domingo, 20 de abril de 2014

Um Adeus à Filosofia (Por Emil Cioran)

Afastei-me da filosofia quando se tornou impossível encontrar em Kant qualquer fraqueza humana, qualquer traço autêntico de melancolia; em Kant e em todos os filósofos. Comparado com a música, o misticismo e poesia, a atividade filosófica procede de um impulso reduzido e uma profundidade suspeita, prestigiado apenas pelos tímidos e os medíocres. Além disso, a filosofia - ansiedade impessoal, refúgio entre ideias anêmicas - é o recurso de todos os que se iludem com a exuberância corruptora da vida. Quase todos os filósofos chegaram a um bom final: eis o argumento supremo contra a filosofia. Mesmo a morte de Sócrates nada tem de trágica: é um mal-entendido, o fim de um pedagogo - e se Nietzsche naufragou, foi como um poeta e visionário: ele expiou seus êxtases e não seus argumentos.

Não podemos enganar a existência com explicações, só podemos suportá-la, amá-la ou odiá-la, adorar ou temer, nessa alternância de felicidade e horror que expressa o próprio ritmo do ser, suas oscilações, suas dissonâncias, brilhantes ou amargas.

Expostos pela surpresa ou necessidade de uma derrota irrefutável, quem em seguida, não levanta as mãos em oração, apenas para que os deixe cair em um vazio ainda maior pelas respostas da filosofia? Parece que a sua missão é proteger-nos contanto que a negligência do destino nos permita continuar no limiar do caos, e nos abandonar assim que somos obrigados a mergulhar no precipício. E como poderia ser de outra forma, quando vemos o quão pouco do sofrimento da humanidade passou para filosofia? O exercício filosófico não é fecundo; é apenas honroso. Somos sempre filósofos com impunidade: um métier sem destino que derrama pensamentos volumosos em nossas horas neutras e vagas, as horas refratárias ao Antigo Testamento, a Bach, e até Shakespeare. E ter estes pensamentos materializados em uma única página que é equivalente a uma das exclamações de Jó, dos terrores de Macbeth, ou a altitude de uma das cantatas de Bach? Nós não discutimos o universo; nós expressamos. E a filosofia não expressa. Os verdadeiros problemas começam só depois de distanciados ou esgotados, depois do último capítulo de um enorme volume que aponta o período final como uma renúncia diante do Desconhecido, em que todos os nossos momentos estão enraizados e com o qual devemos lutar, porque é naturalmente mais imediato, mais importante do que o nosso pão de cada dia. Aqui o filósofo nos deixa: inimigo do desastre, ele é são como a própria razão, e como prudente. E continuamos na companhia de uma vítima de uma velha praga, de um poeta que aprendeu em cada loucura, e de um músico cuja sublimidade transcende a esfera do coração. Começamos autenticamente apenas onde a filosofia termina, no seu naufrágio, quando compreendemos sua terrível nulidade, quando compreendemos que era inútil recorrer a ela, que é nenhuma ajuda

(Os grandes sistemas são, na verdade, não mais que tautologias brilhantes. Qual vantagem de saber que a natureza do ser consiste na "vontade de viver", na "ideia", no capricho de Deus ou na Química? O detestável abraço verbal, e nossas experiências mais íntimas, nos revela nada além do momento privilegiado e inexprimível. Além disso, o próprio Ser é apenas uma pretensão do Nada.

Nós definimos somente por desespero. Temos de ter uma fórmula, é preciso ainda ter muitas, apenas para dar justificação para a mente e servir como uma fachada do vazio.

Nenhum conceito ou êxtase são funcionais. Quando a música nos mergulha na "interioridade" do ser, nós rapidamente regressamos à superfície: os efeitos da ilusão se dispersam e nosso conhecimento admite sua nulidade.

As coisas que tocamos e aquelas que concebemos são tão improváveis quanto nossos sentidos e nossa razão; temos certeza somente no nosso universo verbal, manejável à vontade e ineficaz. Ser é mudo e a mente é tagarela. Isso é chamado de conhecimento.

A originalidade do filósofo trata apenas de termos inventados. Uma vez que existem somente três ou quatro atitudes que nos permite confrontar o mundo - e sobre as maneiras de morrer - as nuances que multiplicam e diversificam elas derivam não mais do que uma escolha de palavras, desprovidas de qualquer intervalo metafísico.

Estamos imersos em um universo pleonástico, em que as perguntas e respostas equivalem à mesma coisa)

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Características essenciais da Metafísica (Por René Guénon)

Enquanto o ponto de vista religioso necessariamente implica a intervenção de um elemento proveniente da ordem sentimental, o ponto de vista metafísico é exclusivamente intelectual; apesar de nossa parte acharmos que tais sinais são suficientemente claros, para muitas pessoas, esta forma pode parecer descrever o ponto vista metafísico de forma inadequada, por ser estranho aos ocidentais, de modo que algumas explicações adicionais não serão desnecessárias. Ciência e filosofia, tais como são encontradas no mundo ocidental possuem, também, de fato, pretensões para a intelectualidade; se não reconhecermos que essas afirmações são bem fundamentadas e mantemos que um abismo separa todas as especulações deste tipo da metafísica, é porque a intelectualidade pura, tal como a entendemos, é algo muito diferente das ideias bastante vagas que passam normalmente sob esse nome.

Importa explicitar em primeiro lugar que, ao adotar o termo "metafísica", não estamos muito preocupados com a origem histórica da palavra, que está aberta a algumas dúvidas, e que ainda tem de ser considerada puramente acidental se admitir a opinião, definitivamente improvável, na nossa opinião, segundo a qual a palavra foi usada pela primeira vez para designar aquele que vai "além da física" nas obras completas de Aristóteles. Do mesmo modo, não precisamos nos preocupar com várias outras interpretações bastante rebuscadas que certos autores ajustam para associar essa palavra em momentos diferentes; estas não são razões, no entanto, para desistir de seu uso, pois, tal como ela é, é muito bem adequada para o que deveria normalmente expressar, pelo menos em relação a qualquer outro termo emprestado das línguas ocidentais. Na verdade, tomado em seu sentido mais natural, mesmo etimologicamente, denota o que quer que resida "além da física"; a palavra "física", aqui, deve ser tomada para indicar as ciências naturais vistas como um todo e consideradas de uma forma muito geral, como sempre foram vistas pelos antigos; não se deve ser tomada para se referir a uma dessas ciências em particular de acordo com o significado restrito em voga nos dias de hoje. É, portanto, com base em tal interpretação que fazemos uso do termo "metafísica", e devemos deixar claro de uma vez por todas que, se persistimos em sua utilização, é apenas pelas razões já dadas e porque consideramos que é sempre indesejável recorrer a neologismos, exceto em casos de extrema necessidade.


Agora podemos afirmar que a metafísica, entendida desta forma, é essencialmente o conhecimento do Universal, ou, se preferir, o conhecimento dos princípios pertencentes à ordem universal, que, aliás, sozinha pode validamente reivindicar em nome dos  princípios; mas ao fazer tal afirmação, não estamos realmente tentando propor uma definição da metafísica, pois tal coisa é uma pura impossibilidade em razão de sua própria universalidade que observamos como principal dentre suas características, a partir da qual todos as outras são derivadas. Na realidade, apenas algo que é limitado é capaz de definição, ao passo que a metafísica é, pelo contrário, por sua própria natureza, absolutamente ilimitada, e simplesmente por este motivo não nos permite encaixá-la dentro de uma fórmula mais ou menos estreita; e, uma definição neste caso, seria ainda mais imprecisa, ainda que fosse a mais exata que se pudesse fazer.

É importante notar que temos falado do conhecimento e não da ciência; nosso propósito ao fazer isso é enfatizar a distinção radical que deve ser feita entre a metafísica, por um lado, e as várias ciências, no sentido próprio da palavra, do outro, ou seja, todas as ciências particulares e especializadas, que são direcionados para o estudo deste ou daquele determinado aspecto de coisas individuais. Fundamentalmente, esta distinção não é outra senão aquela, entre as ordens universais e individuais, uma distinção que não tem como ser jamais encarada como uma oposição, uma vez que não pode haver nenhuma medida comum nem qualquer relação possível de simetria ou coordenação entre os dois termos. De fato, nenhuma oposição ou conflito de qualquer tipo entre a metafísica e as ciências é concebível, precisamente por seus respectivos domínios serem amplamente separados; e exatamente a mesma coisa se aplica ao relacionamento entre a metafísica e a religião. Deve, contudo, ser entendido que a divisão em questão não concerne tanto com as coisas da mesma forma como os pontos de vista a partir do qual são considerados. É fácil de ver que o mesmo objeto pode ser estudado por diferentes ciências sob diferentes aspectos; da mesma forma, tudo o que possa ser examinado a partir de um ponto de vista individual e particular pode, por uma transposição adequada, igualmente ser considerado do ponto de vista universal (que não deve ser considerado como um ponto de vista especial), e o mesmo se aplica no caso de coisas incapazes de serem consideradas a partir de um ponto de vista individual qualquer. Desta forma, pode-se dizer que o domínio da metafísica engloba todas as coisas, o que é uma condição indispensável de seu ser verdadeiramente universal, da forma que necessariamente deve ser; os respectivos domínios das diferentes ciências permanecem, no entanto, distinto do domínio da metafísica, pois este último, não ocupa o mesmo plano que as ciências especializadas, e é de modo algum análogo a elas, de modo que não pode haver qualquer motivo para fazer uma comparação entre os resultados obtidos por esse e aquele.

Por outro lado, o reino metafísico certamente não consiste daquelas coisas das quais as várias ciências falharam em tomar conhecimento simplesmente porque o seu estado atual de desenvolvimento está mais ou menos incompleto, como é suposto por alguns filósofos que dificilmente podem ter percebido o que está em questão aqui; o domínio da metafísica consiste em aquilo que, por sua própria natureza, encontra-se fora da gama dessas ciências e excede em muito no escopo de tudo o que podem legitimamente reivindicar a conter. O domínio de toda ciência é sempre dependente da experimentação em uma ou outra das suas várias modalidades, enquanto que o domínio da metafísica é essencialmente constituído por aquilo que não pode ser investigado externamente: ser "além da física" também somos, pelo mesmo motivo, para além do experimento. Consequentemente, o campo de todas as ciências independentes pode, se for capaz disso, ser prorrogado indefinidamente, sem nunca encontrar o mínimo ponto de contato com a esfera metafísica.


A partir das observações anteriores segue-se que quando se é feito a referência ao objeto da metafísica não deve ser considerado como algo mais ou menos comparável com o objeto específico desta ou daquela ciência. Segue-se também que o objeto em questão deve ser sempre absolutamente o mesmo e de maneira alguma poderá ser algo que mude ou que esteja sujeito às influências de tempo e lugar; o contingente, o acidental e a variável pertence essencialmente ao domínio individual; que são características que necessariamente condicionam coisas individuais como tal, ou, para sendo ainda mais preciso, as condições do aspecto individual das coisas em suas modalidades múltiplas. Onde a metafísica está em questão, tudo aquilo que esteja susceptível a alterar-se com o tempo e o lugar, por um lado, é uma forma de expressão, isto é, as formas mais ou menos externas que a metafísica pode assumir e que pode ser indefinidamente variadas, e por outro lado, mostra o grau de conhecimento ou ignorância na forma em que é encontrada entre os homens; mas a metafísica em si permanece fundamentalmente inalterável, sempre a mesma, pois seu objeto é um em sua essência, ou para ser mais exato, "sem dualidade", como os hindus colocam, e esse objeto, novamente pelo simples fato de se encontrar "além da natureza", também está além de toda mudança: os árabes expressam isto dizendo que "a doutrina da Unicidade é uma”.

Seguindo a mesma linha de argumentação, podemos acrescentar que é absolutamente impossível fazer qualquer "descoberta" na metafísica, pois um tipo de conhecimento que não exige uso de meio especializado ou externo de investigação, tudo que for possível de ser conhecido pode ter sido conhecido por determinadas pessoas em todo e qualquer período; e isso, de fato, emerge claramente a partir de um estudo profundo das doutrinas metafísicas tradicionais. Além disso, mesmo admitindo que as noções de evolução e progresso pode ter um certo valor relativo em biologia e sociologia - embora isso longe de ter sido provado - é contudo certo que eles não podem encontrar um lugar na metafísica; além disso, essas ideias são completamente estranhas para os orientais, assim como estranhas até mesmo para os ocidentais até quase o final do século XVIII, embora as pessoas no Ocidente já as tomam como certas de que elas são fundamentais para pensamento humano. Isto implica também, deve se notar, uma condenação formal de qualquer tentativa em aplicar o "método histórico" para a ordem metafísica; na verdade, o ponto de vista metafísico é, em si, radicalmente oposto ao ponto de vista histórico, ou aquilo que se passa por tal, e essa oposição aumenta não só em questão de método, mas também, o que é muito mais importante, a uma verdadeira questão de princípio, uma vez que o ponto de vista metafísico, em sua imutabilidade essencial, é a própria negação das noções de evolução e progresso. Pode-se dizer, de fato, que a metafísica só pode ser estudada metafisicamente. Não serão encontradas contingências, tais como influências individuais, que são rigorosamente inexistentes deste ponto de vista e que possa afetar a doutrina de qualquer forma; o último, sendo da ordem universal, é, assim, essencialmente supra-individual, e necessariamente permanece intocado por tais influências. Mesmo circunstâncias de tempo e espaço, temos de repetir, só pode afetar a expressão externa, mas não a essência da doutrina; além disso, não pode haver nenhuma questão aqui, como aquelas encontradas nas ordens relativas e contingentes de "crenças" ou "opiniões" que são mais ou menos variáveis e estão mudando precisamente porque são mais ou menos abertas para dúvidas; o conhecimento metafísico implica essencialmente na certeza permanente e imutável.

De fato, por não se encontrar compartilhada na relatividade das ciências, a metafísica é obrigada a implicar a certeza absoluta como uma de suas características intrínsecas, não só em virtude de seu objeto, que é a própria certeza, mas também em razão de seu método, se esta palavra ainda pode ser usada no presente contexto, pois caso contrário este "método", ou o que mais possa ser assim chamado, não seria adequado ao seu objeto. Metafísica, portanto, necessariamente exclui qualquer concepção de caráter hipotético, onde se segue que as verdades metafísicas, em si, não podem de forma alguma ser contestáveis. Consequentemente, se houver, algumas vezes, ocasiões para discussão e controvérsia, isso só dá como resultado de um defeito na exposição ou por uma compreensão imperfeita dessas verdades. Além disso, cada possível exposição, neste caso, é necessariamente defeituosa, pois concepções metafísicas, em razão da sua universalidade, nunca podem ser inteiramente expressas, nem sequer imaginadas, já que sua essência é atingível pela inteligência pura e "sem forma"; superam em muito todas as formas possíveis, especialmente as fórmulas em que a linguagem tenta colocá-la, que são sempre inadequadas e tendem a restringir seu alcance e, portanto, a distorcê-la. Estas fórmulas, como todos os símbolos, só podem servir de ponto de partida, um "apoio" por assim dizer, que atua como uma ajuda para a compreensão daquilo o que em si permanece inexprimível; compete a cada homem tentar concebê-la de acordo com a extensão de seus poderes intelectuais, fazendo-o bem, em proporção de seu sucesso, entre as deficiências inevitáveis ​​de expressão formais e limitadas; é também evidente que essas imperfeições atingirão seu máximo quando a expressão tiver que ser transmitida por meio de certas línguas, como as línguas europeias e especialmente as modernas, que parecem particularmente pouco adequadas para a exposição das verdades metafísicas. . . . Metafísica, por abrir um panorama ilimitado de possibilidades, deve-se tomar cuidado para nunca perder de vista o inexprimível, que constitui de fato sua própria essência.

Conhecimento pertencente à ordem universal, necessariamente encontra-se para além de todas as distinções que condicionam o conhecimento das coisas individuais, das quais aquela entre sujeito e objeto é um tipo geral e básica; isso também serve para mostrar que o objeto da metafísica é de modo algum comparável com o objeto específico de qualquer outro tipo de conhecimento que seja, e, na verdade ele só pode ser referido como um objeto meramente por analogia, pois, a fim de falar dele em todo, somos forçados a anexar a ele alguma denominação ou outra. Da mesma forma, quando se fala dos meios de alcançar o conhecimento metafísico, é evidente que tais meios só podem ser um e a mesma coisa que o próprio conhecimento, em que o sujeito e objeto estão essencialmente unificados; isso equivale a dizer que os meios em questão, se de fato, nos é permitido descrevê-los com essa palavra, não podem de forma alguma se parecer com o exercício da faculdade discursiva, como a razão humana individual. Como já dissemos antes, estamos lidando com o supra-individual e, consequentemente, com a ordem supra-racional, o que não significa de modo algum o irracional: a metafísica não pode contradizer a razão, mas está acima da razão, que não tem qualquer influência aqui, exceto como um meio secundário para a formulação e expressão externas de verdades que estão para além sua província e fora de seu escopo. Verdades metafísicas só são concebíveis pelo uso de uma faculdade que não pertence à ordem individual, e que, em razão do caráter imediato de seu funcionamento, pode ser chamada de "intuitiva", mas somente sob a estrita condição de que ela não tenha nada em comum com a faculdade que certos filósofos contemporâneos chamam de intuição, uma faculdade puramente instintiva e vital que está muito abaixo da razão e não acima dela. Para ser mais preciso, deve-se dizer que a faculdade que estamos referindo é intuição intelectual, uma realidade que tem sido constantemente negada pela filosofia moderna, que não conseguiu captar a sua verdadeira natureza, quando não preferem simplesmente ignorá-la; esta faculdade também pode ser chamado de intelecto puro, seguindo a prática de Aristóteles e seus sucessores escolásticos, pois para eles o intelecto, de fato, era a faculdade que possuía um conhecimento direto dos princípios. Aristóteles declara expressamente que "o intelecto é mais verdadeiro do que a ciência", o que equivale a dizer que é mais verdadeiro do que a razão que constrói a ciência; ele também diz que "nada é mais verdadeiro do que o intelecto", pois é necessariamente infalível, pelo fato de que sua operação é imediata e porque, não sendo realmente distinta da seu objeto, ela é identificada com a própria verdade.

Tal é a base essencial da certeza metafísica; poderá, assim, ser visto que o erro só se mostra com a utilização da razão, isto é, com a formulação das verdades que o intelecto concebeu, e isso decorre do fato de que a razão é, obviamente falível em consequência de seu caráter discursivo e mediador. Além disso, uma vez que toda expressão está fadada a ser imperfeita e limitada, o erro é inevitável em sua forma, se não em seu conteúdo: mesmo que se tente criar uma expressão exata, o que é deixado de fora é sempre muito maior do que está incluído; mas esse erro inevitável na expressão, nada contém de positivo enquanto tal, e simplesmente equivale a uma verdade menor, uma vez que reside apenas na formulação parcial e incompleta da verdade integral.

Torna-se agora possível compreender o profundo significado da distinção entre o conhecimento metafísico e o científico: o primeiro é derivado do intelecto puro, que tem o Universal por seu domínio; o segundo é derivada da razão, que tem o geral como seu domínio, pois, como Aristóteles declarou, "não há ciência, mas o geral." Não se deve, de forma alguma, confundir o Universal com o geral, como muitas vezes acontece entre os logicistas ocidentais, que aliás nunca vão além do geral, mesmo quando eles erroneamente aplicam lhe o nome universal. O ponto de vista das ciências, como temos mostrado, pertence à ordem individual; o geral não se opõe ao individual, mas somente ao particular, já que nada mais é do que o individual estendido; Além disso, o individual pode receber uma extensão indefinida sem assim alterar a sua natureza e sem fugir de suas condições restritivas e limitantes; é por isso que dizemos que a ciência poderia ser estendida indefinidamente sem nunca tocar a metafísica, da qual permanecerá sempre completamente separada, porque a metafísica por si só engloba o conhecimento Universal.


. . . Tudo o que acabamos de dizer pode ser aplicado, sem reservas, a cada uma das doutrinas tradicionais do Oriente, apesar das grandes diferenças de forma que possam esconder sua identidade fundamental dos olhos de um observador casual: esta concepção da metafísica é igualmente verdade no taoísmo, na doutrina hindu, e também no aspecto interior e extra-religioso do Islam. Há algo do tipo a ser encontrado no mundo ocidental? Se fosse apenas para considerar o que realmente existe no momento presente, certamente não seria possível outra resposta diferente de uma negativa, pois o que o pensamento filosófico moderno, por vezes, se contenta em afirmar que a metafísica não tem relação alguma com o concepção que acabamos de mostrar. . . No entanto, o que dissemos sobre Aristóteles e da doutrina escolástica, ao menos mostra que a metafísica realmente existiu no Ocidente, até certo ponto, e de forma incompleta; e apesar desta reserva necessária, pode-se dizer que ali estava algo que não possui equivalente algum na mentalidade moderna e que parece estar totalmente para além do sua compreensão. Por outro lado, se a reserva acima é inevitável, é porque, como dissemos anteriormente, existem algumas limitações que parecem ser inatas em toda a intelectualidade ocidental, pelo menos desde o tempo da antiguidade clássica em diante; já observamos, a este respeito, que os gregos não tinham noção do Infinito. Além disso, porque é que os ocidentais modernos, quando imaginam que estão a conceber o Infinito, representam sempre como um espaço, que só pode ser indefinido, e por que eles persistem confundindo a eternidade, que permanece essencialmente no "intemporal", se assim se pode expressar, na perpetuidade, que é apenas um prolongamento indefinido de tempo, enquanto que tais equívocos não ocorrem entre os orientais? O fato é que a mente ocidental, sendo quase exclusivamente inclinada ao estudo das coisas dos sentidos, é constantemente levada a confundir a concepção com a imaginação, na medida em que aquilo que não for capaz de representação sensível parece ser impensável por essa mesma razão; mesmo entre os gregos as faculdades imaginativas foram preponderantes. Isto é, obviamente, o oposto do pensamento puro; nestas condições não pode haver nenhuma intelectualidade no sentido real da palavra e, consequentemente, nenhuma metafísica. Se fossemos adicionar aqui outra confusão comum, a saber, aquela do racional com o intelectual, torna-se evidente que a suposta intelectualidade ocidental, especialmente entre os modernos, na realidade, equivale nada mais do que o exercício das faculdades exclusivamente individuais e formais da razão e imaginação; assim, pode-se então entender que um abismo separa da intelectualidade Oriental, que considera nenhum conhecimento como real ou valioso se esses não possuírem suas mais profundas raízes no Universal e no sem forma.


René Guénon em Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Autoridade espiritual e poder temporal: Conhecimento e Ação (Por René Guenon)


Temos dito que as relações entre o poder espiritual e temporal devem ser determinadas por aqueles de seus respectivos domínios. A questão, portanto, nos traz de volta ao seu princípio, e nos parece muito simples, pois é, no fundo, nada mais do que a relação entre conhecimento e ação. Pode-se objetar, a partir do que acabamos de mostrar, que aqueles que possuem o poder temporal deve, normalmente, possuir um certo conhecimento também; no entanto, deixando de lado por um momento o fato de que eles não possuem conhecimento em si mesmos - uma vez que eles derivam da autoridade espiritual - este conhecimento está, em todo caso, relacionado com as aplicações da doutrina e não aos próprios princípios e, portanto, se trata apenas de um conhecimento por participação. O conhecimento, por excelência - o único que realmente merece este nome em seu sentido mais amplo - é o conhecimento dos princípios, independentemente de todas as aplicações contingentes; e este pertence exclusivamente a aqueles que possuem autoridade espiritual pois não há nada nele decorrente da ordem temporal, mesmo levando isso ao seu sentido mais amplo. Aplicações deste conhecimento, por outro lado, referem-se à ordem temporal, pois este conhecimento não é mais previsto somente em si e por si, mas na medida em que dá à ação o seu direito; e é neste ato que se faz necessário aqueles cuja função é essencialmente adequada ao domínio da ação.

É evidente que em todas as suas diversas formas - militar, judicial e administrativa - o poder temporal está inteiramente envolvido na ação; em virtude de dessas mesmas atribuições, ele está confinado, portanto, dentro dos limites da ação, dentro daquilo que se equivale  ao mundo que se pode ser chamado "humano", incluindo neste termo possibilidades muito mais extensas do que as normalmente imaginadas. A autoridade espiritual, ao contrário, se baseia inteiramente no conhecimento, já que, como vimos, a sua função essencial é a conservação e o ensino da doutrina, e, assim, seu domínio é tão ilimitado quanto a própria verdade. O que é reservado para esta autoridade - devido à própria natureza das coisas - não se pode comunicar com os homens cujas funções são de outra ordem, porque as suas possibilidades não o incluem - é o conhecimento transcendente e "supremo", o que está além do domínio "humano" e ainda, de modo mais geral, para além do mundo manifestado - isto é, o conhecimento que não é mais "físico", mas "metafísico" no sentido etimológico da palavra. Deve ficar claro que não há aqui qualquer desejo por parte da casta sacerdotal em manter o conhecimento de certas verdades para si, mas de uma necessidade que resulta diretamente das diferenças de natureza existente entre os seres, as diferenças que, como já dissemos, constituem a razão de ser e o fundamento das distinções de casta. Aqueles que são feitos para a ação, não são feitos para o conhecimento puro, e em uma sociedade constituída em bases verdadeiramente espirituais, cada pessoa deve cumprir a função para a qual ele é realmente 'qualificado'; caso contrário, tudo se mostra confuso e desordenado e nenhuma função é realizada como deveria ser - que é precisamente o caso de hoje.

Estamos bem cientes que por causa desta confusão, as considerações estamos fazendo constar aqui, podem aparecer como algo apenas estranho para o Ocidente moderno, onde o que é chamado de "espiritual" geralmente tem apenas uma conexão remota com o estrito ponto de vista doutrinal e com conhecimento livre de toda contingência. Aqui pode-se fazer uma observação bastante curiosa: hoje as pessoas já não se contentam simplesmente em distinguir entre o espiritual e o temporal, que é legítimo e até necessário, mas também querem separá-los radicalmente; no entanto, acontece que as duas ordens nunca estiveram tão misturadas como estão no presente, e que, acima de tudo, as preocupações temporais nunca estiveram tão afetadas por aquilo que deveria ser absolutamente independente. Isto é, sem dúvida, inevitável, em virtude das próprias condições de nossa época, descrito em outro lugar. De forma a evitar todas as interpretações falsas, devemos, portanto, afirmar claramente que o que dizemos aqui diz respeito apenas aquilo que temos chamado de autoridade espiritual em seu estado puro, o qual devemos ser cautelosos ao procurar por exemplos. Se preferível, pode ser pensada como um tipo teórico - um "ideal", por assim dizer - embora na verdade este modo de considerar as coisas não é inteiramente nosso. Nós reconhecemos que nas aplicações históricas, é sempre necessário ter em conta as contingências, pelo menos até certo ponto; mas, mesmo ao fazer isso, temos de tomar a civilização do Ocidente pelo que é: um desvio e uma anomalia que se explica pelo fato de que ela corresponde à última fase do Kali Yuga.

Mas voltemos ao relacionamento entre o conhecimento e ação. Já tivemos ocasião de tratar esta questão, até certo ponto, e, consequentemente, não devemos repetir tudo o que foi dito na época. É indispensável no entanto, pelo menos, recordar os pontos mais essenciais. Consideramos a antítese do Oriente e do Ocidente, no presente estado de coisas chegando a isso: o Oriente mantém a superioridade do conhecimento sobre a ação, enquanto o Ocidente moderno afirma, pelo contrário, a superioridade da ação sobre o conhecimento (quando não se chega ao ponto de negar o conhecimento completamente). Estamos nos referindo apenas para o Ocidente moderno, uma vez que as coisas eram bem diferente na Antiguidade e na Idade Média. Todas as doutrinas tradicionais, seja oriental ou ocidental, são unânimes em afirmar a superioridade e até mesmo a transcendência do conhecimento em relação à ação, em referência ao que de uma forma desempenha o papel do "motor imóvel" de Aristóteles, o que, naturalmente, não significa que a ação não tem lugar legítimo e importância dentro de sua própria ordem. Mas essa ordem é apenas a de contingências humanas. Mudança seria impossível sem um princípio do qual a procede e que, pelo simples fato de ser o princípio da mudança, não é possível que esteja sujeito a alterações, sendo, assim, necessariamente 'imóvel' e no centro da "roda das coisas".

Da mesma forma, a ação, que pertence ao mundo de mudança, não pode ter seu princípio em si mesmo, uma vez que deriva sua realidade a partir de um princípio que está além de seu domínio e que só pode ser encontrado no conhecimento. De fato, o conhecimento por si só capacita alguém deixar para trás o mundo da mudança e suas limitações inerentes; e quando ele atinge o imutável, como é o caso do conhecimento em princípio ou metafísico - que é o conhecimento por excelência - em si possui imutabilidade, pois todo o conhecimento verdadeiro é essencialmente a identificação com seu objeto. Pelo próprio fato da posse desse conhecimento, a autoridade espiritual também possui a imutabilidade. O poder temporal, ao contrário, está sujeito a todas as vicissitudes do contingente e do transitório, a menos que um princípio superior comunique a ele, em uma medida compatível com a sua natureza e caráter, pois a estabilidade ele não pode ter por conta própria. Este princípio só pode ser o representado por autoridade espiritual. A fim de sobreviver, então, o poder temporal precisa de uma consagração que vem da autoridade espiritual; esta consagração que lhe confere legitimidade, isto é, a conformidade com a própria ordem das coisas. Tal era a razão de ser da "iniciação real ", como explicamos no capítulo anterior; e é nisso que o "direito divino" dos reis consiste corretamente, é o que a tradição extremo-oriental chama de "mandato do Céu": o exercício do poder temporal em virtude de uma delegação da autoridade espiritual, para qual esse poder 'eminentemente' pertence, como explicamos anteriormente. Toda ação que não procede do conhecimento carece em princípio e, portanto, nada mais é que uma agitação vão; da mesma forma, todo o poder temporal que não reconhece sua subordinação vis-à-vis a autoridade espiritual é vão e ilusório: separado de seu princípio, pode somente exercer-se de forma desordenada e mover-se inexoravelmente para sua própria ruína.

Como falamos em "mandato do Céu", não estaremos fugindo do escopo em relatar aqui como, de acordo com o próprio Confúcio, este mandato deve ser realizado: "A fim de fazer com que as virtudes naturais brilhem nos corações de todos os homens, os príncipes antigos, antes de tudo se dedicavam a governar bem o seu próprio principado. Para governar bem o seu principado, eles primeiramente restauravam a ordem adequada de suas famílias. A fim de estabelecer a ordem adequada em suas famílias, eles trabalhavam duro para aperfeiçoar-se em primeiro lugar. A fim de aperfeiçoar-se, eles regulavam primeiramente os movimentos de seus corações. Para regular os movimentos de seus corações, primeiro aperfeiçoaram a sua vontade. Para aperfeiçoar a sua vontade, eles desenvolveram os seus conhecimentos ao mais alto grau. Se desenvolve conhecimento examinando a natureza das coisas. Uma vez que a natureza das coisas é examinada, o conhecimento atinge seu mais alto grau. O conhecimento tendo chegado ao seu mais alto grau, a vontade torna-se perfeita. Tendo sido controlado os movimentos do coração, cada um é livre de falhas. Depois de ter corrigido si mesmo, se estabelece a ordem na família. Com a ordem reinante na família, o principado é bem governado. Com o principado sendo bem governado, o império em breve desfrutará de paz.


É preciso admitir que esta é uma concepção do papel do soberano difere singularmente do que este papel é imaginado no Ocidente moderno, tornando-o mais difícil de pôr em prática, embora também dando-lhe um significado completamente diferente; e pode-se notar, em particular, que o conhecimento é indicado explicitamente como condição primordial para o estabelecimento da ordem, mesmo no domínio temporal. É fácil agora compreender que a inversão das relações entre conhecimento e ação em uma civilização é uma consequência da usurpação da supremacia pelo poder temporal; este poder deve, de fato, afirmar que não há domínio superior ao seu próprio, que é precisamente o da ação. Se as coisas parassem aí, no entanto, nós ainda não teríamos atingido o nosso impasse atual, onde o conhecimento é negado a qualquer valor. Para que isso ocorra, os xátrias por si mesmos tiveram de ser privados de seu poder pela castas mais baixas. [1] De fato, como observamos anteriormente, mesmo quando os xátrias se rebelaram, eles ainda tinham uma tendência a afirmar uma doutrina truncada, falsificada pela ignorância ou pela negação de tudo o que vai além da ordem "física", mas dentro da qual ainda há certo conhecimento real, no entanto inferior. Eles fizeram uma pretensão dessa doutrina incompleta e irregular como se fosse uma tradição genuína, uma atitude - condenável, embora possa ser algo, no que diz respeito a verdade - não totalmente desprovida de uma certa grandeza. [2] Além disso, termos como "nobreza", "heroísmo" e "honra" não designa, em sua acepções originais, qualidades que são essencialmente inerentes à natureza dos xátrias? Por outro lado, quando os elementos que correspondem às funções sociais de uma ordem inferior passaram a dominar, toda a doutrina tradicional, ainda que mutilada ou alterada, desaparece totalmente; não subsiste nem mesmo o menor vestígio de "ciência sagrada", de modo que o reinado do "conhecimento profano" é introduzido, o reinado, que é, da ignorância pretendendo ser ciência, tomando prazer em sua nulidade. Tudo pode ser resumido em poucas palavras: a supremacia dos brâmanes mantêm a ortodoxia doutrinária; a revolta dos xátrias leva a heterodoxia; mas com a dominação das castas inferiores vem a noite intelectual, e isso é o que em nossos dias se tornou o Ocidente, que ameaça alastrar a sua própria escuridão sobre o mundo inteiro.
Alguns, talvez, nos reprovarão por ter falado como se castas existissem em todos os lugares, e por indevidamente estender a todas as organizações sociais uma designação que se encaixam corretamente apenas na Índia; mas como esses últimos apontam essencialmente para funções necessariamente encontradas em todas as sociedades, não acho essa extensão indevida. É verdade que a casta não é apenas uma função; é também, e acima de tudo, aquilo que se encaixa na natureza do indivíduo para exercer esta ou aquela função em vez de qualquer outra, mas essas diferenças de natureza e aptidão existem onde quer que haja homens. A diferença entre uma sociedade onde existem castas no verdadeiro sentido da palavra, e uma sociedade onde não há nenhuma é que, no primeiro caso, há uma correspondência normal, entre a natureza dos indivíduos e as funções que desempenham (sujeito apenas a erros de aplicação que estão em todas os eventos), enquanto que no segundo, essa correspondência não existe, ou pelo menos só existe acidentalmente; o último caso mostra o que acontece quando uma organização social carece de uma base tradicional. [3] Em casos normais, há sempre algo comparável à instituição de castas, com a modificação adequada deste ou aquele povo; mas a organização que encontramos na Índia é aquela que representa o tipo mais completo no que diz respeito à aplicação da doutrina metafísica da ordem humana. Em suma, isso por si só deveria ser suficiente para justificar os termos que adotamos em detrimento de outros que poderíamos ter emprestado de instituições que têm, em sua forma mais especializada, um campo muito mais limitado de aplicação, estes outros termos seriam incapazes de fornecer as mesmas possibilidades para expressar certas verdades de ordem mais geral. Além disso, existe outra razão, apesar de ser mais contingente, de que os termos não são desprezíveis: é muito notável que a organização social do mundo ocidental na Idade Média era baseada justamente na divisão de castas, o clero correspondentes aos brâmanes, a nobreza para os xátrias, o terceiro-estado ao vaixiás, e os servos aos shudras.  Não eram castas no sentido pleno da palavra, mas esta coincidência, que certamente não é por acaso, permita ainda realizar uma transposição muito simples de termos na passagem de um caso para o outro; e esta observação encontrará a sua aplicação nos exemplos históricos que iremos considerar a seguir.

[1] Em particular, a preponderante importância dada na consideração de uma ordem econômica, que é uma característica muito marcante de nossos tempos, pode ser considerada como um sinal de dominação dos vaixás, cujo equivalente aproximado é representado pela burguesia no mundo ocidental. Na verdade, é este último que têm dominado desde a Revolução Francesa. E de fato, são estes últimos que têm dominado desde a Revolução Francesa.

[2] A atitude dos xátrias rebeldes poderia ser muito bem caracterizado pela denominação “luciferianismo “, que não pode ser confundido com "satanismo ", embora haja, sem dúvidas, uma certa ligação entre os dois: “luciferianismo” é a recusa de reconhecer uma autoridade superior enquanto "satanismo" é uma inversão das relações normais e da ordem hierárquica, sendo este último muitas vezes uma consequência do primeiro, assim como depois de sua queda de Lúcifer tornou-se Satanás


[3] É necessário recordar que as "classes" sociais, como são entendidos hoje no Ocidente, nada têm em comum com as verdadeiras castas, sendo, no máximo, apenas uma espécie de imitação, sem validade ou o significado, uma vez que elas não são inteiramente baseadas nas diferenças de possibilidades implícitas na natureza dos indivíduos.

sábado, 5 de abril de 2014

Compreendendo a mente moderna e pós-moderna

O erro filosófico da modernidade está na crença que a cognição humana é limitada à razão discursiva, ou seja, no pensar em símbolos ou em linguagem, seja direcionado para os dados da experiência sensível ou sobre si mesmo, em uma análise de sua própria estrutura lógica. A faculdade da razão não discursiva, ou a apreensão intuitiva pura, era bem conhecido pelos Padres da Igreja - e antes deles pelos Platonistas - está ausente de toda da antropologia e epistemologia moderna. Nós chamamos essa faculdade o nous ou a faculdade noética.


Hoje eu quero contrastar ainda mais as formas pré-modernas e modernas de pensar sobre o mundo e nosso lugar nele. Vou sugerir que há três atitudes distintas que caracterizam a mente moderna. Quando combinado com a ascensão do método científico no século 17, essas atitudes formaram a base do paradigma intelectual dominante da modernidade: o racionalismo científico. Este, por sua vez, pode ser identificado por quatro ismos distintos.

A era moderna é caracterizada por três atitudes distintas: em primeiro lugar, que os seres humanos são essencialmente indivíduos; em segundo lugar, que a razão humana - e esta será posteriormente expandida para incluir o método científico - é autônoma; e terceiro, que a razão humana é suficiente para responder nossas perguntas necessárias e resolver os nossos problemas.

Vamos começar com essa novíssima crença de que os seres humanos são essencialmente indivíduos. Aristóteles escreveu, e mais de uma vez, que ser humano é estar em comunidade. Na verdade, ele define homem como político, ou seja, social, animal. Um homem que deliberadamente se ausenta da sociedade é, de acordo com Aristóteles, ou um deus ou um animal, ou seja, ele está ou acima da humanidade ou abaixo dela. A única coisa que não é, no entanto, é um ser humano. Na verdade, tão forte era essa crença entre os gregos que a palavra grega para o indivíduo era "idiota".

Essa crença é compartilhada por todos os povos pré-modernas, e até hoje pela maioria das sociedades não-européias. O culto moderno da marcha indivíduo soberano ao ritmo de seu próprio tambor é uma invenção europeia. Na verdade, Friedrich Nietzsche, que desprezava a modernidade por uma série de outras razões, afirmava que o triunfo do indivíduo era a maior conquista da modernidade.

Podemos questionar, então, o que levou a essa grande mudança. A introdução do nominalismo na filosofia medieval certamente teve algo a ver com isso. Nominalismo é a posição que só coisas individuais existem. Os termos gerais referentes a abstrações como "humanidade" ou "natureza humana" são apenas nomes. Assim, a antropologia nominalista assevera que não há nenhuma coisa como a humanidade, apenas as pessoas individuais. 

A nova física emergente também pode ter desempenhado um papel. Thomas Hobbes pensou em seres humanos explicitamente nos moldes de corpos discretos em movimento, isto é, se o mundo natural é composto exclusivamente de corpos materiais discretos em movimento no espaço, então as pessoas podem ser definidas da mesma maneira. Hobbes fez desta física antropológica a base de sua famosa filosofia política.

Além disso, no entanto, devemos considerar também a influência da perda do conceito de nous. A faculdade noética é uma compreensão intuitiva pura. Sua visão do belo e do bem é direta e imediata. A razão discursiva, por outro lado, é orientada a objetos. É dirigido tanto para os dados dos sentidos ou para a sua própria estrutura interna. Em ambos os casos, no entanto, o pensamento é mediado por símbolos ou linguagem. Não é muito difícil imaginar como isso poderia levar à idéia de que cada pessoa é um centro cognitivo individual. Na religião, isso leva à idéia de que cada pessoa é um intérprete individual das Escrituras.

Enquanto se assume que o mundo natural que todos esses indivíduos percebem é uno e uniforme, e que a própria razão é universal e uniforme, tudo está bem. Uma vez, no entanto, que se começa surgir dúvidas sobre a objetividade do mundo ou da universalidade da razão, então todo o programa começa a desmoronar. Chamamos esse desmoronar de "pós-modernismo".

Em contraste, deixe-me chamar sua atenção para os escritos dos Padres, particularmente o maior dos teólogos do século 20, o Arquimandrita Sofrônio (Sakharov). Seja discutindo a vida de seu mentor, St. Silouan, ou suas próprias experiências, Archim. Sofrônio diz-nos que quando o nous tiver sido purificado e encontra Deus em oração pura, a alma se torna consciente não só da unidade da humanidade, mas de toda a criação. Isso leva ao derramamento de lágrimas de amargura para o mundo. Estas lágrimas não são o produto de sentimentalismo ou emoção, mas são um dom divino que permite a quem reza entrar em oração de intercessão de Cristo por toda a criação. Você consegue entender que o método ortodoxo de oração, a oração noética, mesmo quando praticada por um monge que vive sozinho em uma cela remota, leva não ao egoísmo e isolamento, mas para uma unidade noética com Deus e com toda a humanidade?

Vamos passar para a autonomia da razão. Por "autonomia" quero dizer a idéia de que a razão é independente de qualquer cultura ou língua, ou seja, é verdadeiramente universal. O melhor exemplo aqui é matemática. Não faz qualquer sentido pensar em matemática chinesa ou matemática Europeia. Dois mais dois é igual a quatro em todos os lugares e sempre. Este ponto de vista é tão senso comum que nenhum indivíduo antes do século 20 ousou desafiá-lo. Um desafio, no entanto, veio da mecânica quântica. Os postulados da teoria quântica e as experiências tendem a apoiar, que não só as leis básicas da física não funcionam no nível quântico, que mesmo as leis básicas da lógica, como o princípio da não-contradição não pode funcionar lá. Isso é o que levou o famoso logicista americano, Willard Van Orman Quine, a opinar que talvez o princípio da não-contradição não é uma lei do pensamento no final das contas, mas apenas um postulado conveniente que tem se mostrado útil até agora, mas pode não ser útil no futuro.

Independentemente disso, vamos considerar o papel que a perda do conceito de nous pode ter desempenhado na convicção da autonomia da razão. Dificilmente se pode negar que os seres humanos gostam da certeza, mas sabemos que a única certeza real é encontrada quando a mente, isto é, o nous, torna-se consciente de Deus, que é, obviamente, a última palavra em certeza. Os Padres nos dizem que nosso conhecimento, mesmo deste mundo, só poderá ser parcial e opaco, a menos que e até que, cheguemos a conhecer as razões divinas ou o logoi que permeiam toda a criação e que fazem tudo ser o que é. Assim, para conhecer este mundo, e ainda mais as coisas divinas, é necessário a contemplação noética.
No entanto, desde a alta idade média, a contemplação noética saiu completamente do radar da filosofia européia ocidental. Sendo assim, os filósofos têm procurado a certeza na faculdade próxima mais alta: a razão discursiva. O resultado é a fé que a razão consiste neste reino universal da objetividade pura e que qualquer pessoa pode entrar, somente aplicando as regras corretas de pensar. O sumo-sacerdote desta visão foi um sujeito chamado Immanuel Kant, e nós vamos chegar a ele um pouco mais tarde.

Finalmente, a modernidade é caracterizada pela crença de que a razão é suficiente para responder a todas as perguntas da humanidade e resolver todos os seus problemas. À primeira vista, isso parece bastante improvável, mas quando a razão é expandida incluindo a observação sistemática da natureza, ou seja, o método científico, então, uma força potente é desencadeada sobre o mundo. O sucesso do raciocínio científico e o avanço tecnológico confirma para todos, até aos mais céticos, que a razão é, de fato, suficiente para guiar a humanidade para um futuro cada vez mais brilhante. Em termos práticos, isso significa que devemos entregar todas as tomadas de decisões aos que possuem o know-how científico para resolver os nossos problemas.

Assim, a fé na suficiência da razão leva diretamente e inevitavelmente em direção ao governo dos burocratas ou tecnocratas com formação científica e tecnologicamente proficientes. Basta considerar quantas vezes por dia você ouve as seguintes frases: "nove em cada dez médicos recomendam", "estudos têm mostrado", ou o meu favorito, "os cientistas concordam." Por uma questão de educação, não vou mencionar coisas como armas nucleares biológicas, químicas e, a construção de usinas de energia nuclear em linhas de falha, a construção de barragens que impedem inundações em um único lugar e criam inundações catastróficas em outro, carcinogênicos substitutos de alimentos naturais, poluição bom e velha das industrias comuns, ou a capacidade tecnológica do Big Brother para ler cada um dos nossos e-mails, ouvir cada telefonema, e gravar todas as teclas do computador. Só luditas e fundamentalistas retrógrados não conseguem apreciar o fato de que só a ciência e a tecnologia podem salvar a humanidade. Minha pergunta é, porém, salvar-nos de quê?

É assim que o homem moderno se vê, como um indivíduo indomável armado com a arma mais potente do universo: sua própria razão. Algum de vocês lembra de ter lido o poema "Invictus" na escola? Esse é o Sr. Modernidade em toda a sua humilde glória. O resultado final dessas atitudes é o paradigma intelectual dominante da modernidade: o racionalismo científico. No entanto, sabendo o quanto vocês gostam de cliff-hangers, eu deixarei para a próxima, quando discutiremos os quatro ismos do racionalismo científico: o materialismo, o positivismo, o cientificismo, e progressivismo.

Transcrição do Podcast - Faith and Philosophy