sábado, 5 de dezembro de 2015

Apontamentos sobre o Existencialismo (Por Paul Evdokimov)

A filosofia existencialista se mostra mais nostálgica que agressiva. Seu pessimismo parece ser deliberado. Um aforismo de Heidegger exprime uma certa virilidade em desespero: "O homem é um deus impotente."

Indiscutivelmente tudo volta para Kierkegaard e sua violenta reação contra o racionalismo hegeliano. A especulação pan-lógica de Hegel não introduz nenhuma harmonia no real e não oferece salvação alguma. Kierkegaard centra sua reflexão pessoal e bastante concreta sobre a questão religiosa: O que devo fazer de mim mesmo; em outras palavras, o que devo fazer para ser salvo?

Ele construiu uma visão mais penetrante do auto-conhecimento e antecipou a psicologia profunda. Nas profundezas da alma ele descobriu a angústia e um sentimento de uma culpa a priori que divide o ser humano e instila um elemento infernal nele. É neste nível que a sede de salvação brota. A última alternativa apresenta a escolha entre o nada e o absoluto. Oferece a grandeza da fé em contemplar Cristo, que se faz contemporâneo de cada alma. Por outro lado, fugir para uma metafísica idealista é fugir do julgamento de Deus.

A razão pode funcionar apenas entre o início e o fim, por conseguinte, é colocada entre os dois. É por isso que a esfera intermediária do imanente não tem fundamento ontológico. Somente a angústia diante do nada pode destruir o imanente e conduzir ao "totalmente outro" religioso. É por ser "outro" que ele exige a crucificação de razão e apela para o "julgamento crucificado". O caso de Abraão ilustra como a moralidade é transcendida pela loucura da cruz. Desde então, o único verdadeiro testemunho da verdade é o mártir. Homem em si é apenas uma páscoa. A ressurreição da passagem pascal nos traz a transcendência em que a morte se faz Cristã; já não é algo intruso, mas o grande iniciador em direção ao grande mistério da eternidade.
                                             
No entanto, a teologia dialética, a teologia da cruz, ainda não é uma teologia da Parusia. O Deus de Kierkegaard, como o Deus de Jaspers, continua a ser um Deus absolutamente transcendente. O homem não está em Deus e Deus não está no homem; o homem está diante de Deus. Sua trágica sede não é apaziguada; ele ainda não conhece todo o mistério do Deus imanente e o casamento místico de cada alma com Deus. Kierkegaard não sabia que ao se casar com Regina Olsen sua alma poderia ter abraçado Cristo.

Heidegger tomou a fórmula: o homem é o ego existente. A existência precede a essência, o que significa que o homem cria ele mesmo, que sua essência determina seu destino; consequentemente, ele não tem nenhuma natureza, mas ele tem uma história.

Arremessado no co-estar com os outros, encontrando-se sempre "em situação", o homem médio não se opõe ao mundo. Suas preocupações, um elemento imediato da vida, dispersa sua atenção, direciona para o "não-ser", e esconde o real. Alienado de si mesmo, ele perde seu verdadeiro ego e se volta para o impessoal e o anonimo - expressado pelo "um", das Man. Construído pelas preocupações, o homem é ilusório, enganador, como um fantasma, pois faz com que nos esqueçamos do real, ou seja, do ego e sua liberdade. É por isso que o ego não emerge, exceto em contraste com o nada, naquela tela bruta onde a experiência inevitável da morte é projetada. Essa é a tragédia do homem. 

É assim porque o nada e a liberdade por si só não possuem razão e fundamento; eles são ilimitados e, portanto, correlativos e relacionados. De fato, a liberdade é limitada apenas pelo nada; ela experimenta seus limites apenas na sensação da morte que é essencialmente concreta, pessoal e inevitável. Somente transcendendo suas preocupações em relação à morte é que o homem experimenta a liberdade absoluta. Ainda mais, e isso é essencial, a consciência da morte desperta e impõe a decisão de realizar todas as possibilidades da liberdade e assim assumir a total responsabilidade que o ego enfrenta com seu próprio destino.

O homem, na emoção metafísica causada pela angústia diante da morte, experimenta a finitude de seu ser temporal, mas ele capta acima de tudo seu "não-ser" evidente pois foi fundamentado em seus cuidados e preocupações. Entendemos então a tese fundamental de Heidegger, que pode ser reduzido à formula célebre, Freheit zum Tode, a liberdade-para-a-morte; a grandeza trágica do homem revela seu Sein zum Tode, seu ser-para-morte.

A tarefa ética do homem consiste em transcender o mundo de suas preocupações em direção ao heroísmo da liberdade que é responsável pelo seu destino. Este ensinamento moral está estreitamente associado a ética dos estoicos. O homem mortal e impotente é declarado ser um deus. Não responsabilizado pelo ser que foi imposto a ele, ele assume a liberdade de avaliação e, assim, assume seu destino, seja qual for o resultado final. Ele impõe a si mesmo o dever de julgar. Sua liberdade, então, não é puramente arbitrária, mas ele continua a ser um juiz impotente por falta de um critério objetivo de julgamento, isto é, uma axiologia de valores em função do Absoluto. Não é esse o juiz penitente na obra A Queda de Camus?

Apenas um subjetivismo extremo e profundo, que é sério e verdadeiramente trágico, pode condicionar tal visão. A filosofia do nada é uma teologia sem Deus, e o lugar de Deus é concedido ao nada, e a característica do nada é aniquilar ou anular. Tal impasse, porém, poderia tornar-se salutar. Heidegger nunca escreveu o segundo volume de Sein und Zeit (Ser e Tempo), pois ele observou que sua filosofia não é uma explicação, mas uma descrição, e que não é uma negação de Deus, mas uma certa expectativa.

Sartre continua as teses de Heidegger. Sua psicanálise constrói uma mitologia do en-soi e o pour-soi, do ser e do nada. A visão é complexa porque o ser é dividido e o nada é múltiplo. No plano do ser, o en-soi é inconciliável com a pour-soi; se estabelecem e se destroem reciprocamente. A união dessas duas realidades, ou a convergência de essência e existência, é declarada impossível; esta é uma negação radical da ideia de Deus, que é essa mesma união.

O pour-soi (consciência, idealismo), dinâmico e mudando por meio de suas escolhas, aparece como uma fissura no estático en-soi (ser, realismo). Se estabelecer significa negar a ordem estática, negar acima de tudo, a própria imutabilidade. Ao afirmar a sua liberdade independente do mundo e do en-soi, o pour-soi resulta em negação, aniquila incessantemente e, assim, aumenta a diferença do não-ser no ser estático do en-soi e coloca-o no limite do nada.

A negação de um início e de um fim, ambos transcendentes, torna a liberdade trágica, coloca-a do lado de fora do perdão, que é possível no início, e fora da justificação, que é possível no fim. Entre a existência maciça de um mundo destituído de sentido, onde todos valores são artificiais e irremediáveis, e a mente humana habitada pela exigência de sua razão, há um abismo inevitável. Ao homem resta somente a liberdade de negar o mundo que lhe nega.

O homem está terrivelmente sozinho em sua liberdade assustadora e absoluta pela qual, como na filosofia de Heidegger, ele experimenta a total responsabilidade. Dessa maneira, fazendo da liberdade o elemento formal da verdade (quando aquela é uma condição dessa) ele logicamente chega à afirmação: "O homem está condenado a liberdade." Condenado porque ele não é o criador do seu ser, e livre, porque ele é totalmente responsável. Sartre claramente pertence à grande escola francesa de moralistas. 

A análise de má-fé mostra a falha de comunicação. Isso ocorre porque cada pour-soi tende a transformar outro pour-soi em um en-soi, para fazer de um sujeito um objeto. No final, ele corre o risco de transformar-se em en-soi, de petrificar-se em um estado estático por suas memórias e projetos. Nós ou tomamos posse do outro ou somos possuído pelo outro. Nosso relacionamento com o outro é sempre enganoso, e é por isso que as outras pessoas são um inferno para nós.

Se o marxismo é uma filosofia da totalidade, o existencialismo sartriano é justamente o oposto; é a filosofia daquilo que não pode ser total. De acordo com ele, a totalidade expressa a última abstração; pelo contrário, o concreto é o indivíduo. Sua realidade está em função da diferença, do descontínuo, entre o absurdo e o livre arbítrio. Nós podemos entender como a ideia de Deus, que preenche as lacunas, que faz a unidade a partir da pluralidade, e que dá sentido as coisas, diminuiria a tragédia da existência, suprimiria a solidão, limitaria e diminuiria o senso arbitrário de uma responsabilidade autonoma. 

Temos de dar ouvidos a essa especulação existencial que, de um ponto de vista filosófico, é muito poderosa. Ele derruba o otimismo presunçoso de filosofias religiosas de acordo com as quais o mal serve o bem e fazendo isso se torna não-existente como o mal; isso tornaria a morte de Deus na cruz incompreensível. Para Sartre, Deus diminuiria o radicalismo do mal, do infortúnio, da culpa. Podemos reconhecer aqui o kantianismo se tornar uma religião, mas sem o postulado da razão prática; é um kantianismo sem Deus. O rigorismo kantiano atingiria então seu apogeu. A ideia de Deus estaria em contradição com o absoluto da exigência moral, e é esse caráter absoluto que requer uma moralidade sem Absoluto. O maior paradoxo é que o desespero em seu apogeu refere-se necessariamente ao Absoluto que antes foi declarado como impossível. Tacitamente, a fim de manter a sua grandeza, a existência é um cooperador de valor e, portanto, o argumento ontológico é negado e descrito simultaneamente. Em última análise, é a ausência de Deus que faz o mundo absurdo e sem esperança. Portanto, essa ausência por si só justifica as posições extremas do existencialismo. Certamente não há uma resposta à questão colocada por essa relação; não há nem mesmo uma pergunta, pois não há "juiz" neste mundo sem finalidade. No entanto, Deus serve aqui como um ponto de referência, embora de forma negativa; tudo é pensado em relação à ausência do significado divino. Dostoievski mostrou que o sofrimento em seus extremos pode levar a uma complacência no sofrimento, e que a partir deste estado nenhum retorno é possível; o prazer do sofrimento suprime cada solução capaz de transcendê-lo.

Quanto mais livre é o homem mais só e mais estranho ele é para o mundo. No ar rarefeito das alturas, o ato permanente de estabelecer a si mesmo, de inventar a si mesmo, domina o medo e o desespero do homem. Isso lhe dá o direito de ser o árbitro supremo? Se Deus não existe, tudo é permitido? Para Sartre, que entende esta questão formidável de Dostoiéviski, a razão suficiente para a exclusão do crime reside na absoluta liberdade, que está relacionada com valores, mesmo se estes são contingentes e artificiais. Porque ser é ser-com, tem um lado que toca à existência de outros. Quando um homem se postula, ele ao mesmo tempo postula os outros. Ser livre e permanecer na posição vertical e sincera, é postular-se moralmente; é ter boa fé. Um criminoso, ao contrário, destrói a integridade de seu ser e de sua escolha; ele está de má-fé.

O ser em situação está inserido na história, e uma vez que o Marxismo oferece um sentido para história em sua teoria da evolução social, Sartre procura ali uma possível comunicação humana. O abismo da liberdade, muito estranhamente, desperta tonturas, nojo, náusea. Alguém poderia dizer que o engano compensa. Isto é o que Dostoiéviski previu, dizendo que o homem nunca será capaz de suportar o jugo da liberdade e que o Marxismo oferece uma possibilidade máxima de se livrar deste dom real. Sartre confessa: "Eu levo ao nada, meu pensamento não me permite construir qualquer coisa; não há outra solução que não seja o Marxismo" (La critique de la raison dialectique). A dificuldade, no entanto, permanece sem solução. O Marxismo exagera a importância da matéria a fim de torná-la criativa. Existencialismo, por outro lado, torna-a invisível para melhor lutar contra ela e manter o homem no comando.

Nietzsche, e Sartre em seu rastro, proclamaram a morte de um adversário sem nunca ter sucesso na eliminação definitiva dele. Sua sombra persegue; o contrário de Deus está, de fato, presente em cada pensamento do homem. A movimentação do homem em direção ao super-homem é frustrada por sua impotência e é derrotado. Freud descobriu a falha original misteriosa, a "morte do Pai". O homem que  fez isso nunca conseguiu superar seu remorso, e essa é a origem da neurose coletiva. O profundo pessimismo dos últimos trabalhos de Freud vem dessa clarividência tardia. Sua utopia da felicidade humana desmoronou, e sua renuncia foi amarga. Além disso, o super-homem não deu em nada, e o humanismo fechado dos ateus está fadado ao fracasso. 

Malraux no seu Mitamorphose des Dieux declara que, a fim de inventar e começar a sua própria divinização, o homem tem que conquistar seu complexo obsessivo do Absoluto. Ele pode fazer isso? Freud como psicoterapeuta responde negativamente. De acordo com Sartre, homem mata a Deus, a fim de dizer: "Eu sou, portanto, Deus não existe". Mas, mesmo para Sartre, este poder da liberdade manifesta sua vacuidade e a vaidade do nada. Gide quis seu ensinamento moral fosse mais consistente. Seu único princípio era de que um homem deve ir ao limite de si mesmo, para estar em conformidade com as normas sinceramente que cada um daria a si mesmo de acordo com sua livre escolha.

No entanto, a impunidade que goza cada ateu durante sua existência terrena não é a última palavra; a morte com ciúmes esconde seu mistério. O diabo contou a Ivan Karamazov a história de um ateu que após a morte percebeu que a realidade era diferente de suas idéias avançadas. "Eu não aceito-a, ela contradiz as minhas convicções", ele gritou, e deitou-se do outro lado da estrada. Ele foi condenado a caminhar até que seu cronômetro decompusesse em seus elementos.

Ao responder Sartre, Merleau-Ponty disse que o homem não está condenado à liberdade; ele está condenado ao significado, em outras palavras, ele é chamado a decifrar o sentido da existência e, acima de tudo, o significado da própria liberdade.

Devemos reconhecer a grandeza do existencialismo que centrou toda a sua reflexão sobre a liberdade. A liberdade, evidência fundamental da mente humana, liberdade constitui a atividade criativa do homem. Nesta função, a menos que ela se contradiga, ela não pode vir do mundo com o seu sistema de dependências e restrições. É evidente que a liberdade é transcendente ao mundo, tem sua origem de outro lugar, e é oferecida como um presente real. É por isso que na sua profunda filosofia Jaspers designa claramente o Doador e carrega o poderoso testemunho da existência de Deus. O grande mérito de Jaspers é a descoberta de uma prova de existência divina na liberdade. Encontramos lá, a pátria da liberdade, onde se encontra suas raízes, e desta forma há uma abertura em direção a Deus. Deus inspira para ser verdadeiramente livre; isto torna-o diferente em todos aspectos da dependência encontrada na teonomia kantiana. Deus criou uma "segunda liberdade". Para este dom de Deus o homem responde pelo dom de si mesmo; ele morre e nasce na convergência destas duas liberdades, e por esta experiência ele tem acesso ao sentido de sua existência. Sua liberdade nunca é um objeto para o homem. Não é nem mesmo uma ação, mas sim uma reação criativa ao Doador, ao seu convite para tornar-se livre para servir e testemunhar suas origens celestiais. 

Ainda resta uma forma bastante difundida de ateísmo: o psicologismo. Esta atitude mental tende a ver em cada sentimento religioso uma função da alma, um dado psicológico subjetivo. Ele reduz, assim, a religião a uma causalidade produtiva das metas ou a sublimação de um instinto. Toda expressão do homem nos traz de volta à nossa realidade presente, mas também a expande e leva aquela que nos fará mais plenamente nós mesmos. Ele quebra o círculo vicioso da imanência e refere-se ao transcendente. Aqui, o papel da psicologia profunda e a genialidade de Jung é decisivo. Jung demonstrou que o símbolo religioso atesta uma realidade que é ao mesmo tempo intra-humano e trans-humano.

Mesmo em casos clínicos, o símbolo sempre contém vestígios de arquétipos trans-subjetivos. O juízo da verdade não se refere apenas à ordem causal, mas a ordem de significado. Distúrbios provém dos significados que foram impostos a um homem, mas que ele não assumiu para si mesmo. Normalmente, um homem deve descobrir livremente o que ele é e dar a si mesmo a sua própria significação. É por isso que, de acordo com Jung, o problema fundamental para todos os doentes é a atitude religiosa. "Todos tornaram-se doentes pelo fato de que eles perderam o que as religiões sempre deram aos seus fiéis." Jung declara como certeza que cada vida tem um significado, e a tarefa do médico é levar o paciente a esta descoberta . Isto implica uma consciência religiosa clara. "Quem já passou por isso pode calmamente dizer: 'Foi uma graça de Deus'". "O homem que tem experimentou isso possui um tesouro inestimável e uma fonte que fornece um sentido para a vida."

Pode ser que o ateísmo moderno seja providencial para nos mostrar a necessidade urgente de purificar a nossa ideia de Deus, e elevar o diálogo a um plano bíblico e patrístico, acima de todos os sistemas de teologia ensinada nas escolas. Aqui, a mensagem de Jung assume amplitude e importância. O futuro depende do conteúdo espiritual trans-subjetivo da psique humana: Com o que e por que o homem viverá o seu destino? A quaternidade de que Jung fala é uma aplicação do dogma Calcedônio ("sem confusão e sem separação"), o mistério do oitavo dia, à apocatastasis ou a restauração final de todos os seres em Deus. A consubstancialidade de todas as criaturas é oposta à fragmentação. Os santos e mártires diante do trono do Cordeiro aguardam a mudança final da dissimilaridade à semelhança. Orígenes insiste nisso, dizendo que Cristo está à espera para a Sua glória brilhar na totalidade de seu corpo. Isso ainda permanece um mistério, é claro, porém, só o amor pode quebrar o coração da matéria desde dentro; mas para fazer isso, ele deve, seguindo o exemplo de Cristo, descer até lá. Jung nos diz isso como um psicologista. Foi sua última palavra, seu testamento final. Aqui ele vai além da ciência, suprime o psicologismo, e alcança a grandeza de um profeta dos últimos dias.


Retirado da obra Les Ages de La Vie Spirituelle por Paul Evdokimov

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

A Cosmologia Antrópica de São Máximo, o Confessor

São Máximo, o Confessor (580-662) é um dos mais importantes teólogos bizantinos. Sua teologia representa um marco do pensamento universal, um momento de síntese original, um ponto de partida para qualquer trabalho escrito depois dele. Ele permanece normativo para todos os ramos do pensamento teológico, especialmente após a canonização de sua cristologia no Sexto Concílio Ecumênico (681). Embora não sistemático, sua escrita é excepcionalmente coesa e coerente. Todas as categorias de seu pensamento estão ligadas uma com o outra; portanto, a fim de abordar uma delas, é preciso estar familiarizado com toda a sua obra. A melhor parte de sua reflexão teológica está no campo da cristologia, intimamente relacionada com os outros tópicos favoritos: cosmologia, antropologia e eclesiologia.

A cosmologia de São Máximo não encontrou uma aprovação oficial por um Concílio Ecumênico, como no caso com de sua cristologia, muitos teólogos consideram como um desenvolvimento pessoal das intuições mais antigas de antecessores como Dionísio, o Areopagita, Evágrio Ponticus e outros. Assim, sua teoria do logoi divino na criação foi considerado mais como um "theologoumenon" do que a teologia no sentido próprio da palavra. É mérito da teologia ortodoxa contemporânea e, especialmente, dos representantes da corrente "neopatrística", ter enfatizado o caráter tópico e original do pensamento cosmológico de Máximo. Por exemplo, no primeiro volume da sua Dogmática, o Reverendo Padre Dumitru Staniloae, praticamente o tradutor mais importante das obras de São Máximo em romeno, fez uma apresentação detalhada do ensino Maximiano sobre o logoi divino na criação. Este tópico é frequentemente tratado por estudiosos ocidentais que estudam São Máximo, de tal forma que chegou a um akmé sem precedentes no final do século passado. Inúmeras teses de doutorado, monografias ou artigos, bem como centenas de estudos e notas introdutórias fazem São Máximo, o Confessor um dos autores patrísticos mais estudados e mais inspirador na teologia contemporânea. O presente estudo é uma tentativa de enfatizar as principais diretrizes da cosmologia São Máximo, tendo em conta os estudos contemporâneos mais importantes. O principal objetivo desta abordagem é enfatizar a unidade entre a cosmologia e a antropologia, como descrito no trabalho São Máximo, bem como para sublinhar a dimensão humana do cosmos, a maneira em que o homem, como parte do cosmos, descobre sua vocação como mediador, entre o visível e o invisível, entre matéria e espírito, entre o inteligível e o sensível, e ultimamente, por meio de Cristo, entre Deus e o universo, como um indício de sua deificação.

O mundo e tudo que nele se encontra foram trazidos à existência do nada, ex nihilo. Isto é afirmado categoricamente por São Máximo várias vezes. A criação está em uma completa dependência de seu Criador. A transcendência divina é absoluta e as criaturas não podem existir sem seu logoi preexistente. Em termos de natureza, a distância entre Deus e Sua criação é expressa por São Máximo, através de várias expressões, cada uma delas com sua própria história e conteúdo: διαφορά (diferença), διαίρεσις (distinção, divisão), διάστασις (distância), διάστημα (separação, espaço). Assim, Deus "pela Sua Palavra e pela sua sabedoria fez todas as coisas e está fazendo, universais, bem como particulares no momento adequado". Sublinhando a diferença absoluta entre Deus e as criaturas, São Máximo, rejeita a pessimista visão platônica-origenista segundo a qual, antes de vir à existência, os seres preexistiam, unidos substancialmente com o Logos divino. Através do pecado, estes espíritos decaídos teriam atraído o castigo divino, que consistia essencialmente em tomar uma forma inferior, corpórea, da existência. Como Policarpo Sherwood mostrou, São Máximo, de forma crítica refutou origenismo (principalmente no Ambigua), na forma que tinha sido transmitida dentro das comunidades monásticas pela tradição Evagriana. Máximo fez isso confiando também na visão dionisíaca do mundo, elevando a espiritualidade Origenista-Evagriana de seu nível imanente e humano à uma relação entre o homem e Deus. Aqui ele desenvolve o tema do λόγοι divino.

O λόγοι divino

"Nós acreditamos que o logos dos anjos precede sua criação, o logos precede a criação de cada um dos seres e poderes que enchem o mundo superior; o logos precede a criação de seres humanos, o logos precede tudo o que recebe seu devir de Deus, e assim por diante". 

No entanto, esses logoi que precedem os seres e as coisas do mundo não têm uma existência antes da existência atual; eles são apenas meditações, pensamentos de Deus. O λόγος de um ser não é uma substância (οὐσία), mas a razão de uma substância (λόγος τῆς οὐσίας); ele não subsiste em si, mas Nele, ele só existe em potentiam [em potência], como uma possibilidade ainda não manifestada. Embora conhecido previamente como logos, um ser é criado por Deus no tempo, no momento certo, de acordo com um logos pré-estabelecido no início da Sua criação. Uma vez criado, um ser tem uma existência/subsistência real e efetiva, ou seja, é substancial.


Seguindo Dionísio, o Areopagita, São Máximo relaciona a noção dos logos de um ser à vontade divina. "Λόγοι dos seres não são manifestações da essência divina, mas manifestações da vontade criativa de Deus. Por esta razão, Máximo chama os logoi divinos de "vontades" (Θελήματα), também por representarem dentro dos seres a inscrição da vontade divina ou a intenção de Deus sobre cada ser e, finalmente, porque demonstram este propósito divino na própria criação." Larchet definiu com precisão o λόγος de um ser como seu princípio ou "sua razão essencial, o que fundamentalmente define e caracteriza, também a sua finalidade, o scopos para os quais existe um ser, resumidamente a sua razão de ser em um duplo significado de princípio e fim de sua existência".


Assim, o logoi dos seres aponta para o princípio, o significado da existência do ser em virtude de seu relacionamento com o Λόγος divino, mas ao mesmo tempo, eles também mostram o propósito que Deus tinha em vista para cada criatura particular e implicitamente para o mundo, como "nada que veio a ser é perfeito em si mesmo ou tem uma finalidade em si mesma". São Máximo, portanto, refere-se tudo ao propósito final (σκόπος), que é a deificação (Θεώσις) de toda a criação. No entanto, se encontra fundamentado na Encarnação. Desde o fundamento da criação, São Máximo vê o logoi de cada ser particular como uma espécie de encarnação. A presença misteriosa do Λόγος divino dentro do λόγοι dos seres estabelece o propósito divino como o fundamento do ser, definido previamente no mesmo ser, que é a deificação. "Vemos que o λόγος não é apenas uma vontade divina, no sentido em que corresponde à intenção de criação de Deus através do qual, e segundo a qual, Deus teria criado na hora certa o ser o que corresponde a esse logos, e para o qual o logos constitui o arquétipo ou o modelo primário (protótipo) desse ser em sua essência e sua peculiaridade. Os logos também corresponde à intenção divina com relação ao destino deste ser: ele define de antemão a sua finalidade, a finalidade a que deve tender e em que se encontra sua perfeição, e essa finalidade é unir-se com Deus e tornar-se deus por participação. Assim, este logos não é apenas uma indicação deste propósito ou algo que orienta, guia, e leva a criatura em direção a ele, mas ele está em Deus, no plano divino (ou de acordo com a boa vontade de Deus) que cada criatura já tem, potencialmente, cumprindo este fim. A explicação de São Máximo em relação ao λόγοι da criação, além da crítica do Origenismo, representa um ponto-chave de todo o seu pensamento unitário, como um todo. J.-C. Larchet traz esclarecimentos importantes sobre a maneira particular pela qual o logoi são organizados. Assim, cada ser responde ao mesmo tempo diferentes logoi: um logos que categoriza um ser particular no âmbito de um gênero (γένος), um logos que classifica-o sob uma espécie (εἴδος), um logos que define a sua essência (οὐσία ) ou natureza (φύσις) - Máximo faz uma referência especial aqui para esse logos fundamental da natureza [λόγος τῆς φύσεως] - um logos que define sua constituição (κρᾶσις), e também para alguns logoi que descrevem seu poder, seu trabalho, sua paixão, respectivamente, mas também ao seu caráter próprio de acordo com a quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, movimento, estabilidade (Amb 15, 1217AB;. 17, 1228A-1229A) e outros numerosos logoi que correspondem às várias qualidades de Deus.

Assim, o próprio individuo não corresponde apenas a um único logos, mas também a uma multiplicidade de logoi que são, no entanto, unificados e sintetizados em seu próprio logos. Alguns logoi podem pertencer a outros seres também. A este respeito, alguns dos logoi são singulares ou peculiares, enquanto que outros são gerais ou universais (Amb. 7, 1080A, 21, 1245B), de modo que uma recapitulação intelectual na contemplação e uma unificação espiritual de logoi são possíveis partindo do singular para o universal, passando por diferentes etapas intermediárias até a sua Causa inicial ou principal (Amb. 41, 1309C). Há também logoi que de acordo com a coesão desses diferentes logoi são realizados no interior de um mesmo indivíduo e que lhe permite preservar sua própria unidade dentro do universo inteiro, que, consequentemente, lhe permite preservar ainda mais a harmonia das diferentes partes constitutivas do cosmos e a coerência das diferentes leis (nomoi) que asseguram seu funcionamento (Amb. 17, 1228B-1229A, 41, 1312BD).  Certos logoi determinam a ordem de coexistência das criaturas e sua perpetuação (Amb. 15, 1217A). Outros logoi definem o seu aumento ou diminuição quantitativa, enquanto outros definem seus ajustes qualitativos.

Consequentemente, e em correlação uns com outros, certos logoi garantem a permanência e a identidade dos seres em relação a sua natureza, seu poder e seu trabalho em relação ao movimento que os afetam, e as relações entre eles, respectivamente. De acordo com esses logoi os seres "têm uma ordem e uma permanência, eles não se desviam de sua propriedade natural, nem se transformam em algo diferente ou se misturam" (Amb. 15, 1217A). Alguns logoi (razões) tem uma função distinta, de modo que os seres não são confundidos uns com os outros e essa função faz com que cada ser diferente, distinto e independente de todos outros. Outros logoi possuem, correspondentemente, uma função unificadora que faz com que as coisas subsistam sem separação e dispersão dentro deles ou entre eles. Estão em relação uns com os outros e cada vez mais unidos o tanto quanto ascendem ao universal (assim, os indivíduos são unidos pelo logos das espécies que pertencem, as espécies são unidas pelo logos do gênero que estão ligadas), até atingirem uma unidade suprema (Amb. 41, 131B-1313B). Assim, dentro da criação há uma "diferença indivisível" e uma "peculiaridade distinta" (Amb. 7, 1072C).

A unidade dos λόγοι no Λόγος

Vimos que há uma certa diversidade entre as criaturas do mundo, uma vez que cada uma delas é caracterizada e fundamentalmente definida por um certo número de λόγοι. Através dos λόγοι cada criatura ou coisa tem sua individualidade diferente das outras. Ao mesmo tempo, como já vimos, através do λόγοι a finalidade de cada criatura - sua deificação (Θεώσις) - é predeterminada.

O Logos ou o Verbo de Deus é Aquele que reúne em Si mesmo a multidão de λόγοι, porque em Si mesmo, no pensamento eterno de Deus, as razões de todas as criaturas foram determinadas, o próprio mundo sendo feito por Ele (de acordo com João 1: 3; Colossenses 1:16). São Máximo explica que "afirmamos que o Logos são muitos logoi e que os muitos logoi são Um. Pois o Um sai de si pela bondade para um ser individual, criando e preservando, o Um são muitos. Além disso muitos são direcionados para o Um e são providencialmente guiados nessa direção. É como se eles fossem atraídos por um centro todo-poderoso que construiu em si o início das linhas que vão para fora e que recolhe todos juntos."

Dentro do Logos, todos logoi - tanto das coisas como dos seres - preexistem. Através de sua atualidade/configuração ["plastificação", por Staniloae], eles revelam o mesmo trabalho e presença do Logos. Em cada criatura, através dos logoi, todo o Logos se faz presente e manifestado. Isso inspira São Máximo comparar nossa contemplação deste mundo com o encontro entre Elisabete e Maria, Mãe de Deus (Lucas 1: 39-56). Em nossa forma material e corpórea, todos e cada um de nós representamos São João Batista no ventre, enquanto que o Logos está escondido nas criaturas, como se estivesse em outro ventre.

De fato, cada λόγος misteriosamente contém o Logos em maior ou menor grau. Aqui a ideia da presença de Deus no mundo pelos logoi nas criaturas é firmemente declarada. Esta presença do Logos liga cada ser com Deus, mostrando-se como uma "porção (μοῖρα) de Deus, porque o logoi do nosso ser pré-existia em Deus".

Contrariamente a Orígenes que via um declínio na corporalidade e na materialidade, São Máximo, mostra o valor positivo do mundo, como um caminho necessário para Deus. Assim, de acordo com São Máximo, a criação do mundo em si é uma Revelação. É a própria Revelação natural. A essência dessa Revelação é a misteriosa presença do Logos nos logoi das criaturas. Isto é considerado por São Máximo como sendo uma Encarnação do Logos. Às vezes ele fala sobre a tripla encarnação do Logos: na natureza, na Sagrada Escritura e na pessoa histórica de Cristo.

"O Verbo se torna espesso […] escondendo Ele mesmo misteriosamente por nós dentro do logoi das criaturas e, assim, Ele se revela em conformidade/analogamente através das coisas visíveis como por trás de sinais escritos como um todo em Sua plenitude na natureza inteira e sem diminuir-se em cada parte, nas variedades de naturezas como alguém que não possui nenhuma variação e é sempre o mesmo, em  compostos, como Aquele que é simples, sem partes, nas coisas que têm seu começo no tempo, como Aquele sem começo, como o Invisível no visível, o inapreensível nas coisas tangíveis. Por nossa causa Ele encarnou e para encarnar dentro das cartas ele se dignou em ser expresso em sílabas e sons (refere-se às Sagradas Escrituras). O propósito de tudo isso é para nos atrair até Ele, para nos reunimos em Sua presença dentro de um curto período de tempo, tendo-se tornando um em espírito, nós, que somos espessos em mente."

Correspondente as três Encarnações do Logos na criação, na Escritura e em Cristo, há três leis universais que governam o mundo: a lei natural, a lei escrita e a lei da graça. O conteúdo de cada lei é Cristo, o Logos. Isso prova a unidade da Revelação divina, uma descoberta única e gradual do Verbo. A diferença entre as três leis reside na intensidade da presença do Logos em cada uma delas. São Máximo não considera a revelação como a divisão escolástica entre natural e supernatural, mas uma única manifestação do mesmo Logos em três diferentes estágios.  Isso o leva a conclusão que "Se é julgado ou não pela lei escrita, é através de Cristo e nEle que se será julgado". Entre as três leis, a relação não é uma de subordinação em relação ao conteúdo. Isto prova a importância que tanto a lei natural quanto a escrita têm para São Máximo, cuja concepção muda radicalmente daquela de seus predecessores, Orígenes e Agostinho: "são dois termos de igual valor dialético, se complementam um ao outro".  "Através de cada uma das três leis da manifestação de Si mesmo ele leva a Si mesmo em Sua completa e secreta ocultação toda a criação".

                                               

A dinâmica da criação

A concepção cosmológica de São Máximo, o Confessor é altamente dinâmica. Ele desenvolve este conceito de movimento (κίνησις) das criaturas especialmente enquanto refuta o origenismo. De acordo com Orígenes, entre as criaturas e Deus há uma certa conaturalidade, pois estão ambos em um estado de repouso ou descanso (στάσις), em uma unidade original (henada). No entanto, por saciedade (κόρος), os espíritos passaram por um movimento de declínio, o que implicou sua entrada na vida corpórea (γένεσις), que será seguida por seu retorno à henada original, no final dos tempos.

Para Orígenes, o movimento é, de certa forma, a causa do pecado, e São Máximo, no início da Ambigua, resume o ponto de vista origenista mostrando que "de acordo com sua opinião, existiu uma vez uma entidade única de seres racionais. Estávamos todos conaturais com Deus e tínhamos nossa morada (In. 14: 2) e fundamento em Deus. E então veio o movimento e disto eles dizem que, como os seres racionais foram dispersos em várias maneiras, Deus considerou a criação deste mundo corpóreo para uni-los com os corpos como punição por suas antigas transgressões". Existe, portanto, a tríade origenista στάσις-κίνησις-γένεσις que é revertida por São Máximo em γένεσις- κίνησις-στάσις. No entanto, isto não é apenas uma questão de uma simples mudança de posições pois São Máximo muda até mesmo os significados desses conceitos, dando-lhes outros valores.

De acordo com o Confessor, o movimento é natural de todo ser: O divino é imóvel, uma vez que preenche todas as coisas, e tudo o que foi trazido do não-ser ao ser é movido (porque tende em direção a algum fim). "O movimento que tende para o fim adequado é chamado de poder natural (δύναμις φυσικήν), ou paixão (πάθος), ou movimento de passar de um lado para o outro e que tem a impassibilidade como seu fim. É também chamado de atividade irrepreensível e que tem como seu fim a realização perfeita."

No sistema de São Máximo, o movimento também está relacionado com a idéia de propósito, de finalidade, porque "nada do que veio a ser é perfeito em si mesmo, nem tem um propósito em si mesmo." Aqui a tríade de São Máximo, γένεσις- κίνησις- στάσις pode ser referida dentro de uma tríade complementar ἀρχή-μεσότης-τέλος (início-princípio - meio - final). O movimento corresponde e é específico para o intervalo entre a gênese (início) e o final. O movimento é parte constitutivo dos seres. Juntamente com a sabedoria e a escolha , ele determina o estado final, em conformidade ou não com o propósito do Criador. Por estes, o ser determina-se em direção a uma boa existência ou em direção a uma existência contra a natureza, que não corresponde à vontade de Deus:

"Se, então, o ser racional vem a ser, certamente são movidos, uma vez que se movem de um começo natural no "ser" em direção a um fim voluntário no Ser"

Na Ambigua 10, São Máximo descreve os cincos modos de contemplação natural (τρόπων τῆ φυσικῆς Θεωρίας). São, na verdade, cinco das dez categorias aristotélicas que São Máximo mantem aqui: substância (ουσία), movimento (κίνησις), diferencia (διαφορά), união (κράσις) e estabilidade ou posição (θέσις). As primeiras três são apenas modos do conhecimento de Deus e indicam Deus como Criador, Providente e Juiz e os dois últimos são modos de deificação do homem. "O movimento é indicativo da providência de seres. Através dele podemos contemplar a semelhança invariável de cada uma das coisas que vieram ser de acordo com seu ser e forma e de igual modo os seus modos invioláveis da existência, e entender como tudo no universo é separado uns dos outros de uma forma ordenada em conformidade com o logoi em que cada coisa é composta por Aquele inefável que mantém e protege tudo de acordo com a unidade." 

Relacionado a πρόνοια, κίνησις aparece aqui como mais que um simples movimento do divino para o humano, sendo, assim, um modo de Revelação de Deus ao homem, a presença de Deus que move as criaturas a partir do inteiror. Por este poder natural, os seres tendem a Deus, e Ele governa a fim de que este movimento seja direcionado a existência do bem com a ajuda da livre escolha das criaturas.

O movimento caracteriza não só cada ser, mas também o universo inteiro em um processo de expansão (διαστολή) - e contração (συστολή):  Mas aquele que é simplesmente chamado de ser em si mesmo não é apenas aquelas coisas sujeitas a alteração e corrupção, movidas de acordo com o movimento e corrupção, mas também o ser de todos seres qualquer um que tenha se movido e são movidos de acordo com a razão e o modo de expansão e contração. Pois ele é movido a partir do tipo mais universal através das formas mais universais, pelo qual tudo é naturalmente dividido, procedendo até as formas mais específicas, por um processo de expansão, circunscrevendo seu ser em direção ao que está abaixo, e novamente, é reunido a partir das formas mais específicas, recuando para o mais universal, até o tipo mais universal, por um processo de contração no sentido de definir seu ser naquilo que está acima." 

A dualidade διαστολή- συστολή que caracteriza o processo de expansão e contração de um ponto de vista cosmológico, juntamente com o duplo conceito origenista-evagriano da providência e julgamento (πρόνοια καὶ κρίσις) limpo de heresias inerentes, juntamente com o conceito de movimento (κίνησις ) ajuda Máximo demonstrar como a estrutura do cosmos, juntamente com o plano de salvação, formam uma visão antropo-cósmico da Cristologia. "Cristologicamente este sistema é expresso através de uma visão equivalente a "tornar-se denso"(παχύνεσθαι) e o "tornar-se fino", que corresponde a vinda de Cristo ao mundo e Seu retorno ao Pai. Em Amb. 3334, isto é mais claramente ligado à ideia da encarnação tripla bem como a as três leis gerais do mundo: a lei natural, a lei escrita e a lei da graça "

No que diz respeito ao último termo da tríade  γένεσις- κίνησις- στάσις, como já foi mencionado, corresponde ao propósito que Deus atribuiu às Suas criaturas - deificação. A distância entre o início e o fim desaparece, não há intervalo (διάστημα) no infinito que o homem obtém: "Todo o movimento das coisas que naturalmente se movem chegam ao fim uma vez que elas não tem mais para onde se mover, como ou em que direção se mover, pois elas têm Deus como seu último fim/terminus, que em Sua qualidade de última Causa é a própria extremidade do infinito e põe fim a todo movimento." Vemos, portanto, que este caráter dinâmico do mundo não está associado a uma compreensão autônoma do mesmo, com uma auto-determinação ou com uma evolução (no sentido darwinista). Por um lado, uma compreensão de um universo estático e rígido é evitado, e, por outro, esta concepção está intimamente ligada a presença divina dentro da criação. Como vimos, entre os vários tipos de logoi divino, há também alguns logoi que caracterizam o movimento dos seres. A dinâmica do mundo é orientada espiritualmente e "logicamente". 

Na menção de um fragmento da Amb.737 em sua Introdução à Ambigua, o Reverendo Padre Dumitru Staniloae diz que, na verdade, desde que o movimento é natural, ele nunca vai parar, mesmo depois que o homem chega ao repouso (στάσις), porque, então, suas forças naturais não são destruídas, mas se aperfeiçoam e recebem estabilidade em seu trabalho. Essa idéia é muito próximo ao do epektasis de São Gregório de Nissa: "Estabilidade / imobilidade em Deus é também o movimento; não um movimento de um limite para um outro limite, mas um movimento firme como experiência de uma renovação contínua da infinitude divina na qual teremos tudo. A imobilidade consiste no fato de que a alma já não tem qualquer desejo de se afastar de Deus em relação a qualquer outra coisa, porque Deus é infinito, como fonte pessoal de amor eterno em Sua manifestação como Trindade. […] Propriamente falando, esta será uma mobilidade imóvel, concentrada no mesmo conteúdo infinito, uma realização e um supra-realização de qualquer capacidade de visão espirital." Tudo que é natural no homem será então aperfeiçoado e supra-realizado pela presença de Deus, que "preenche tudo em tudo". 

Homem, o mediador da deificação

Essa ideia da posição do homem, como um mediador entre Deus e à criação tem uma posição central na obra de São Máximo. Parece meramente implícita várias vezes. Lars Thunberg analizou extensivamente este tópico em sua obra Microcosm and Mediator, publicada em 1965, reeditada e atualizada em 1995. 

De acordo com São Máximo, o Confessor, o homem é um mediador por natureza. Sua própria constituição psíquica e física, devido ao fato de ser criado à imagem de Deus, ajuda-o a lidar com isso. Além disso, o homem é um microcosmo (ὁμικρòσ κόσμος), um mundo reduzido, recapitulando em si os elementos de todo o mundo, em seu corpo e em sua alma. Muitos fragmentos de textos do Confessor enfatizam a posição central do homem entre os elementos da criação. "Ele foi trazido à existência como uma obra que tudo contem, ligando das as coisas nele mesmo. Como tal, para ele foi dado o poder de unificação, graças ao seu relacionamento adequando com suas próprias diferentes partes. O homem foi trazido à existência como a última das criaturas de Deus, pois ele deveria ser uma ligação natural entre toda a criação, mediando μεσιτεύων entre os extremos através dos elementos de sua própria natureza. 

No capítulo VII de sua obra Mistagogia, São Máximo analisa a analogia entre o homem e o cosmos, mostrando que "O cosmos por completo, consistindo das coisas visíveis e invisíveis, é o homem. E o homem consistindo de corpo e alma é o cosmos. Pois as coisas inteligíveis participam da substância da alma assim como a alma tem a mesma razão que os inteligíveis. As coisas sensíveis carregam a imagem do corpo assim como o corpo é a imagem das coisas sensíveis. As coisas inteligíveis são a alma das sensíveis e as coisas sensíveis são o corpo das inteligíveis." Este texto categoricamente destaca a posição do homem como microcosmo, enquanto que o fato de que o homem é um tipo cosmos sugere sua vocação como mediador entre o perceptível e o inteligível, embora isso não seja explicitamente afirmado no texto. A possibilidade do homem para realizar esta mediação é dada pela unidade bastante natural que existe na diversidade das duas partes do dualismo antropológico básico, entre a alma e o corpo, "para isso existe uma lei que une-os. Nestes existe um logos de um poder unificador que não permite perder sua identidade baseada em sua unidade de acordo com a hipóstase."

A união entre a alma e o corpo do homem é natural, já que ele tem uma natureza composta (φύσις σύνθετος), baseado em um logos de natureza comum (λόγος φύσεως) que define a lei que o texto acima menciona. Como veremos adiante, na Ambigua 41, mostra explicitamente que o homem, esse microcosmo, é chamado para mediar entre as duas partes daquele homem maior (μακράνθρωπος), que é o universo visível e invisível, mas isto é apenas uma das cinco mediações fundamentais que o homem é chamado a cumprir.

A mesma vocação para mediar por sua natureza é também descrita na Ambigua 10, onde a alma é chamada para mediar entre a substância e Deus. "A alma é um meio entre Deus e a matéria e possui poderes que podem unir-se com ambos, ou seja, possui uma mente que liga a alma com Deus e os sentidos que liga com a matéria. 

No entanto, o homem não é um mediador entre o visível e o invisível só porque ele pertence ao mundo material através de sua forma corpórea e ao mundo espiritual; através de sua alma ele é um mediador por vocação; isto é magistralmente mostrado na Ambigua 41, um trecho que contém a essência da tese de Lars Thunberg (1965)Desde o momento de sua criação, o homem, que foi o último entre os estágios da criação, recebeu de Deus a missão de unificar com Ele através de si mesmo todos os níveis da criação, transcendendo as cinco divisões ou polaridades (διαιρέσεις) das coisas existentes neste vasto processo cósmico, e isso coincide praticamente com o próprio processo de deificação para a qual o homem é chamado. As cinco divisões que o homem tem que transcender são:

Entre a natureza criada e incriada;

Dentro da criação, entre o mundo inteligível e o mundo perceptível;

Dentro do mundo perceptível, entre a terra e o céu;

Dentro da terra, entre o Céu e o mundo habitado;

Dentro da natureza, entre o homem e a mulher. 


A vocação do homem é de transcender as cinco divisões, começando com o quinto estágio, aquele entre o homem e a mulher. Por meio de uma vida livre de paixões, vivida de acordo com o princípio comum (λόγος φύσεως), a divisão em gêneros deveria ser transcendida, simplesmente por revelar o ser humano. No segundo estágio, ele deveria unificar o Céu e o mundo habitado através da virtude, por meio da transformação de toda terra em céu, e então transcender as condições espaciais, unificando o céu com a terra, desimpedido pelo corpo. Através de uma consciência e virtude semelhante aquela dos anjos, ele deveria unificar o mundo inteligível com o mundo perceptível. "E finalmente, além de tudo isso, a pessoa humana une a natureza criada com a incriada através do amor (Ó, a maravilha do amor de Deus por nós, seres humanos!), mostrando-lhe ser uma só; através da posse da graça, toda criação inteiramente interpenetrada por Deus, torna-se completamente o que Deus é, exceto o nível de ser". 

Esta imagem de um universo que revela a sua vocação através do homem é significativo para toda a teologia patrística. A totalidade do mundo existe para o homem, revela o seu significado através do homem: "não é que o homem seja uma parte do cosmos, mas que todas as partes do cosmos são partes do homem. O homem não é um microcosmo ladeado por um macrocosmo, nem ele é enquadrado dentro de um macrocosmo, mas ele é o próprio cosmos, na medida em que ele dá uma unidade completa e um significado completo a todas as partes da criação". A este respeito, as considerações metafísicas de São Máximo, o Confessor convergem com as intuições contemporâneas da Física, especialmente com o que hoje
chamamos de princípio antrópico, que gerou muitas controvérsias entre os cientistas contemporâneos.

Este princípio da cosmologia científica e da astrofísica tem duas formas. Na sua forma moderada afirma que "se as leis e os parâmetros fundamentais do universo tivessem tido valores diferentes, a vida, a consciência e o homem poderiam nunca ter aparecido". De fato, a alteração do valor de um única constante universal no universo, por um pequeno quantum, teria feito a existência do homem impossível hoje, porque não haveria as condições exteriores. 

Tanto no nível atômico quanto no nível cósmico, nem o mundo, nem o homem, jamais poderia ter existido.

Na sua forma mais forte, o princípio antrópico "leva-nos, de fato, para a hipótese segundo a qual não só a nossa existência depende de um ajuste muito preciso das leis e constantes universais, mas que, de certa maneira, o cosmo é construído para gerar vida, consciência e o homem "50. Aqui, o homem aparece como o propósito e significado do universo, que existe para que o homem possa meditar sobre a sua existência, para que ele possa transcendê-la através da contemplação e possa amar Aquele que fez tão perfeitamente. "Em primeiro lugar, o universo se apresenta como um todo extremamente bem organizado, um sistema extraordinário cuja evolução revela uma crescente complexidade. Este universo pode, legitimamente, ser chamado de antrópico, pois parece ter um propósito: permitir o aparecimento de vida e do homem"

Em um livro famoso, dois físicos britânicos, John D. Barrow e Frank J. Tipler desenvolvem as conclusões do princípio antrópico em várias de suas versões que são extremamente reveladoras para a cosmologia contemporânea. Assim, o princípio antrópico forte afirma: "O Universo deve ter as propriedades que permita o surgimento de vida em si, em algum determinado estágio de sua história."

Isto significa que as leis e os valores constantes da natureza precisam existir para que a vida na sua forma inteligente (humana) possa existir. Sem seu quadro complexo e natural, o homem não poderia existir. Este ponto de vista é perfeitamente escriturístico.

Outra alternativa para o princípio antrópico é o seguinte: "Somente há um único possível Universo, destinado com fins de geração e sustentação dos observadores". Esta rejeita as teorias dos múltiplos universos de uma perspectiva quântica da existência dos observadores. 

Outras versões apresentadas por Barrow e Tipler: O Princípio Antrópico Participativo: "Os observadores são necessários para que o Universo nasça" (J.A. Wheeler, 1977).

O Princípio Antrópico Final: "o processamento inteligente de informação deve figurar no Universo, e uma vez que aparece, ele nunca desaparecerá". 

A primeira alternativa tem uma conotação teleológica, de acordo com sua finalidade, e seu scopos particular, enquanto que a segunda tem conotações escatológicas. Na maneira em que existe no Universo, na forma humana, a vida não será destruída, mas deverá existir na perspectiva de sua perfeição (transfiguração) no escaton. 

No mesmo trabalho, outras conclusões interessantes são retiradas, que podem contradizer algumas teorias anteriores de físicos ou escritores de ficção científica: no Universo não há outras formas de vidas inteligentes e superiores semelhante ao homem. Nós somos os úncios seres vivos superiores, com um destino único em um Universo, em um planeta "que é um dos nove planetas que giram em torno de uma estrela que, por sua vez, é apenas uma de aproximadamente 10¹¹ estrelas na Galáxia e nossa Galáxia é apenas uma das 10¹² Galáxias no Universo visível". 

Retornando a opinião do Confessor sobre a vocação do homem, devemos indicar: a queda do primeiro homem, imediatamente após a sua criação, tornou impossível o trabalho de mediação que ele tinha que cumprir tanto por seu estatuto e por sua vocação. Em vez de unir as coisas divididas, sua desobediência contribuiu a divisão daquelas unificadas.

A realização dessa vocação primordial do homem será alcançada por Cristo como homem, por sua Encarnação. "E, assim, Ele cumpre o grande propósito de Deus Pai, congregar tudo tanto as que estão nos céus como as que estão na terra (Efésios 1:10) em quem tudo foi criado". Além disso, "o Deus-feito-homem acabou com a diferença e a divisão da natureza em masculino e feminino, diferença essa que a natureza humana de modo algum precisa para a geração, como alguns sustentam. Não havia nenhuma necessidade que essas coisas durassem para sempre. Pois, em Jesus Cristo, como diz o divino Apóstolo, não há nem homem e nem mulher (Gal. 3:28). Por meio de Sua vida como homem, Ele uniu o Céu com a terra habitada, tornando o mundo inteiro um lugar inseparável do Céu. "Então, por sua ascensão aos Céus, Ele claramente uniu os céus e a terra e com seu corpo terreno que é da mesma natureza e consubstancial com o nosso, Ele entrou no céu e mostrou que toda a natureza que se pode perceber através dos sentidos é, pelos logos mais universais de seu ser, uma que obscurece a natureza peculiar da divisão que corta em dois. Então, além disso, ao passar com sua alma e corpo, isto é, com toda a nossa natureza através dos graus divinos e inteligíveis do céus, ele uniu o sensível com o inteligível e mostrou a convergência de toda a criação com o Um de acordo com seus logos mais originais e universais, que é completamente indivisível e em repouso em si mesmo. E, finalmente, considerada na Sua humanidade, Ele vai até o próprio Deus, tendo aparecido claramente, como está escrito, na presença de Deus Pai em nosso favor (Heb. 9:24), como um ser humano. Como Verbo, Ele não pode ser separado de forma alguma do Pai; como homem, Ele cumpriu, em palavra e verdade, com uma obediência imutável, tudo o que, como Deus, ele premeditou para ocorrer, cumprindo toda a vontade de Deus Pai em nosso nome. Pois nós tínhamos-nos arruinado por abuso do poder que naturalmente nos foi dado desde o início para esta finalidade. 


Esta obra do Logos encarnado suporta uma cristologia cósmica que "tem como base uma antropologia cósmica e uma cosmologia antropizada". A vinda de Cristo ao mundo, não é apenas aparente. Está ontologicamente vinculada à estrutura do mundo e do homem, e essa idéia pode ser relacionado com o problema que já mencionamos acima, as duas "realizações" anteriores do Logos, no logoi da criação e no logoi da Sagrada Escritura. Para Máximo, esta cristologia cósmica torna-se a fundação, a ligação entre todos os outros capítulos de seu pensamento. Todos se tornam cristocêntrico e são pensados através de Cristo.

A vida espiritual do homem torna-se fundamentalmente cristocêntrica. O que o homem não poderia fazer, utilizando adequadamente suas habilidades naturais cooperando com a graça divina, agora pode realizar através de Cristo. Como o homem pode efetivamente realizar essa mediação e o que isso significa para ele? L. Thunberg mostrou que a superação das cinco divisões significa, para o homem, a realização da ascensão espiritual, que é geralmente conhecida dividida em três estágios: πράξις, θεωρία e da união mística com Deus. O estágio de praticar as virtudes corresponde às duas primeiras polaridades (homem - mulher, céu - mundo habitado), o estágio da contemplação natural corresponde às próximas duas (céu - terra, sensível - inteligível), que são seguidos pela unificação com Deus. As primeiras quatro divisões são transcendidas pelo homem, que torna, assim, o λόγοι das coisas atualizados em si, assim como os λόγοι das virtudes que são de uma natureza mais espiritual. O progreso do homem na virtude é o caminho de transcender as divisões, a partir das virtudes básicas (sensibilidade, justiça, coragem, moderação), através da sabedoria e bondade que suportam a apatheia (ἀπάθεια) e contemplação, terminando com o amor (ἀγάπη), a virtude mais divina e mais geral que unifica em si todas as coisas divididas. Através da virtude em geral, e através do amor em particular, o homem faz todo o cosmos atual em si mesmo, que se torna humano na medida em que o homem se torna deus, oferecendo-se através dele para o Criador, no mesmo movimento de amor. 

Conclusões

Em seus escritos, São Máximo, o Confessor, apresenta uma visão particularmente coerente da estrutura e o sentido da existência do cosmos e do homem. O homem tem um lugar bem determinado no interior do cosmos, onde ele realiza seu universo, sua vocação (deificação). O homem não pode existir sem sua moldura cósmica, natural, mas também o próprio mundo não poderia existir sem seu mediador, o homem; essa concepção converge com as teorias da cosmologia científica contemporânea (Barrow, Tipler).

Em suas explicações, São Máximo, baseia-se na idéia do logoi divino dos seres pelos quais o mundo está harmoniosamente organizado. Eles revelam uma presença divina no cosmos (revelação natural), permitindo-lhe falar de uma verdadeira encarnação do Logos dentro dos seres, incorporação que antecede outro dois critérios, as Escrituras e a pessoa histórica de Cristo. Embora houve vozes que refutaram a teoria do logoi divino de São Máximo, acreditam que isto só possa ser discutido em uma teologia do tipo escolástico, marcado pelo dualismo do tipo natural-sobrenatural. 

Se há alguma pretensão de confirmação e aceitação geral de um acordo escolar sobre o ensino de São Máximo, o Confessor sobre os logoi divino, podemos dizer que existe, contudo, duas ideias históricas que podem apoiar este sistema. A primeira ideia é a forte ligação que existe entre sua cristologia e cosmologia; a este respeito, sua cristologia permanece normativa para a Ortodoxia, devido à sua canonização no Sexto Concílio Ecumênico em Constantinopla, enquanto a cosmologia é incompreensível sem a sua orientação cristológica. O segundo argumentos seria a reconsideração do tema dos logoi divinos no século 14, durante as disputas palamitas, como uma assimilação parcial do conceito de energia incriada com aquele dos logoi divinos, uma vez que os dois não se sobrepõem completamente. Redescoberta no século anterior, o tema das energias incriadas, se torna um dos mais profundos na Teologia Ortodoxa. 

Artigo original "The Anthropic Cosmology of St Maximus the Confessor", por Dragos BAHRIM

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

A Ilusão da Vida Vulgar (Por René Guénon)

             A atitude materialista, quer se trate de materialismo explícito e formal, quer de simples materialismo «prático», traz necessariamente, em toda a constituição «psico-fisiológica» do ser humano, uma modificação  real e bastante importante; isto é fácil de compreender, e, de facto, basta olhar à nossa volta para constatar que o homem moderno se tornou verdadeiramente impermeável à qualquer influência que não seja a que está ao alcance dos seus sentidos; não só as suas faculdades de compreensão se tomaram mais limitadas, mas o próprio campo da sua percepção, da mesma forma, se restringiu. 

                    Resulta deste fato uma espécie de reforço do ponto de vista profano, já que, se este ponto de vista nasceu inicialmente de um defeito de compreensão, logo, de uma limitação das faculdades humanas, esta mesma limitação, ao acentuar-se e ao estender-se a todos os domínios, parece logo em seguida justificá-la, pelo menos aos olhos daqueles que são afectados por ela; - que razão poderiam eles ter ainda, com efeito, em admitir a existência do que não podem realmente conceber nem perceber, isto é, de tudo o que lhes poderia mostrar a insuficiência e a falsidade do ponto de vista profano em si ?

                  Daí provem a idéia daquilo que se designa comummente como a “vida vulgar”, ou a «vida comum»; o que se entende por esta expressão, com efeito, é bem, e antes de mais, alguma coisa onde, por exclusão do carácter sagrado, ritual ou simbólico (quer se tome no sentido especialmente religioso ou segundo qualquer outra modalidade tradicional, pouco importa, já que se trata igualmente de uma acção efectiva das «influências espirituais» em todos os casos), nada que não seja puramente humano intervêm nela de qualquer modo; e mesmo estas designações implicam, além disso, que tudo o que ultrapassa uma tal concepção, mesmo quando não é expressamente negado, está pelo menos relegado a um domínio do «extraordinário», considerado como excepcional e inabitual; há, pois, propriamente falando, uma inversão da ordem normal, tal como é representada pelas civilizações integralmente tradicionais, em que o ponto de vista profano não existe de modo nenhum, e esta inversão só pode conduzir logicamente à ignorância ou à negação completa do «supra-humano». 

                 Fora isso, alguns chegam mesmo a utilizar, com o mesmo sentido, a expressão «vida real», o que, no fundo, é uma singular ironia, porque a verdade é que aquilo que eles chamam desse modo é, pelo contrario, a pior das ilusões; não queremos dizer com isto que o que se inclui nessa expressão seja, em si mesmo, desprovido de qualquer realidade, mesmo que essa realidade, que é afinal a da ordem sensível, esteja no grau mais baixo de todos, e que acima dela não haja mais do que aquilo que está propriamente abaixo de toda a existência manifestada; mas é a maneira como todas as coisas são encaradas que é inteiramente falsa, e que, separando-as de qualquer princípio superior, lhes nega precisamente aquilo que faz toda a sua realidade; é por isso que não existe efectivamente um domínio profano, mas tão somente um ponto de vista profano, que se faz cada vez mais invasor, até englobar finalmente toda a existência humana.

          Vê-se assim facilmente nesta concepção da «vida vulgar», como se passa quase insensivelmente de um estágio a outro, e como a degenerescência se vai acentuando progressivamente: começa-se por admitir que certas coisas sejam subtraídas a qualquer influência tradicional, depois estas mesmas coisas são consideradas como normais; daqui facilmente se chega a considerá-las como as únicas «reais», o que acaba por afastar como «irreal» todo o «supra-humano», e, como o domínio do humano vai sendo concebido de forma cada vez mais limitada, vai-se reduzindo-o a uma única modalidade corporal, e afastando tudo aquilo que é simplesmente de ordem supra-sensível; basta reparar como os nossos contemporâneos empregam constantemente, e mesmo sem pensar, a palavra «real» como sinônimo de «sensível», para nos darmos conta que é neste último ponto que eles se encontram efectivamente, e que esta maneira de ver se incorporou de tal modo na sua própria natureza que se 
tornou para eles quase instintiva. 

                   A filosofia moderna, que afinal não é, em princípio, mais do que uma expressão «sistematizada» da mentalidade geral, antes de reagir por seu lado numa certa medida, seguiu uma marcha paralela a esta: começou com o elogio cartesiano do «bom senso», de que já falamos atrás, e que é bem característico a este propósito, porque a "vida vulgar" é seguramente, por excelência, o domínio deste «bom senso», também conhecido por «senso comum», tão limitado como ela e feito do mesmo modo. A seguir do «racionalismo», que, no fundo, não é mais do que um aspecto especificamente filosófico do «humanismo», isto é, da redução de todas as coisas a um ponto de vista exclusivamente humano, chega-se pouco a pouco ao materialismo ou ao positivismo: quer negue expressamente, como faz o primeiro, tudo o que está para além do mundo sensível, quer se contente, como o segundo (que por isso mesmo gosta de se chamar «agnosticismo», gritando um título de glória que não é mais do que a confissão de uma incurável ignorância, em recusar ocupar-se dele declarando-o «inacessível» ou «inconhecível», o resultado é, de facto, exactamente o mesmo nos dois casos, e é bem aquele que acabamos de descrever.



                      Voltaremos a dizer que, para a maior parte das pessoas, se trata naturalmente daquilo a que podemos chamar um materialismo ou um positivismo «prático» independente de qualquer teoria filosófica, que é e será sempre coisa bastante estranha para a maioria; mas isso é mais grave ainda, não só porque um tal estado de espírito adquire por isso mesmo uma difusão incomparavelmente maior, mas também porque é tanto mais irremediável, quanto mais irreflectido e menos claramente consciente, porque isso prova que penetrou verdadeiramente e impregnou toda a natureza do indivíduo. 

                          O que já dissemos do materialismo de facto e da maneira como se acomodam a ele as pessoas que se crêem «religiosas» mostra-o bem; e, ao mesmo tempo, vê-se por este exemplo que, no fundo, a filosofia propriamente dita não tem toda a importância que alguns lhe querem atribuir, ou que, pelo menos, só tem enquanto pode ser considerada como «representativa» de uma certa mentalidade, mais do que agindo efectiva e directamente sobre esta; de resto, poderia uma concepção filosófica qualquer ter o mais pequeno sucesso se não respondesse a algumas das tendências predominantes da época em que é formulada? Não queremos dizer com isto que os filósofos não têm, tal como os outros, o seu papel no desvio moderno, o que seria exagerado, só que esse papel é mais restrito do que se poderia supor à primeira vista, e bastante diferente do que pode parecer exteriormente; aliás, de um modo muito geral, o que é aparente é sempre, segundo as próprias leis que regem a manifestação, mais uma conseqüência do que uma causa, um ponto de chegada mais do que um ponto de partida , e em todo o caso, não é nunca aí que é preciso ir buscar aquilo que age de maneira verdadeiramente eficaz numa ordem mais profunda, quer se trate nela de uma acção que se exerce num sentido normal e legítimo, quer o contrário, como no caso que referimos presentemente.

                 O próprio mecanicismo e o materialismo só puderam adquirir uma influência generalizada ao passar do domínio filosófico ao científico; o que diz respeito a este último, ou aquilo que se apresenta com ou sem razão como revestido deste carácter «científico», tem seguramente, por razões diversas, muito mais acção do que as teorias filosóficas sobre a mentalidade vulgar, na qual há sempre uma crença pelo menos implícita na verdade de uma «ciência», cujo carácter hipotético lhe escapa inevitavelmente, enquanto que tudo o que se qualifica de «filosofia» deixa essa mentalidade vulgar mais ou menos indiferente; a existência de aplicações práticas e utilitárias num caso, e a sua ausência, no outro, não é totalmente alheia a isso. Este facto leva-nos mais uma vez à idéia da «vida vulgar», na qual entra efectivamente uma boa dose de «pragmatismo»; e o que dizemos é ainda, claro, totalmente independente do facto de alguns dos nossos contemporâneos quererem erigir o «pragmatismo» a sistema filosófico, o que só foi possível devido exactamente ao cariz utilitário que é inerente à mentalidade moderna e profana em geral, e também porque, no estado actual de decadência intelectual, se chegou a perder completamente de vista a própria noção de verdade, de tal modo que a de utilidade ou de comodidade acabou por substitui-la totalmente. 

                   Seja como for, logo que se convencionou que a «realidade» consiste exclusivamente naquilo que cai no domínio dos sentidos, é natural que o valor que se atribua a uma coisa qualquer tenha, como medida, de certo modo, a sua capacidade de produzir efeitos de ordem sensível; ora, é evidente que a «ciência» considerada à maneira moderna, como essencialmente solidária da indústria, se não mesmo confundida mais ou menos completamente com esta, deve ocupar o primeiro lugar, e por isso mesmo encontra-se o mais possível misturada a essa «vida vulgar», da qual se torna mesmo um dos principais factores; em contrapartida, as hipóteses sobre as quais ela pretende fundar-se, por mais gratuitas e mais injustificadas que possam ser, beneficiarão também dessa situação privilegiada aos olhos do vulgo.

                    É claro que, na realidade, as aplicações práticas não dependem em nada da verdade destas hipóteses, e podemos, aliás, perguntar-nos o que seria uma tal ciência, tão nula enquanto conhecimento propriamente dito, separada das aplicações a que dá lugar; mas, tal como está, é um facto que esta ciência tem «sucesso» e, para o espírito instintivamente utilitário do «público» moderno, esse «sucesso» torna-se uma espécie de «critério de verdade», se é que se pode falar aqui de verdade seja em que aspecto for.

                   Quer se trate de qualquer ponto de vista, filosófico, científico, ou simplesmente «prático», é evidente que tudo isto, no fundo, representa outros tantos aspectos diversos de uma só e mesma tendência, e também que essa tendência, como todas as que igualmente são constitutivas do espírito moderno, não pode certamente desenvolver-se espontaneamente; já tivemos bastantes vezes oportunidade de nos explicar sobre este último ponto, mas isto são coisas sobre as quais não é demais insistir; e teremos ainda que voltar a este assunto, quando falarmos do lugar que ocupa o materialismo no conjunto do «plano» segundo o qual se efectua o desvio  moderno. 

                 Claro que os próprios materialistas são, mais do que ninguém, incapazes de se darem conta destas coisas e até de conceberem a possibilidade da sua existência, de tal modo estão cegos pelas suas idéias pré-concebidas, que lhes fecham todas as saídas fora do domínio estreito em que estão habituados a mover-se; e sem dúvida que ficariam espantados se soubessem que existiram e que existem homens para quem aquilo que eles chamam «vida vulgar» é a coisa mais extraordinária que se possa imaginar, já que ela não corresponde a nada daquilo que se produz realmente na sua existência.  
   
             É, no entanto, assim, e o que é mais, são estes homens que devem ser olhados como verdadeiramente «normais», enquanto que os materialistas com todo o seu «bom senso» tão gabado e todo o «progresso» do qual se consideram orgulhosamente os produtos mais acabados e os representantes mais «avançados», não são, no fundo, mais do que seres nos quais certas faculdades estão atrofiadas, ao ponto de terem sido completamente abolidas. 

                  É, aliás, só sob esta condição que o mundo sensível pode aparecer-lhes como um sistema «fechado», no interior do qual se sentem em perfeita segurança; resta-nos ver como esta ilusão pode, em certo sentido e em certa medida, ser «realizada», pelo próprio materialismo; mas veremos também mais adiante, como, apesar disso, não representa mais do que um estado de equilíbrio eminentemente instável, e, de que maneira, no ponto em que as coisas estão actualmente, esta segurança da "vida vulgar», na qual se baseou até agora toda a organização exterior do mundo moderno, se arrisca fortemente a ser perturbada por «interferências» inesperadas.

René Guénon 
Cap XV de "O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos"
Ed. Irget, S. Paulo, 2009