no fato de que a Irmandade tinha sempre se colocado contra as teorias espiritualistas, e tinham, além disso, alegado que os primeiros fenômenos espíritas, na verdade, tinham sido produzidos por indivíduos que vivem atuando à distância, em outras palavras, através de feitiçaria. Ao que parece, Annie Besant, da Sociedade Teosófica, em certa ocasião, fez uma afirmação similar. Dada a natureza suspeita dessas fontes, Guénon não necessariamente aceita suas alegações, mas admite a possibilidade de que possam estar corretas. Em vista do fato de que a Irmandade Hermética de Luxor tinha afinidades com várias outras sociedades secretas na Alemanha, algumas delas maçônicas que praticavam magia e outras "evocações" no final do século XVIII e início do século XIX, ele especula que certos adeptos associados com a Irmandade ou outros grupos podem ter produzido o fenônmeno em Hydesville, possivelmente se aproveitando dos resíduos psíquicos aderidos numa casa em que uma morte violenta havia ocorrido - resíduos que, ele insiste, não são de modo algum o espírito do falecido. O objetivo desses "adeptos", de acordo com Guenon, pode ter sido produzir certos fenômenos psíquicos de alto-nível a fim de combater a filosofia materialista da mente do público, influenciando-os a acreditar na doutrina espírita enquanto que eles mesmos conheciam melhor. (De imediato lembro de vários hoaxes, alguns deles engenhosos o suficiente para exigir um alto nível de organização, que continuam surgindo em torno do fenomeno OVNI). Como uma hipótese menor, ele pensa que é provável que agentes de tais grupos influenciaram a população de Hydesville através de propaganda dissimulada, aproveitando-se, de acordo com esse cenário, de uma situação já existente.  Mas opor o Materialismo ao Espiritualismo, Guenon deixa claro, é simplesmente combater um erro com o outro - uma verdade que diariamente se torna mais evidente com a fascinação com as várias tecnologias arcanas, e com os fenômenos psíquicos ou quase-psíquicos como telepatia e encontros com OVNIs, que continuam a fundir-se com a mente coletiva.

Em seguida Guenon nos introduz a Allan Kardec, o mais influente dos espiritas franceses que produziu uma série de livros 'canalizados' de 'filosofia-espírita'. Ele então cita Daniel Dunglas Home, um dos maiores médium de fenômenos de materialização já investigado, e com reputação entre os mais confiáveis, que alegou que Kardec foi, na verdade, uma espécie de hipnotizador que se viu rodeado de médiuns impressionáveis, os quais ele tratou como sujeitos hipnóticos, com o resultado de que a filosofia 'canalizada' foi composta inteiramente das ideias pré-concebidas de Kardec transmitidas via sugestão. Guenon aceita esta avaliação, exceto que ele atribui a sugestão não somente a Kardec, mas a "mente-grupo" que ele compartilhava com alguns colegas.

O autor comenta o fato de que o espiritismo moderno foi propagado na América especialmente em periódicos socialistas e mostra como, na França, assumiu um caráter progressista, anti-clerical e cientificista, revolucionário iluminista do século XVIII e XIX. (Também de interesse, aliás, é o fato de que Robert Dale Owen (1801-1877), congressista norte-americano e filho do famoso socialista Welsh Robert Owen, era um espiritualista entusiasmado. Como um conservador, Guénon estava naturalmente mais interessado nos laços do espiritismo com a esquerda, mas é bem sabido que Partido Nacional-Socialista de Hitler de extrema direita inspirou-se em muitas influências similares.)

Guenon mostra como os ensinamentos do espiritismo tendem a refletir ideias do meio social em que surgiu, uma vez que o poder de sugestão opera na mente coletiva assim como acontece na mentalidade compartilhada em grupos menores. Assim, o espiritismo francês fez da reencarnação um dogma, interpretando-o como uma forma de progresso espiritual e "evolução", enquanto que a reencarnação era negada nas mensagens espirituais canalizadas nas sociedades mais conservadoras da Inglaterra. O socialismo e o espiritismo tornaram-se profundamente entrelaçados na França, onde os "espíritos" tenderam a abraçar a ideologia da revolução de 1848.

Em seguida, Guenon refuta aqueles que afirmam que o espiritismo é uma espécie de "bramanismo esotérico" - algo que não existe - ou como um "faquirismo" ocidental. A palavra árabe "faquir", assim como a palavra persa dervixe, ambas por vezes utilizadas como sinônimos de "sufi" - significa "homem pobre" ou "mendicante". Essas pessoas chamadas de "faquires" pelos viajantes europeus são na verdade mágicos. O autor deixa claro como mágica, embora sendo uma ciência experimental válida capaz de produzir fenômenos reais, é extremamente perigosa, razão pela qual é desencorajada pelas autoridades tradicionais em toda Ásia, assim como era na antiguidade clássica. A magia e o espiritismo são radicalmente opostos, uma vez que o mago, como o hipnotizador, é um agente ativo, com um objetivo definido, enquanto que o médium, assim como o sujeito hipnotizado, se encontra passivamente aberto a todas influências. No entanto, nem a magia nem a mediunidade pode ser explicada pelo simples hipnotismo. Nas sociedades tradicionais, a mediunidade é vista como uma calamidade, sendo considerada uma instância de possessão demoníaca; a ideia de exaltar tal posse a uma posição de dom espiritual é um desenvolvimento inteiramente moderno e ocidental. E, no caso de evocação deliberada de "espíritos", sempre foi tradicionalmente considerado um crime grave, o crime de necromancia. As forças evocadas, no entanto, não são as "almas dos mortos", mas resíduos psíquicos perigosos agarrados ao corpo, o que explica o motivo pelo qual magos negros gostam de frequentar os cemitérios. Estes resíduos, que os Hebreus chamam de "ob", são idênticos aos "manes" dos Romanos.

A afirmação de Guenon de que em sociedades tradicionais tinham uma atitude negativa em relação a magia precisa ser esclarecida. Isto é certamente verdade nas sociedades fundadas pelo Judaísmo, Cristianismo, Islam, o Hinduísmo Vedantico (embora não a sociedade hindu como um todo, que abrange muitas formas de religião popular onde a magia, por bem ou por mal, desempenha um papel) e nas maiorias das formas de Budismo. Magia, especialmente a feiticiaria e a bruxaria, era também largamente desaprovada na Europa pagã pré-Cristã e no Oriente Próximo, mesmo que nos cultos oficiais dessas sociedades pudessem conter o que poderíamos chamar de elemenots mágicos. De acordo com o The Golden Bough de Sir James Frazer, até mesmo os Celtas Drúidas queimavam bruxas. No entanto, se consideramos a área cultural de grande parte central e do norte da Ásia, que deu origem ao xamanismo, a afirmação de Guenon precisa ser modificada.  E, apesar de Confúcio ter dito certa vez "Eu acredito em seres sobrenaturais, mas mantenho-os à distância", o Taoísmo e o Xintoísmo claramente incorporaram elementos xamânicos, através do qual as forças benéficas do cosmos eram invocadas para o bem geral do povo, enquanto que no caso exclusivo do Budismo Vajrayana do Tibete e do Budismo Tien-Tai da China - ou algumas outras formas - forças similares eram forçadas ao serviço da Iluminação Perfeita Total. E, nas tradições do Leste Asiático, somente elas das religiões "mundiais", parecem ter mantido uma conexão interrupta com o xamanismo (a não ser que nós consideremos o ioga indiano e certas práticas sufis da ásia central em alguns aspectos xamânicas), a função de invocar forças espirituais para a proteção da sociedade e para a cura de doenças tem sido uma parte integrante de cada sociedade baseada numa religião - em outras palavras, de toda sociedade tradicional.  A questão é, de que nível ontológico tal poder é retirado? A sociedade em questão é um recipiente direto, via revelação, de um raio do Absoluto? É invocado forças angelicais para cura, fertilidade e proteção contra as forças mais demoníacas? Em que ponto, tendo perdido contato direto com os mundos angélicos, se começou a apaziguar essas forças demoníacas para mantê-los satisfeitos? E quando que tal apaziguamento do mal se transformou no serviço direto a ele? Tais perguntas, especialmente quando estamos lidando com sociedades "primitivas" deve ser respondida caso-a-caso.

A essa altura é necessário dizer algo sobre o xamanismo. O interesse no xamanismo, fora das sociedades tribais tradicionais, não era tão prevalente em 1921, como hoje é, embora Guenon tratou brevemente em O Reino da Quantidade, onde ele admitiu que provavelmente representa uma tradição espiritual válida, embora se encontre em uma condição seriamente degenerada. Em vista disso, a apreciação negativa sobre magia pode ser aplicada ao xamanismo também? A resposta depende de muitos fatores.  No seu melhor, o xamanismo é uma espécie de teurgia hiperbórea, pela qual o xamã, através de um sofrimento ascético voluntário, conscientemente se coloca sob orientação de seu daimon ou "gênio" ou "anjo da guarda", o arquétipo especifico ou "Nome de Deus" com o qual ele tem uma afinidade intrínseca pré-eterna. Mas os loas ou mistérios do Voudoo são, em sua origem, precisamente esses Nomes de Deus - mas o Voudoo (como Obeah e Santerria), embora apresente sinais de derivação de um antigo, provavelmente sincrético 'esoterismo', onde elementos Africanos, Egípcios, Hebreus e até mesmo Cristãos e Helenísticos se juntam, é claramente uma tradição degenerada e contaminada, envolvida, embora não estritamente identificada com, magia negra demoníaca. Além disso, até mesmo a elevada 'teurgia' dos Neo-Platônicos caiu em direção da magia quando a tradição que lhe deu origem se enfraqueceu.  Então, tudo o que se pode dizer sobre o xamanismo é que, embora alguns representem uma verdadeira espiritualidade tradicional, revelada por Deus aos Siberianos e Nativos Americanos, assim como a Torah aos Judeus ou o Corão aos Árabes, muito do que se passa por "xamanismo" nos círculos neo-pagãos e de nova-era, e até mesmo entre alguns nativos americanos, é degenerado, grande parte falacioso e alguns casos até mesmo pernicioso.

Guenon faz uma distinção entre magia e a teurgia, que se situam em níveis muito diferentes, a teurgia representando a intervenção de poderes celestiais. O poder numinoso da Arca da Aliança e do Templo de Jerusalém, de ícones sagrados e lugares sagrados, dos túmulos de santos, e do "ofuscamento" de várias ordens sufis pela baraka (graça) de seus Shayhks fundadores, que podem ter sido morto há séculos, são exemplos de teurgia, não de magia. Esta distinção de níveis, entretanto, é precisamente o que a mente pós-moderna já não pode mais discernir. Os mágicos contemporâneos rotineiramente retratam a distinção entre o 'mágico' e o 'milagroso' apenas em termos puramente políticos e sociais. "Se alguém na Igreja realiza milagres", eles dizem "é chamado de milagre; se fizermos a mesma coisa, é taxado de magia". Na realidade, os dois não são a mesma coisa, mas os magos, e em alguns casos, os próprios clérigos, já não podem dizer a diferença.

Guenon traça a relação entre o espiritismo e o ocultismo. Ele define como "ocultismo" o movimento derivado de Eliphas Lévi (nome verdadeiro Alphonse-Louis Constant) e mais popularizado por Papus (Gerard Encausse) que rompeu com a Sociedade Teosófica em 1890. (Madame Blavatsky usou "ocultismo" como sinônimo de sua "Teosofia", mas Guenon faz uma distinção entre os dois movimetnos, embora são, obviamente, primos próximos.) Ocultismo é o resultado de uma tentativa equivocada de redescobrir ou re-inventar o esoterismo iniciático.  Tende a ser mais centralmente organizado, mais intelectual ou pelo menos pseudo-intelectualmente elaborado, e mais elitista que o espiritismo, que resiste à centralização e gravita para um pluralismo, sentimentalismo e democracia. Ocultismo também está imbuído do espírito do "cientificismo", o que lhe fez procurar produzir fenômenos experimentalmente verificáveis, desqualificando-o totalmente até mesmo para uma abordagem esotérica tradicional. Os ocultistas franceses geralmente eram contrários ao espiritismo; no entanto, seu próprio ecletismo às vezes o levava a tentativas de  reaproximação. E tanto o ocultismo quanto a Teosofia, mesmo sem admitir, tomaram emprestado muitas doutrinas do espiritismo, incluindo a da reencarnação.  Nesta polarização entre ocultismo e espiritualismo, podemos ver as raízes da divergência atual entre o semi ou pseudo-tradicional ocultismo literário, como o de Jocelyn Godwin e outros, e o adequados à Nova Era - representado, por exemplo, por Shirley McClaine - com seu populismo "você também pode" e seu apelo deliberado ao mercado de massas. O ocultismo literário parece, atualmente, estar ganhando espaço contra a Nova Era, pelo menos do meu ponto de vista, uma vez que dá a ilusão de substância quando contrastado com a efemeridade arejada das ideias da Nova Era. Se Deepak Chopra representa a comercialização de ideas Hindus para um público Nova Era (em seu livro As Sete Leis Espirituais do Sucesso) e James Redfield (em A Profecia Celestina) uma ideologia especificamente Nova Era, entre muitos, William Quinn (em A Única Tradição) é um exemplo do ocultismo literário tentando ganhar legitimidade acadêmica e com certo grau de sucesso. Guenon admite que muito dos "fenômenos psíquicos", incluindo aqueles produzidos por médiuns, são reais. Mas este fato por si só, de modo algum valida a explicação espírita de tais fenômenos, que podem ser devido a muitas causas diferentes. A mediunidade, mesmo quando os fenômenos produzidos são genuínos, continua a ser uma forma de doença mental. Algumas "obsessões" espíritas podem ser simples casos de múltipla personalidade. Além disso, mesmo os médiuns genuínos podem praticar fraudes, especialmente os "profissionais", já que seus poderes não estão sob seu próprio controle, eles precisam completá-los por outros meios de tempos em tempos, uma vez que "o show deve continuar". Os médiuns também são, por vezes, mentirosos patológicos.

A tentativa de cientistas para investigar, empiricamente, fenomenos psiquicos está comprometida desde o início, uma vez que muito dos investigadores são ignorantes da dinamica psicológica que operam em personalidades instáveis, e praticamente nenhum deles entendem os princípios metafísicos, especificamente a distinção ontológica entre o plano psíquico e o espiritual. Um dos resultados é que os médiuns psíquicos altamente sugestionáveis podem canalizar "espíritos" que, para o deleite do investigador, confirma todas suas teorias favoritas - que, claro, o medium está realmente escutando da mente do investigador. A competência em um dos ramos da ciência física não é garantia de uma objetividade do investigador em face de tais coisas como transtornos de personalidade e fenomenos psíquicos (ou, acrescentaria, mágica).

Espíritas, como ocultistas, tendem para uma ideologia humanista e anti-católica, algo que se manteve fiel até os dias atuais, pelo menos em termos de anti-catolicismo. Ambos Jane Roberts do material de Seth, e Helen Schucman, canalizador de Um Curso em Milagres, eram ex-católicos rancorosos contra a Igreja; o mesmo pode provavelmente ser dito para Carlos Castaneda. E a obra de James Redfield, A Profecia Celestina, é um ataque direto ao catolicismo tradicional. Guenon cita uma passagem de um espiritualista francês Charles Fauvery onde ele declara que a moralidade um dia será um ramo da ciência, não da religião, e que uma fé mística na Ciência, com um "C" maiúsculo, derrubará a autoridade de todos os sacerdócios. (Aqui me lembro de um interessante fato de que foi Robert Dale Owen, Congressista e Espiritualista Americano, que primeiro introduziu a legislação por meio da qual a Instituição Smitheana, o Templo Americano de Cientificismo, foi fundada, onde os devotos do deus americano da Técnica puderam cultuar diariamente o "espírito" de São Luis, e outros ídolos.)

Guenon caracteriza filosofias como o espiritualismo do piscólogo William James, que ele expôs no fim de sua vida (embora o pai de James tenha sido um seguidor de Swedenborg), assim como as tendências espiritualistas do filósofo Henri Bergson, como "satanismo inconsciente". James prometeu fazer tudo em sem seu poder para comunicar-se com os vivos após sua morte; não surpreende que um grande números de médiuns americanos obedientemente receberam 'mensagens' dele - entre o mais recente, Jane Roberts, que publicou um livro chamado "The After Death Journal of an American Philosopher: The World View of William James" em 1978.

O seguinte representa meu próprio comentário sobre a validade do "material canalizado":

A meu ver, esse material pode ser classificado em cinco categorias: (1) vulgar e sem sentido; (2) fantasias psicóticas; (3) pronósticos ou percepções clarividentes que se revelam precisas; (4) falsas filosofias; e (5) filosofias contendo alguns elementos de verdade. Categorias 1, 2 e 4 podem ser explicadas em termos de doença mental e/ou obsessão demoníaca, embora nem sempre saber qual dos dois, especialmente porque ambos podem estar presentes na mesma alma. Categorias 3 e 5 são mais difíceis de caracterizar. Uma visão psíquica precisa de uma condição física, do passado, presente ou futuro (categoria 3) pode simplesmente ser uma instância de um talento natural, embora relativamente raro; pode ser o sinal de uma intervenção angelical, especialmente quando isso resulta em cura, proteção contra o perigo, ou  iluminação como a um dilema moral; também pode, em qualquer caso, ser um exemplo de ilusão demoníaca. Quanto à categoria 5, filosofias 'canalizadas' que contêm elementos de verdade podem representar uma tentativa por parte dos poderes celestiais para ressuscitar certos aspectos da sabedoria tradicional que as pessoas em uma determinada região e período histórico perderam, mas não há garantia de que este é o caso em qualquer circunstância. As doutrinas de Emmanuel Swedenborg, por exemplo, cientista físico multi-talentoso que se tornou um visionário espiritual - representam, talvez, a maior categoria de 'filosofia de espírito ". Seu Amor e Sabedoria Divina contém elementos que lembram o aristotelismo esotérico que se desenvolveu dentro da tradição islâmica. Sua doutrina dos anjos é semelhante em alguns aspectos com a doutrina cristã ortodoxa de Dionísio, o Areopagita, e sua imagem do Homem Universal semelhante a doutrinas que podem ser encontradas nos Padres da Igreja, na Kabbalah, nos Sufis e nos teosofistas do Islã. Podemos especular que uma vez que tais doutrinas não estavam disponíveis para um luterano sueco do século 18, era necessário as reintroduzir através de inspiração direta. Por outro lado, isso pode não ser preciso. Seyyed Hossein Nasr, em Conhecimento e o Sagrado, destaca que o luteranismo abraçou uma Tradição teosófica, alquímica e mística, representado por figuras como Sebastian Franck, Paracelso, V. Weigel, Jacob Boehme, G. Arnold, G. Gichtel, CF Oetinger e outros. Os cientistas antes e durante a época de Swdenborg eram muito mais propensos a terem preservados um interesse nas ciências 'esotéricas'; até mesmo Isaac Newton escreveu sobre alquimia. Então, se Swdenborg derivava suas doutrinas inteiramente de inspiração direta ou parcialmente através de uma transmissão humana (ele certamente poderia ter conseguido seu aristotelismo esotérico da tradição alquímica, por exemplo) permanece discutível. Em qualquer caso, suas doutrinas da estrutura do mundo espiritual parecem transpostas para um nível mais literal do que aquelas encontradas em muitas fontes tradicionais, uma qualidade que, como Guenon aponta, é comum a muitos ensinamentos espirituais. Ele parece incerto se o outro mundo é um reino de vida e símbolos incorporados de realidades invisíveis, como na doutrina do alam almithal, o "plano imaginal", de Ibn al-Arabi ou se é de natureza material mais elevada. E, intercaladas com suas doutrinas inegavelmente elevadas, estão outras de variedade mais fantásticas ou mesmo psicóticas, como quando, em Terras no Universo, ele diz que os Marcianos têm rostos que são metade branco e metade marrom, vivem de frutos e se vestem de fibras feitas de casca de árvore, ou quando diz que a atmosfera da Lua é tão diferente da terrena que seus habitantes falam de seus estômagos ao invés de seus pulmões, com um efeito parecido com arrotos.

No caso de Swedenborg - e o mesmo pode até ser dito para ensinamentos menos confiáveis "canalizados", tais como o material de Seth e Um Curso em Milagres - é difícil determinar se a mistura de uma doutrina sofisticada com um material suspeito pode simplesmente ser causa de uma comunicação imperfeita, ou se ele representa, como em alguns casos, uma tentativa satânica de perverter profundas doutrinas teológicas, filosóficas e esotéricas, associando-os com lixo. O que podemos dizer com mais segurança é que apenas aqueles que não tem acesso a fontes confiáveis de 'alimentação' serão forçados a ter suas refeições misturadas com lixo. Que uma grande e profunda doutrina pode ser encontrada nos escritos de Swedenborg é inegável. Mas, agora que as escrituras e os clássicos das religiões do mundo e os escritos dos maiores sábios da histórias estão prontamente disponíveis, já não precisamos tê-lo, e outros como eles, como autoridades exclusivamente inspiradas, uma vez que podemos julgá-los em função com os mais ortodoxos. Como Guenon deixa claro, já não há qualquer razão para confiar em fontes suspeitas, não importa o quanto de grãos de verdades possam conter.

Guenon apresenta em grande detalhe várias ideias fantásticas espíritas sobre a "sobrevivência" da personalidade humana, permitindo que seu absurdo fale por si. Ele lida longamente com a teoria da reencarnação - lembrando-nos, por exemplo, que nas primeiras formas do espiritualismo moderno, os ingleses e os americanos negaram, e que espíritas notáveis como Daniel Dunglas Home se opôs violentamente - e traça a doutrina da reencarnação ao espiritismo francês, especialmente aquele de Allan Kardec, de onde se espalhou para a Teosofia e o ocultismo.Guenon faz uma distinção clara entre a reencarnação, a transmigração e a metempsicose, em que ele nega que o hinduísmo já ensinou as doutrinas de reencarnação promovidas pelos espíritas.

Ele mostra como o espiritismo, baseado no zeitgeist do século 19, adotou a teoria da evolução, reinterpretando em termos "espirituais" (como fez os Mormons), identificando-a como reencarnação. Nós ainda vemos essa influência no material de Seth de Jane Roberts, onde a entidade "Seth" é, as vezes, definida como uma "porção futura" de Jane, assim como a entidade mais sublime, distante e etéria "Seth II" é uma "futura porção de Seth", tomando um lugar "ontologicamente superior".  No tempo em que o material de Seth fez sua estréia, em 1963, a confiança inquestionável no progresso - típica do século 19 e início do século 20 - tinha começado a vacilar, devido em parte as armas nucleares, em parte também a um "einsteinismo" social baseado numa versão popularizada da teoria da relatividade. Esta erosão do mito do progresso, assim como as várias teorias do espaço-tempo multidimensional, são razões que provavelmente levou Seth, ainda que em muitos aspectos mostrava-se como um "progressista macrocosmico", a falar na evolução biológica como um conceito muito estreito e simplista, e das vidas reencarnacionais como fundamentalmente simultâneas em vez de sucessivas. 

Guenon, em seguida, lida com a relação entre o espiritualismo e o satanismo, caracterizando como satanismo inconsciente qualquer doutrina subversiva a metafísica tradicional. Ele narra uma série de histórias sugestivas de influência demoníaca em círculos espiritualistas, ou pelo menos de emanações tóxicas do subconsciente que, segundo ele, não são menos demoníacas por isso. Estas incluem escândalos sexuais de natureza sádica, bem como histórias de relações com íncubos, como aquelas que muitas vezes surgem no "folclore" OVNI contemporâneo.Ele detalha as repetidas tentativas de espíritas franceses em perverter e deturpar a doutrina católica, mencionando uma brochura caluniosa sobre a Eucaristia, que afirmava que "Jesus não era inteiramente orgulhoso do papel clerical que ele desempenhou", em termos altamente reminiscentes do material de Seth. Ele menciona grupos, tais como Ciência Mental e da Ciência Cristã que (como Um Curso em Milagres) negam a realidade do mal, fortalecendo assim a ação de forças demoníacas. Ele passa a falar do espiritismo como um movimento quasi-político com grandes recursos para propaganda, caracterizando-o como um grave perigo para a segurança pública.

Ele admite a validade, em certos casos, da clarividência e cura psíquica, embora tais fenômenos permaneçam altamente ambíguos. Mas, tais poderes psíquicos de modo algum provam que os espíritas podem ter relações constantes com as almas dos mortos, mesmo se esta é a forma como os próprios praticantes explicam suas habilidades. Fenômenos, diz Guénon, nunca podem provar a verdade ou a falsidade da doutrina. Por fim, ele fala dos perigos do espiritismo para os próprios praticantes, contando muitos casos de colapso mental, emocional e físico, epilepsia, etc.

O Erro Espírita também é valioso pela luz histórica que lança sobre a crença em alienígenas e OVNIs. Muitos espíritas, de acordo com Guenon, acreditam que os espíritos desencarnados ocupam o espaço. Ele cita Ernest Bose que os chama de "nossos amigos no Espaço", em resposta a um artigo na revista Fraternalista publicado em 1913. Pode ser significativo que, cinquenta e cinco anos depois, os hippies chamavam os extraterrestres de "irmãos do espaço" e o movimento Nova Era, desde a década de 70, apagaram a distinção entre alienígenas e espíritos desencarnados. 

Guenon menciona, como exemplo das pretensões exageradas de espíritas americanos, um grupo que se autodenomina "a antiga Ordem de Melquisedeque". Ele também fala de uma "Fraternidade Esotérica", em Bostom, liderada pelo cego Hiram Butler. Curiosamente, esta mesma Ordem de Melquisedeque, bem como a de Hiram Butler - que também, ao que parece, estabeleceu um grupo com mesmo nome na Califórnia em 1889, em uma fazenda comunal no sopé das Serras - aparecem na obra Messengers of Deception (1979), pelo ufólogo Jacques Valle. Valle investigou vários grupos, tanto na França quanto nos Estados Unidos, que se chamavam a Ordem de Melquisedeque, e descreveu a figura de Melquisedeque, o mestre de Abraão, do livro de Gênesis, que não tinha nem pai e nem mãe, como "um simbolo e um ponto de encontro para contatos com naves".  Assim, parece possível que a crença generalizada em OVNIs, se não a proliferação do fenômeno em si, estão entre os frutos sociais e psicológicos do movimento espírita do século 19 e início do século 20, que é, de muitas formas, o ancestral direto do movimento Nova Era de hoje.

Em O Erro Espírita, Guenon tem isto a dizer:

O que vemos... no espiritismo e em outros movimentos semelhantes são influencias que incontestavelmente provêm de onde alguns chamam de "Reino do Anticristo". Essa designação pode ser tomada simbolicamente, mas isso não muda nada no que diz respeito à realidade e não faz as influências menos más. Certamente aqueles que participam de tais movimentos, e até mesmo aqueles que acham que podem dirigi-los, podem não saber nada destas coisas. É isso que torna tudo isso tão perigoso, pois muito deles certamente fugiriam com horror se eles reconhecessem que eles eram servos dos 'poderes das trevas'. Mas a sua cegueira é muitas vezes incurável, e sua boa fé até mesmo contribui para que possam atrair outras vítimas. Será que isso não nos permite dizer que o talento supremo do diabo, independentemente como ele é concebido, é fazer-nos negar sua existência? 


Retirado do livro The System of Antichrist por Charles Upton

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A Vitória dos Iconoclastas (Por Gilbert Durand)

«0 positivismo é a filosofia que, no mesmo movimento, suprime Deus e clericaliza todo o pensamento.» JEAN LACROIX La sociologie de Auguste Comte 

Pode parecer duplamente paradoxal querer tratar do «Ocidente iconoclasta». Não reserva a História cultural este epíteto à crise que sacudiu o Oriente bizantino no séc. VII? Como pode uma civilização que transborda de imagens, que inventou a fotografia, o cinema, os inúmeros meios de reprodução iconográfica, ser acusada de iconoclasmo? Existem, decerto, formas de iconoclasmo. 


Um, por defeito, rigorista, é o de Bizâncio que, a partir do séc. v, se manifesta com Santo Epifânio e irá reforçar-se sob a influência do legalismo judeu ou muçulmano e será mais uma exigência reformadora de «pureza» do símbolo contra o realismo demasiado antropomorfo do humanismo cristológico de São Germano de Constantinopla e, em seguida, de Teodoro Studitae. O outro, mais insidioso, é de certo modo, por excesso, inverso nas suas intenções aos dos pios concílios bizantinos. Ora, se o iconoclasmo do primeiro tipo foi um simples acidente na ortodoxia, vamos tentar mostrar que o iconoclasta do segundo tipo, por excesso, por evaporação do sentido, foi o traço constitutivo e incessantemente agravado da cultura ocidental. 

Numa primeira abordagem, o «co-nascimento» simbólico, definido triplamente como pensamento sempre indireto, como presença figurada da transcendência e como compreensão epifânica, surge nos antípodas da pedagogia do saber tal como o conhecimento foi instituído desde há dez séculos no Ocidente. Se, tal como O. Spengler, considerarmos, de modo plausível, o início da nossa civilização com a herança de Carlos Magno, apercebemo-nos que o Ocidente sempre opôs aos três critérios precedentes elementos pedagógicos violentamente antagónicos: à presença epifânica da transcendência as Igrejas irão opor dogmas e clericalismos; ao «pensamento indireto» os pragmatismos irão opor o pensamento direto, o «conceito» - quando não é o «preceito» - e, finalmente, face à imaginação compreensiva, «mestra do erro e da falsidade», a Ciência levantará longas sucessões de razões da explicação semiológica, assimilando aliás estas últimas às longas sucessões de «fatos» da explicação positivista. De certo modo, estes famosos «três estados» sucessivos do triunfo da explicação positivista são os três estados da extinção simbólica.

São estes «três estados» do iconoclasmo ocidental que teremos de percorrer brevemente. Todavia, estes «três estados» não têm a mesma evidência iconoclasta e, para passar do mais evidente ao menos evidente, vamos inverter no nosso estudo o curso da história, tentando, . para lá do iconoclasmo demasiado notório do cientismo, regressar às raízes mais profundas deste grande cisma do Ocidente relativamente à vocação tradicional do conhecimento humano. 

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A mais evidente depreciação dos símbolos que a história da nossa civilização nos apresenta é certamente a que se manifesta na corrente cientista saída do cartesianismo. É certo que, como escreve de forma excelente um cartesiano contemporâneo, isto não acontece porque Descartes recusa utilizar a noção do símbolo. Para o Descartes da III Meditação, o único símbolo é a consciência, ela própria «à imagem e à semelhança» de Deus. Continua, portanto, a ser exato pretender que foi com Descartes que o simbolismo vai perder o seu direito de cidadania em filosofia. Mesmo um epistemólogo de um não-cartesianismo tão decidido como Bachelard escreve ainda, nos nossos dias, que os eixos da ciência e do imaginário são inicialmente inversos e que o científico deve, antes de mais, lavar o objecto do seu saber, através de uma «psicanálise objectiva», de todas as pérfidas sequelas da imaginação «deformadora». Foi bem o «reino» do algoritmo matemático que Descartes instaurou e Pascal matemático, católico e místico não se enganou quando denunciou Descartes. O cartesianismo assegura o triunfo do «signo» sobre o símbolo. A imaginação, como aliás a sensação, é refutada por todos os cartesianos como a mestra do erro. É certo que, para Descartes, só o universo material é reduzido ao algoritmo matemático graças à famosa analogia funcional: o mundo físico é apenas forma e movimento, isto é, res extensa e, em seguida, qualquer figura geométrica é apenas equação algébrica.

Mas este método de redução às «evidências» analíticas pretende ser o método universal. Ele aplica-se precisamente, mesmo e em primeiro lugar em Descartes, no «eu penso», derradeiro «símbolo» do ser, é certo, mas um símbolo formidável, dado que o pensamento, logo o método - isto é, o método matemático - se torna o único símbolo do ser! O símbolo - cujo significante tem apenas a diafaneidade do signo - esbate-se pouco a pouco na pura semiologia, evapora-se, por assim dizer, metodicamente em signo. É por este meio que, com Malebranche e sobretudo Espinoza, o método redutor da geometria analítica será aplicado ao Ser absoluto, ao próprio Deus.

É certo que, com o séc. XVIII, se inicia uma reação contra o cartesianismo. Mas esta reação será apenas inspirada pelo empirismo escolástico de Leibniz e de Newton, pois veremos mais adiante que este empirismo é tão iconoclasta como o método cartesiano.

Todo o saber dos dois últimos séculos resumir-se-á a um método de análise e de medidas matemáticas marcado por uma preocupação de recenseamento e de observação no qual a ciência histórica encontrará a sua medida. Foi assim que se inaugurou a era da explicação cientista que, no séc. XIX, sob as pressões da história e da sua filosofia, se desvia para o positivismo.

Esta concepção «semiológica» do atual mundo será a concepção oficial das Universidades ocidentais e, em especial, da Universidade francesa, filha mais velha de Auguste Comte e neta de Descartes. Não só o mundo é possível de exploração científica, como só a exploração científica tem direito ao título desafeto de conhecimento. Durante dois séculos a imaginação é violentamente anatemizada. Brunschvicg considera-a ainda como <pecado contra o espírito>, enquanto Alain não consegue ver nela mais do que a infância confusa da consciência. Sarte só descobre no imaginário «nada», «objecto fantasma», «pobreza essencial». 

Na filosofia contemporânea realiza-se, sob o impulso cartesiano, uma dupla hemorragia do simbolismo: quer porque se reduz o cogito às «cogitações», e se obtém então o mundo da ciência em que o signo só é pensado como termo adequado de uma relação, quer porque se «quer tomar o ser interior à consciência», obtendo então fenomenologias viúvas de transcendência para as quais a coleção dos fenômenos deixa de se orientar para um pólo metafísico, deixando tanto de evocar o ontológico como de o invocar, só atingindo uma «verdade à distância, uma verdade reduzida». Em suma, podemos dizer que a denúncia das causas finais pelo cartesianismo e a redução do ser ao tecido das relações objectivas dela resultante liquidaram no significante tudo o que era sentido figurado, toda a recondução à profundidade vital do apelo ontológico.

Este iconoclasmo radical não se desenvolveu sem graves repercussões na imagem artística pintada ou esculpida. O papel cultural da imagem pintada é minimizado ao extremo num universo em que o poder pragmático do signo triunfa diariamente. Até Pascal afirma o seu desprezo pela pintura prefaciando assim o abandono social a que é votado o «artista» pelo consenso ocidental, mesmo através da revolta artística do romantismo. O artista, como o ícone, deixa de ter lugar numa sociedade que eliminou pouco a pouco a função essencial da imagem simbólica. Na sequência das vastas e ambiciosas alegorias do Renascimento, vemos também a arte dos séculos XVII e XVIII ser minimizada em puro «divertimento», em puro «ornamento». A própria imagem pintada, tanto na alegoria temperada de Le Sueur, na alegoria política de Lebrun e de David, como na «cena típica» do século XVIII, já não procura evocar. Desta recusa da evocação nasce o ornamentalismo acadêmico que, dos epígonos de Rafael a Femand Léger, passando por David e pelos epígonos de Ingres, reduz o papel do ícone ao da decoração. Mesmo nas suas revoltas românticas e impressionistas contra esta condição desvalorizada, a imagem e o seu artista nunca irão atingir, nos tempos modernos, o poder de significação plena que possuem nas sociedades iconófilas, na Bizâncio macedônia como na China dos Song. E na anarquia pululante e vingativa das imagens que subtilmente varre e submerge o século XX, o artista procura desesperadamente ancorar a sua evocação para lá do deserto cientista da nossa pedagogia cultural. 

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Se recuarmos alguns séculos para lá do cartesianismo, vislumbramos uma corrente ainda mais profunda de iconoclasmo, corrente que a mentalidade cartesiana repudiará muito menos do que se afirmou. Esta corrente é veiculada, do século XIII ao século XIX, pelo conceptualismo aristotélico ou, mais exatamente, pelo desvio ockhamista e averroísta deste último. A Idade Média ocidental retoma, por sua conta, a velha querela filosófica da Antiguidade clássica. O platonismo, tanto greco-latino, como alexandrino, é, muito ou pouco, uma filosofia da «cifra» da transcendência, isto é, implica uma simbólica. É certo que, a nosso ver, dez anos de racionalismo corrigiram os diálogos do discípulo de Sócrates onde já só lemos as premissas da dialéctica e da lógica de Aristóteles, ou mesmo do matematismo de Descartes. Mas a utilização sistemática do simbolismo mítico, ou mesmo do trocadilho etimológico, no autor do «Banquete» ou do «Timeu», basta para nos convencer que o grande problema platônico era bem o da recondução dos objetos sensíveis ao mundo das ideias, o da «reminiscência» que, longe de ser uma memória vulgar, é, pelo contrário, uma imaginação epifânica.

No ponto extremo da aurora medieval, é ainda uma doutrina semelhante que Jean Scot Érigene irá defender: tornando­-se Cristo o princípio desta reversio, inversa do creatio, através da qual se efectuará a divinização deificatio, de todas as coisas. Mas a solução adequada do problema platónico é, afinal, a gnose valentiniana que a propõe nesse longínquo pré--Ocidente dos primeiros séculos da era cristã. À questão que preocupa o platonismo - «Como conseguiu o Ser sem raiz e sem ligação chegar às coisas?», colocada pelo alexandrino Basilido - Valentino responde por meio de uma angelologia, uma doutrina dos anjos intermediários, os Eons que são os modelos eternos e perfeitos do mundo imperfeito porque separado, enquanto a reunião dos Eons constitui a Plenitude (o Pléroma).

Estes anjos, que se encontram noutras tradições orientais são, como mostrou Henry Corbin, o próprio critério de uma ontologia simbólica. São símbolos da própria função simbólica que é - como eles! - mediadora entre a transcendência do significado e o mundo manifesto dos signos concretos, encarnados, que se tornam símbolos através dela.

Ora, esta angelologia, constitutiva de uma doutrina do sentido transcendente veiculado pelo humilde símbolo, extrema consequência de um desenvolvimento histórico do platonismo, vai ser repelida em nome do «pensamento direto» pela crise dos universos que o conceptualismo aristotélico abre no Ocidente. Conceptualismo cada vez mais carregado de empirismo ao qual, no seu conjunto, o Ocidente será fiel durante cinco a dez séculos pelo menos (se dermos por encerrada a era peripatética em Descartes, sem ter em conta o conceptualismo kantiano ou o positivismo de Comte ... ). O aristotelismo medieval, nomeadamente o proveniente de Averróis, do qual se reclamaram Siger de Brabante e Ockham, é a apologia do «pensamento direto» contra todos os prestígios do pensamento indireto. O mundo da percepção, o sensível, deixa de ser o mundo da intercessão ontológica onde se epifaniza um mistério, como acontecia com Scot Érigene ou com São Boaventura. É um mundo material, o do lugar próprio, separado de um motor imóvel tão abstrato que não merece o nome de Deus. A «física» de Aristóteles, que a Cristandade irá adotar até Galileu, é a física de um mundo desafeiçoado, combinatória de qualidades sensíveis que só reconduzem ao sensível ou à ilusão ontológica que baptiza com o nome de ser a cópula que une um sujeito a um atributo. O que Descartes irá denunciar nesta física de primeira instância não é a sua positividade mas a sua precipitação.

É certo que, para o conceptualismo, a ideia possui bem uma realidade in re, na coisa sensível donde o intelecto vai extraí-la, mas ela só conduz a um conceito, a uma definição terra a terra que se proclama sentido próprio, deixando de reconduzir, de impulso meditativo em impulso meditativo como a ideia platônica, ao sentido transcendente supremo que está «para além do ser em dignidade e em poder». Sabemos com que facilidade este conceptualismo irá esbater-se no nominalismo de Ockham. Os comentadores dos tratados de física peripatética não estão de modo algum errados quando opõem os historiai' (as inquirições) aristotélicas, tão próximas no seu espírito da entidade «historiadora» do positivismo moderno, às mirabilia (os acontecimentos raros e maravilhosos) ou então às idiotes (acontecimentos singulares) de todas as tradições herméticas. Estas últimas procediam por relações «simpáticas», por homologias simbólicas.

Este deslizar para o mundo do realismo perceptivo, onde o expressionismo - ou mesmo o sensualismo - substitui a evocação simbólica, é dos mais visíveis na passagem da arte românica para a arte gótica. A primavera românica viu florescer uma iconografia simbólica herdada do Oriente, mas esta primavera foi mais breve relativamente aos três séculos de arte «ocidental», de arte dita gótica. A arte românica é uma arte «indireta», com muito de evocação simbólica,' em comparação com a arte gótica tão «direta», cujo prolongamento natural será a pintura flamejante e renascentista. O que transparece na encarnação escultural do símbolo românico é a glória de Deus e a sua vitória sobre-humana sobre a morte. O que a estatuária gótica mostra cada vez mais são os sofrimentos do homem-Deus.

Enquanto o estilo românico, ainda que com menos continuidade do que Bizâncio, conserva uma arte do ícone que assenta no princípio teofânico de uma angelologia, a arte gótica surge no seu processo como o próprio tipo do iconoclasmo por excesso: acentua a tal ponto o significante que desliza do ícone para a imagem muito naturalista que perde o seu sentido sagrado e se torna simples ornamento realista, simples «objecto de arte». Paradoxalmente, é menos o purismo austero de S. Bernardo que é iconoclasta do que o realismo estético dos góticos alimentados pela escolástica peripatética de S. Tomás. É certo que esta depreciação do «pensamento indireto» e da evocação angélica que lhe está intimamente ligada através do bom-senso terra-a-terra da filosofia aristotélica e do averroismo latino, não se realizará em um dia. Haverá as resistências mal dissimuladas: o florescimento da cortesia, do culto do amor platônico dos Fedeli d'Amore, o renascimento franciscano do simbolismo com São Boaventura. É necessário assinalar também que no realismo de certos artistas, por exemplo de Memling e mais tarde de Bosch, transparece uma mística oculta que transfigura a minúcia trivial da visão. Mas não é menos verdade que o regime de pensamento que o Ocidente «faustiano» do século XIII adota, ao fazer do aristotelismo a filosofia oficial da cristandade, é um regime que privilegia o «pensamento direto» em detrimento da imaginação simbólica e dos modos de pensamento indireto.

A partir do século XIII, as artes e a consciência deixam de ter a ambição de reconduzir a um sentido, preferindo «copiar a natureza», o conceptualismo gótico pretende ser um realismo que decalca as coisas tal como são. A imagem do mundo, quer seja pintada, esculpida ou pensada, desfigura-se e substitui o sentido da Beleza e a invocação ao Ser pelo maneirismo do bonito ou pelo expressionismo dos pavores da fealdade. Podemos escrever que se o cartesianismo e o cientismo dele resultante eram um iconoclasmo por defeito e desprezo generalizado da imagem, o iconoclasmo peripatético é o tipo de iconoclasmo por excesso: no símbolo, despreza o significado para só se ligar à epiderme do sentido, ao significante. Toda a arte, toda a imaginação, é colocada exclusivamente ao serviço do desejo fastuoso e conquistador da cristandade. É certo que a consciência do Ocidente tinha sido preparada, ainda mais profundamente, para este papel ornamentalista por uma corrente de iconoclasmo mais primitiva e mais fundamental que teremos de examinar agora.

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O racionalismo, aristotélico ou cartesiano, detém a imensa vantagem de se pretender uni versai por partilha individual do «bom-senso» ou do «senso comum». O mesmo não acontece com as imagens: elas estão submetidas a um acontecimento, a uma situação histórica ou existencial que lhes dá cor. É por isso que uma imagem simbólica precisa constantemente de ser revivida, um pouco como um trecho de música ou um herói de teatro precisam de um «intérprete». E o símbolo, como qualquer imagem, é ameaçado pelo regionalismo do significado e corre o risco de se transformar em cada instante naquilo a que R. Alleau chama ajuizadamente um «sintema», isto é, uma imagem que, antes de mais, tem por função um reconhecimento social, uma segregação convencional. Poderemos dizer que se trata aqui de um símbolo reduzido ao seu poder sociológico. Qualquer «convenção», ainda que animada das melhores intenções de «defesa simbólica» é fatalmente dogmática. No plano da recondução ontológica e da vocação pessoal, produz -se uma degenerescência que o pastor Bernard Morei distingue bastante bem: «A teologia latina traduziu a palavra grega "mistério" por "sacramento", mas a palavra latina não abrange toda a riqueza da palavra grega. Existe no mistério grego uma abertura ao céu um respeito do inefável, um realismo espiritual, uma força na exultação, que não exprimem a moderação lógica e concisão jurídica do sacramentalismo romano.» Estas virtudes de abertura sobre a transcendência no seio da livre imanência vão ser perdidas pela imagem simbólica. Tornando-se sintema, ela funcionaliza-se, teríamos quase vontade de dizer, relativamente aos clericalismos que vão defini-la, que se torna funcionária. A imagem simbólica, ao encarnar-se numa cultura e numa linguagem cultural corre o risco de esclerosar-se em dogma e em sintaxe. É neste ponto que a escrita ameaça o espírito quando a poé­ tica profética é suspeita e amordaçada. É verdade que um dos grandes paradoxos do símbolo é ser apenas expresso por uma «escrita» mais ou menos sintemática. Mas a inspiração simbólica pretende ser prevenção do espírito para lá da escrita sob pena de morte. Ora, toda a Igreja é funcionalmente dogmática, está institucionalmente ao lado da escrita. Uma Igreja, como corpo sociológico «Corta O mundo em dois: Os fiéis e os sacrílegos», especialmente a Igreja romana que, no momento culminante da sua história, agarrando com mão firme o gume dos «dois gládios», não poderá admitir a liberdade de inspiração da imaginação simbólica. Como já dissemos, a virtude essencial do símbolo é assegurar no seio do mistério pessoal a própria presença da transcendência. Esta pretensão surge num pensamento de igreja como uma porta aberta ao sacrilégio. Quer o legalismo religioso seja farisaico, sunita ou «romano», defronta-se sempre, fundamentalmente, com a afirmação que existe para cada individualidade espiritual uma «inteligência que age separadamente, o seu Espírito-Santo o seu Senhor pessoal, ligando-o ao Pleroma sem qualquer outra mediação». Por outras palavras, no processo simbólico puro, o Mediador, Anjo ou Espírito-Santo é pessoal, emana de certo modo do exame livre, ou melhor, da livre exultação, escapando assim a qualquer formulação dogmática imposta do exterior. A ligação da pessoa com o Absoluto ontológico, por intermédio do seu anjo, escamoteia mesmo a segregação sacramental da Igreja. Como no platonismo, especialmente no platonismo valentiniano, sob a capa da angelologia, existe relação pessoal com o Anjo do Conhecimento e da Revelação. 

Todo o simbolismo é, pois, uma espécie de gnose, isto é, um processo de mediação por meio de um conhecimento concreto e experimental. Como uma determinada gnose, o símbolo é um «conhecimento beatificante», um «conhecimento salvador» que, previamente, não tem necessidade de um intermediário social, isto é, sacramental e eclesiástico. Mas esta gnose, . porque concreta e experimental, terá sempre tendência a -figurar o anjo dentro dos mediadores pessoais do segundo grau: profetas, messias e, sobretudo, a mulher. Para a gnose propriamente dita, os «anjos supremos» são Sofia, Barbeló, Nossa Senhora do Espírito Santo, Helena, etc., cuja queda e salvação representam as próprias esperanças da via simbólica: a recondução do concreto ao seu sentido iluminador. Porque a Mulher, como os Anjos da teofania plotiniana, possui, ao contrário do homem, uma dupla natureza que é a dupla natureza do próprio «symbolon»: criadora de um sentido e ao mesmo tempo receptáculo concreto desse sentido. A feminidade é a única mediadora porque simultaneamente «passiva» e «ativa». Foi o que Platão já tinha expresso, é o que exprime tanto a figura judia da Schekinah como a figura muçulmana de Fátima. A Mulher é, pois, como o Anjo, o símbolo dos símbolos, tal como aparece na mariologia ortodoxa sob a figura da Teotokos, ou na liturgia das Igrejas cristãs, que se comparam facilmente, como intermediária suprema, como «Esposa».

Ora, é significativo que todo o misticismo do Ocidente venha banhar-se nestas fontes platónicas. Santo Agostinho nunca renegou completamente o neo-platonismo. E foi Scol Érigenes que introduziu no Ocidente, no século IX, os escritos de Dinis, o Areopágita. Bernard de Clairvaux, como o seu amigo Guillaume de Saint-Thierry, como Hildegardo de Bingen, são todos familiares da anamnese platónica. Mas face a esta transfusão do misticismo, a Igreja vigia funcionalmente com suspeição. 

Chegamos aqui ao factor mais importante do iconoclasmo ocidental, porque a atitude dogmática implica uma recusa categórica do ícone como abertura espiritual por uma sensibilidade, uma epifania de comunhão individual. Para as Igrejas orientais, o ícone é, na verdade, pintado segundo meios canonicamente fixados, e fixados, segundo parece, de modo mais rígido do que na iconografia ocidental. Mas não deixa de ser menos verdade que o culto dos ícones utiliza plenamente o duplo poder de recondução e de epifania sobrenatural do símbolo. Só a Igreja ortodoxa, aplicando plenamente as decisões do VII Concílio ecumênico, que prescreve a veneração dos ícones, dá totalmente à imagem o papel sacramental da «dupla dependência », o que implica que, por meio da imagem, do significante, as relações entre o significado e a consciência de adoração «não sejam puramente convencionais, mas radicalmente íntimas». Só então se revela o papel profundo do símbolo: ele é «confirmação» de um sentido a uma liberdade pessoal. É por isso que o símbolo não pode explicitar-se: a alquimia da transmutação; a transfiguração simbólica só pode, em última instância, efetuar-se na experiência de uma liberdade. E o poder poético do símbolo define a liberdade humana melhor do que qualquer especulação filosófica: esta última obstina-se a ver na liberdade uma escolha objectiva, quando na experiência do símbolo demonstramos que a liberdade é criadora de um sentido: ela é poética de uma transcendência no seio do sujeito mais objectivo, do mais implicado no acontecimento concreto. Ela é o motor da simbólica. É a Asa do Anjo.

Henri Gouhier escreve algures que a Idade Média se extingue quando desaparecem os Anjos. Podemos acrescentar que uma espiritualidade concreta é encoberta quando os ícones perdem o seu destino e são substituídos pela alegoria. Ora, nas épocas de recuperação dogmática e de endurecimento doutrinal, no apogeu do poder papal sob Inocêncio III ou após o Concílio de Trento, a arte ocidental é essencialmente alegórica. A arte católica romana é uma arte ditada pela formulação conceptual de um dogma. Não reconduz a uma iluminação, «ilustra» simplesmente as verdades da Fé dogmaticamente definidas. Dizer que a catedral gótica é uma «bíblia de pedra» não implica de modo algum que em relação a ela seja tolerada qualquer interpretação livre, que a Igreja recusa para a própria Bíblia escrita. Esta expressão significa simplesmente que a escultura, o vitral, o fresco, são ilustrações da interpretação dogmática do Livro. Se a grande arte cristã se confunde com a arte bizantina e a arte românica (que são artes do ícone e do símbolo), a grande arte católica (arte que sustenta toda a sensibilidade estética do Ocidente) confunde-se com o «realismo » e o ornamentismo gótico como com o ornamentismo e o expressionismo barroco . O pintor do «triunfo da Igreja» é Rubens, não Andrey Rublev ou mesmo Rembrandt.

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Assim, na aurora do pensamento contemporâneo, no instante em que a Revolução francesa vai acabar de desarticular os suportes culturais da civilização do Ocidente, percebe-se que o iconoclasmo ocidental sai consideravelmente reforçado de seis séculos de «progresso da consciência». Porque, se o dogmatismo da escrita, o empirismo do pensamento direto e o cientismo semiológico são iconoclasmos divergentes, o seu efeito comum não deixa de se ir reforçando ao longo da história. De tal modo que é esta acumulação dos «três estados das nossas concepções principais» que A. Comte vai notar e que vai fundar o positivismo do século XIX. Porque o positivismo que Comte destaca do balanço da história ocidental do pensamento é simultaneamente dogmatismo «ditatorial» e «clerical », pensamento direto ao nível dos «factos» «reais» por oposição às «quimeras», e legalismo cientista. Para retomar uma expressão que Jean Lacroix aplica ao positivismo de Auguste Comte, poderíamos dizer que a «redução» progressiva do campo simbólico conduz, no despontar do século XIX, a uma concepção e a um papel excessivamente «acanhado» do simbolismo. Podemos justamente interrogar-nos se estes «três estados»» que são os estados do progresso da consciência não são três etapas da obnubilação e sobretudo da alienação do espírito. Dogmatismo «teológico», conceptualismo «metafísico» com os seus prolongamentos ackhamistas e, finalmente, semiologia «positivista», são apenas uma extinção progressiva do poder humano de relação com a transcendência, do poder de mediação natural do símbolo.

Do livro A Imaginacao Simbolica por Gilbert Durand