sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O Estúpido Século XIX (por Léon Daudet)

Durante a Idade Média, o intelecto da França expressou-se em uma incomparável escolástica - a qual estamos apenas começando a retornar - cujo grande mestre foi Tomás de Aquino; sua arquitetura expressou-se em nossas catedrais; seus movimentos públicos nas Cruzadas, cuja encarnação pessoal foi Joana d'Arc.  A Donzela de Orleans era verdadeiramente filha de um grande desabrochar de um idealismo marcial e religioso. 

Depois veio o Renascimento, personificado na França por três nomes: Francisco I, com sua comitiva de artistas, poetas e estudiosos, Rabelais e Montaigne. Embora esta época seja mais familiar para nós do que a Idade Média, ela está longe de ter revelado os seus segredos e hereditariedade. Pois não foi a redescoberta de Aristóteles por São Tomás de Aquino a fonte do Renascimento?


Depois veio a Reforma, com Lutero e Calvino - o embrutecimento do intelecto europeu pela negação dos milagres e, por fim, a deificação do instinto e da ganância bruta. A Reforma deu à luz a Rousseau em Genebra e Kant em Königsberg. Este último destruiu a razão ocidental, privando-a de seus fundamentos realistas através do que é chamado de crítica transcendental, e negando a necessária correspondência entre a coisa e a ideia, entre o mundo objetivo e o subjetivo.

Na sequência da Reforma veio a Revolução Francesa, inspirada diretamente por Rousseau e os enciclopedistas. Este episódio abrangeu o final do século XVIII e o sangrento amanhecer do século XIX. Examinemos agora este último século. Sua infância e juventude foram entre 1806 e 1815,  o auge de sua vida veio em 1848, começou a mostrar sinais de idade em 1870, e foi moribundo entre 1900-1914. Devemos incluir em nosso exame o intervalo entre a ameaçadora e sombria Exposição Universal de 1900 e a Guerra Mundial, bem como o seu período de incubação entre o Diretório e o Império. Séculos são como pessoas; têm tanto um elemento original e um hereditário em si, um eu e um eles. 

Na França, o que o século XIX herdou da Idade Média? Absolutamente nada. O século XIX prosseguiu uma filosofia do conhecimento - isto é, uma metafísica - sem encontrá-la. Por kantismo temos o inimigo do conhecimento, uma vez que nega seu mecanismo essencial, adoequatio rei el intellectus. O século XIX não tinha arquitetura, que era a prova visível de sua pobreza de espírito e de profunda discórdia social entre o projetista criativo e o artesão. O século XIX não tinha movimento popular, no sentido em que usamos a palavra ao falar da Cruzadas e Joana d'Arc. Ele somente tinha matança. Vou lhe dizer por quê. Bonaparte era uma espécie de paródia blasfema das Cruzadas. Ele simbolizava uma cruzada para o nada.

Na França, o que o século XIX herdou do Renascimento? Quase nada. A ignorância foi propagada pela democracia chegando a corromper até mesmo o corpo docente. Quando o ensino fundamental dita sobre a universidade é um sinal inequívoco de decadência. Quando o mais baixo manda no mais alto, a hierarquia da mente e da matéria é invertida. Eu disse "quase" nada porque este século nos deu alguns estudiosos e pensadores, - notadamente, Auguste Comte, Fustel de Coulanges, Quicherat, Longnon e Luchaire, - herdeiros desse espírito sublime que busca as causas das coisas, e que durante o século XVI cultivaram-se pela comunhão com os antigos. Ele também nos deu alguns pintores, como a escola de Fontainebleau, e escultores como Rude, Puget, Carpeaux e Rodin, que foram preenchidos com o fogo divino de Roma e de Atenas.

Na França, o que o século XIX herdou da Reforma e de sua filha sanguinária, a Revolução? Muito. Melhor dizendo, tudo. Eu compararia a Reforma e a Revolução a uma imensa barreira de rocha, obstruindo a entrada do século XIX na França e evitando a entrada de luz do passado; assim, nossas gerações tardias foram forçadas a sentir pelo tato.

Sim, mas há a Ciência, com C maiúsculo. O século XIX foi construído para a ciência, laboratórios e fábricas, os dois grandes instrumentos do progresso.

Demonstrarei em outra ocasião o quão frágil é grande parte da nossa ciência, - tão efêmera quanto os insetos que se reproduzem e morrem na superfície de uma poça, - e quão prejudicial é o remanescente. Não pretendo proclamar a insolvência, a falência da ciência, como o maluco Brunetiere faz em seus trabalhos pesados, contraditórios e dogmáticos. Não pretendo negar certos benefícios estáveis e positivos que surgiram da efervescência científica entre 1860 e 1914. Mas, proponho mostrar o outro lado dessa conquista - a transformação dos laboratórios e fábricas, nas mãos dos políticos malucos, em armas contra a raça humana, a quem estas instituições supostamente deveriam servir. A verdadeira ciência, que transcende os laboratórios e a fábricas, não é filha de ontem, como os intelectuais tolos e deturpadores que dificultaram a passagem do século XIX, tão carinhosamente acreditam. A matemática superior, e as leis astronômicas que elas expressam, eram conhecidos pelos egípcios, cujos monumentos provaram também a posse de um conhecimento extraordinário da mecânica. Mas um saber da mecânica implica um conhecimento da física e da biologia.

A navegação de uma embarcação a vela é uma ciência. A fabricação de pão é uma ciência, e envolve um conhecimento de fermentação e suas leis muito antes de Pasteur. A produção de vinho é uma ciência e, da mesma forma, utiliza conhecimentos sobre fermentos. 

Estas descobertas não foram obra de um grupo de homens, não tão diferentes dos nossos provérbios, canções e lendas populares. Elas nos dadas por homens de gênio, cujos nomes e outras descobertas foram perdidas ou esquecidas. O mesmo vale para a extração de metais, a tecelagem, a elaboração de leis, a construção de estradas e aquedutos, e as mil outras artes que se tornaram parte integrante da nossa civilização. Nenhuma das descobertas das quais o século XIX é tão orgulhoso, possuem o caráter de ser perene e consubstancial com a vida civilizada. Sabemos que a ciência da eletricidade pode ser perdida e desaparecer por um curto-circuito mental. Nossa química atual - em constante transformação - é codificada por uma agonizante tortura de hipóteses mutualmente destrutivas sobre átomos. O próprio fundamento da teoria de Pasteur está se desintegrando; e os nossos recipientes com soros e antitoxinas estão se perguntando se os micróbios se tornaram imunes aos métodos do passado.  Em resumo, parece que a estabilidade das descobertas é inversamente proporcional à sua frequência e facilidade, e que a natureza exige tempo e deliberação.


Agora, a pressa demasiada é uma característica do século XIX, assim como também o acanhamento e o preconceito. Esta pressa, que é prejudicial para os trabalhos mentais como também para os do corpo, tem aumentado constantemente desde 1800 até 114 anos depois, assumindo que o século seguinte, realmente começou com a primeira Batalha de Marne. Este excesso de pressa tem um lado bom. Isso nos deu as ferrovias, os navios a vapor, o telégrafo, os automóveis, os telefones e todas as outras órgãos de velocidade. Mas estes eram meras coisas físicas. No mundo mental a precipitação tem sido perniciosa. Faz-nos supor que aqueles problemas que ainda estão nos primeiros estágios de solução já foram liquidados e decididos; que as instituições detestáveis e defeituosas são perfeitas e imutáveis; que as reputações usurpadas são imortais. Nestes tempos degenerados, a fabricação de uma falsa glória tornou-se uma indústria comum, testemunhados isso nos estúpidos monumentos que sobrecarregam os nossos parques e praças, e nos nomes tolos que nossas ruas são batizadas.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Dostoiévski sobre o Conservadorismo Moderno

Fiodor Dostoiévski tem sido corretamente chamado de profeta da era moderna. Com uma visão de profundidade incomparável, ele viu que a desordem cultural, política e econômica têm a sua principal fonte em uma crise do espírito. Dostoiévski, então, previu como rebelião do homem contra o Transcendente aceleraria progressivamente para a anarquia completa. Esta ideia tornou-se um tema central em "Os Demônios", seu grande romance contra-revolucionário. Dentro do livro em questão, a atenção foi atraída para a corrupção espiritual da classe dominante, os chamados elementos conservadores da sociedade.


Dostoiévski escreveu sobre a Rússia, mas também estava profundamente sensível à descendência do Ocidente ao secularismo. Por volta do século 19, o "iluminado" homem europeu tinha lançado-se por completo em apostasia, abandonando Cristo para o culto de si, o seu primeiro ato de regicídio foi o assassinato de Deus dentro de seu coração. Sem autoridade sacral, dizia-se que o poder derivava da vontade perfeita, "Nós, o povo", guiado por manipuladores endinheirados e seus tecnocratas.


Partidos como  Republicano e Conservador não fizeram nada para deter o declínio de nossas sociedades, porque, em última instância, compartilham os mesmos princípios radicais, anti-tradicionais da esquerda.  Por evidências, não precisa ir tão longe, a rápida transformação da Grã-Bretanha em um Estado Policial multicultural, dominado pelo crime, onde os conservadores no poder avançam no "casamento" homossexual como uma questão de legitimidade moral.


Os ideais da modernidade, que estão em andamento, a igualdade, a democracia, a total autonomia individual, etc formam uma falsa religião. Enquanto o auto-proclamado direito se apega a qualquer uma dessas fantasias, a oposição ao liberalismo é sem sentido e puramente cosmético. Acenos retóricos à consolidação cultural, ou seja, "aos valores da família", se articulam no âmbito corrosivo da ideologia iluminista de direitos, e somente com a finalidade de conquistar votos. Alguém pensa seriamente que a liderança republicana vai tentar alguma coisa significativa contra o infanticídio institucionalizado? Para que não esqueçamos, mais de 50 milhões de crianças por nascer foram mortas nos Estados Unidos desde que o aborto foi legalizado pela Suprema Corte em 1973. Agora é uma questão de orgulho para os homens e mulheres americanas lutar por tal liberdade desde Hindu Kush ao Magrebe.


Com o Ocidente tradicional devastado e a hierarquia invertida, há muito pouco para conservar além de sua fé e herança, as necessidades para sobrevivência e ressurgimento. Mas os conservadores modernos rejeitam a essência divina-humana e sincera da cultura, servindo, assim, como mais fervorosos defensores da ordem liberal. Fácil é criar a próxima guerra, dissolver os povos pelo lucro corporativo e divertir o povo grosseiramente, todos fazem parte da fundação de um Jardim das Delícias Terrenas, o que Dostoievski imaginou como um formigueiro glorificado. O movimento conservador sabe o que é realmente importante: generosas contribuições das industrias financeiras e de defesa para manter as políticas de centralização oligárquicas e o vasto império ultramarino.  


A Direita dominante levou o Ocidente ao colapso cultural sistemático em conluio com a esquerda ligeiramente mais radical. Em "Os Demônios", Dostoievski revela as dimensões espirituais e intelectuais deste longo processo e seu espírito malévolo por trás dele. Na obra, uma conversa entre o governador provincial, Von Lembke, e o revolucionário niilista Peter Verkhvensky, resume de forma clara a mentalidade e o caminho do conservadorismo na era moderna.


“Temos responsabilidades e, como resultado, nós também servimos uma causa comum. Apenas estamos segurando um pouco do que você afrouxou que, sem nós, dispersaria em várias direções. 
Nós não somos seus inimigos; raramente somos. Estamos dizendo a você: vá em frente, faça o progresso, até mesmo destrua, isto é, tudo aquilo que está sujeito a alteração; mas, quando necessário, manteremos vocês dentro dos limites necessários e salvaremos vocês de si mesmos, porque sem nós vocês levariam a Russia em convulsão, privando-a de uma aparência adequada, e nosso dever é cuidar das aparências. 
Entenda que você e eu somos mutuamente necessários um ao outro. Na inglaterra os Conservadores e os Liberais também precisam um do outro. Dessa forma, então, nós somos os Conservadores e vocês, os Liberais..." 
"Bem, da forma que você preferir" murmurou Peter Stepanovich. "De qualquer forma, você está abrindo o caminho para nós e preparando o nosso sucesso."

Jogando-se fora a preocupação com a aparência adequada, torna-se claro que o conservadorismo moderno é servo do niilismo revolucionário.



Por Mark Hackard, original em http://souloftheeast.org/2013/02/01/dostoevsky-on-modern-conservatism/

domingo, 19 de janeiro de 2014

Ortodoxia, Direitos Humanos e Marxismo (por Vladimir Moss)


As Origens da Filosofia: Lei Natural


A filosofia moderna dos direitos humanos é uma teoria da moralidade universal que liga todos os homens, todas as instituições e estados independentemente da existência de Deus ou de qualquer legislador pessoal. 

As raízes desta filosofia reside na ideia ocidental medieval da lei natural. Esta nasceu a partir da necessidade de colocar limites em duas instituições que, de formas diferentes, se julgavam estar acima da lei: o Sacro Império Romano e o Papado Romano.


De acordo com a lei romana, o imperador estava acima da lei, ou libertos de leis humanas (Legibus solutus), na medida em que "aquilo que agrada ao Príncipe tem vigor de lei". Mas, se ele rompe suas próprias leis, quem iria julgá-lo e quem iria impedi-lo de criar outra lei com intuito de fazer sua transgressão anterior legal? O papa era igualmente considerado acima da lei - ou seja, livre das disposições do direito canônico. Esta era uma consequência de seu "poder absoluto" (potestas absoluta), pois se ele pecasse contra o direito canônico, ou caso torna-se um herege, quem iria julgá-lo, se não o especialista supremo sobre o assunto, o próprio papa? E quem poderia julgá-lo se ele se recusasse a julgar a si mesmo?

No entanto, embora o Rei possa ser libertado das leis do Estado, e o papa libertado do Direito Canônico da Igreja, ambos estavam, teoricamente, sujeitos a um outro tipo de direito. Esta lei superior foi chamada pelos teóricos medievais da lei natural. A lei natural é definida pelo historiador medieval da filosofia escolástica Pe. Frederick Copleston como "a totalidade das ordens universais da razão pertinentes a natureza do homem, onde o bem deve ser buscado e o mal ser evitado". 

Mas esta definição levanta a questão: como sabemos o que é "razão correta"? E o que é "o bem da natureza humana"? A resposta dada pelos teólogos medievais, de acordo com JS McClelland, era mais ou menos a seguinte: "Para uma máxima de moralidade ou uma máxima de um bom governo ser parte da lei natural, essa tem que ser consistente com a escritura, com os escritos dos Padres da Igreja, com o pronunciamento papal, com o que dizem os filósofos, e também devem ser consistentes com as práticas comuns da humanidade, tanto cristãs e não cristãs".

Mas isso, também, levanta várias questões. O que devemos fazer se "pronunciamento papal" contradizer "os escritos dos Padres da Igreja" (como costuma acontecer)? E "o que os filósofos dizem" provavelmente não estaria ainda mais em desacordo com os Santos Padres? E "as práticas comuns da humanidade, tanto cristãs e não cristãs" um conceito extremamente vago e discutível?

E é, de facto; e é por isso que, mesmo na sua versão mais moderna e secularizada, a filosofia da lei natural, ou direitos humanos, tem-se mantido extremamente vaga e discutível. Mas isso não impede, tanto naquela época como agora, que esse conceito seja uma arma muito poderosa nas mãos daqueles que, por um motivo ou outro, querem derrubar a hierarquia vigente ou sistema de moralidade. Vemos isso até mesmo em Tomás de Aquino, o maior dos escolásticos e um filho fiel da Igreja Católica Romana. Ele definiu a relação entre a lei natural e as leis feitas pelo homem da seguinte forma: "Toda lei estabelecida pelo homem tem natureza de lei na medida em que deriva da lei da natu­reza. Se, pois, discordar em alguma coisa, da lei natural, já não será lei, mas corrupção dela."

A primeira aplicação importante do princípio da lei natural veio durante a crise da Magna Carta na Inglaterra. Papa Inocêncio III havia colocado toda a Inglaterra sob proibição porque o Rei João discordava dele sobre quem deve ser o arcebispo de Canterbury. Ele excomungou Rei João, depuseram-no do trono e sugeriu ao Rei Filipe Augusto da França para que ele invadisse e conquistasse a Inglaterra. João apelou para a mediação papal para salvá-lo de Philip. Ele a recebeu, mas a um preço - a restituição completa dos fundos e terras da igreja, concessão perpétua das terras da Inglaterra e Irlanda para o papado, e ao pagamento de uma renda anual de mil marcos. Só quando todo o dinheiro havia sido pago, a proibição foi suspensa. E então, como Peter De Rosa coloca com acidez: "por gentil permissão do Papa Inocêncio III, Cristo foi capaz de entrar na Inglaterra novamente" No entanto, isso enfureceu o Rei Filipe; pois ele agora havia sido ordenado a abandonar seus preparativos para a guerra e não mais tinha permissão para invadi-las, pois agora não era Inglês, mas solo papal. Além disso, a rendição miserável de João ao Papa, e o juramento de fidelidade que havia feito, despertou os temores dos barões ingleses, cujas demandas levou à famosa Carta Magna de 1215 que limitava os poderes do Rei e é geralmente considerada como o início da democracia ocidental moderna. Assim, o despotismo do Papa provocou o início da democracia parlamentar...

Agora, com a Carta Magna, havia limitação do poder Real, não o poder Papal. No entanto, isso afetou também o papado: em primeiro lugar, porque a Inglaterra deveria ser um feudo papal, mas, ainda mais importante, foi o fato de haver agora precedente perigoso, revolucionário, que poderia ser usado contra o próprio Papa. E assim, Papa Inocêncio III "da plenitude de seu poder ilimitado" condenou a carta como "contrária à lei moral", "nula e sem validade de tudo eternamente", absolveu o rei da obrigação de segui-la e excomungou "qualquer pessoa que continuasse a manter tal traição e pretensões iníquas. "

Mas o Arcebispo Stephen Langton de Canterbury se recusou a publicar esta sentença. E a razão que ele deu foi muito significativa: "A lei natural é vinculativa para os papas, príncipes e bispos da mesma forma: não há como escapar dela. Ela está além do alcance do próprio papa."

E assim, a doutrina da lei natural abriu o caminho para o povo julgar e destituir os papas e reis. No entanto, ao longo do período medieval e no início do período moderno, a lei natural permaneceu ligada ao cristianismo e as normas cristãs de comportamento. E desde que o cristianismo em geral não favorece a rebelião contra os poderes constituídos, o potencial revolucionário completo do conceito ainda não estava realizado.



Da Lei Natural aos Direitos Humanos

Primeiro, o conceito de lei natural precisou ser desenvolvido. A primeira questão foi: se a lei natural existe, quem é o legislador? Ou, se não houver um legislador, qual é a sua base na realidade? A segunda questão: supondo que exista uma base real para lei natural, em oposição ao Divino, ou eclesiástico, ou do estado, o que ela prescreve? Em particular, uma vez que toda lei implica direitos e obrigações, quais são os direitos e obrigações legislados pela lei natural, e para quem são dadas?

Considerável "progresso" em responder a estas perguntas foi feita no início do período moderno. Durante a Renascença, o interesse começou a ser focado na natureza do homem, e, em particular, a liberdade homem e dignidade - uma base promissora, na visão do homem do Renascimento, para uma teoria da lei natural. Assim, Leonardo da Vinci escreveu: "O principal bem da natureza é a liberdade". Mais uma vez, Pico della Mirandola escreveu em sua Oração sobre a Dignidade do Homem:  "O sublime generosidade de Deus Pai! Ó felicidade maior e mais maravilhosa do Homem! Para ele, foi concedido a ser o que ele quer. O Pai dotou-o de todos os tipos de sementes e com os germes de todas as formas de vida. Seja qual for a semente que cada homem cultiva, esta vai crescer e dar frutos nele ". Assim, o homem é supostamente concedido "para ser o que ele quer" ... Mas ele está? Será que, na verdade, ele não está restrito em todas as formas em que ele queira ser?  Se por liberdade do homem, queremos dizer o livre arbítrio, então sim, o homem tem livre-arbítrio. A criação do homem por Deus, em Sua imagem, significa que o homem nasceu com a liberdade e racionalidade à imagem da Racionalidade e Liberdade de Deus. Mas isso é de modo algum igual à capacidade de "crescer os germes de todas as formas de vida" em si mesmo. Pode um homem estúpido "crescer os germes" de um gênio dentro de si?

No entanto, a ideia de que o homem "nasce livre" se tornou agora um lugar-comum do pensamento político, e também a base para muitas conclusões de longo alcance sobre a vida e a moralidade. Se o homem nasce livre, então ele não é pela natureza, sujeito a nenhum poder externo, quer seja Deus, a Igreja, o Estado ou a Família. E uma vez que ele é assim por sua natureza, ele o direito de permanecer assim...

Se há um homem que pode ser considerado o criador da filosofia moderna, não-cristã e não religiosa dos direitos humanos, esse homem, provavelmente é o jurista holandês do século XVII, Hugo Grotius (1583-1645). Grotius estava escrevendo sob a influência das guerras religiosas entre católicos e protestantes, e também as guerras comerciais entre as nações europeias, como a Inglaterra, Holanda e França.  Ele queria encontrar uma maneira de regular as guerras de acordo com princípios que fossem universalmente aceitos. Como a maioria dos homens de sua época, ele era um cristão, e até mesmo escreveu uma obra popular, "Sobre a Verdade da Religião Cristã". No entanto, em sua obra mais influente, sobre o Direito de Guerra e Paz, ele deixou escapar uma frase que apontaria o caminho para uma teoria do direito internacional e dos direitos humanos, que era completamente independente da moral ou teologia: "Até mesmo a vontade de um ser onipotente", escreveu ele, "não é possível alterar ou revogar" a lei natural, que "manteria sua validade objetiva mesmo que se assumíssemos o impossível, que não há Deus ou que Ele não se importa com assuntos humanos"(Prolegômenos XI).      

De acordo com Grotius, portanto, a lei natural é a verdade mais objetiva, mais objetiva, se fosse possível, que a existência de Deus ou o cuidado de Deus para o mundo. Assim sendo, teoricamente, se lei natural diz que algo é certo, ao passo que Deus diz que é errado, devemos nos ater à lei natural. Claro que, se lei natural deriva, em última análise de Deus, não haverá nunca qualquer conflito entre a lei Divina e a lei natural; mas Grotius aparece aqui para prever a possibilidade de um mundo com a lei natural, mas sem Deus. 
Direitos Humanos e a Revolução Francesa

Vamos avançar agora para a Revolução Francesa e da "Declaração dos Direitos, que Homem e do Cidadão", que se tornou sua fundamento teórico:
     “’I. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.
      II. A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.
       III. O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente.
        IV. A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo.
        V. A lei proíbe senão as ações nocivas à sociedade…”

Não houve menção na Declaração dos direitos das mulheres. Mas, em   "Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã" (1791), Olympe de Gouges escreveu: "1. Mulher nasce livre, e continua a ser igual ao Homem na direitos ... 4. Os exercícios dos direitos naturais da mulher não encontra outros limites senão na tirania perpétua que o homem lhe opõe... 17. As propriedades pertencem a todos os sexos, reunidos ou separados". Mais uma vez, em "Uma defesa dos Direitos da Mulher" (1792), Mary Wollstonecraft negou que houvesse qualquer qualidades especificamente femininas: "Eu aqui jogo fora minhas luvas, e nego a existência de virtudes sexuais, sem excetuar a modéstia" E havia outro elementos.  Assim, o artigo XXI da Declaração revisada de 1793, declarou: "A assistência pública é uma obrigação sagrada [dette]. A sociedade deve a subsistência aos cidadãos desafortunados, quer para encontrar trabalho para eles, ou para assegurar os meios de sobrevivência daqueles incapazes de trabalhar ".

 Papa Pio VI condenou a Declaração dos Direitos Humanos. Em particular, ele condenou a ideia de "liberdade absoluta", a liberdade "que não só garante às pessoas o direito de não ser incomodadas sobre suas opiniões religiosas, mas também lhes dá licença para pensar, escrever e de imprensa, sendo assim permitindo a impunidade sobre tudo o que a imaginação mais desregrada pode sugerir sobre religião. É um direito monstruoso..." Assim Deus, disse o Papa, também possui direitos: “O que é mais contrário aos direitos do Criador que essa ‘liberdade de pensamento e ação em que a Assembleia Nacional concede ao homem como um direito inalienável da natureza’?”

 Existem duas inovações nesta filosofia revolucionária. Em primeiro lugar, a fonte de autoridade na sociedade é anunciada não ser Deus, nem alguma autoridade política existente, mas "a nação". Portanto as nações devem ser consideradas como agentes livres com direitos, e a fonte de todos os direitos particulares em suas próprias sociedades.

Mas o que constitui a nação? A essência da nação, e a fonte de seus direitos, é o que Rousseau chamou de "Vontade Geral" - um termo muito vago e que ninguém pode afirmar representar. Ao mesmo tempo, esta "nação" ou "Vontade Geral" atribui a si o poder mais completo, de modo que "nenhum homem e nenhum indivíduo pode exercer autoridade que não emana dela diretamente." Isto imediatamente destrói a autoridade, não só do Rei, mas também da Igreja - e, na verdade, de todas as outras pessoas.

A segunda inovação é o conceito que "direitos" que são "imprescritíveis" - isto é, prescritos nem por Deus nem pelo homem. O homem, de acordo com a Declaração, tem o "direito" imprescritível de fazer qualquer coisa que ele gosta - desde que ele não prejudique os outros (artigo 4 º). No entanto, esta última possibilidade não está elaborada e foi, na prática, completamente ignorada na tradição revolucionária francesa. Assim, o homem é, em princípio, livre para fazer qualquer coisa que seja. A única limitação na sua liberdade é a liberdade de outro: o seu direito de não ser limitado ou restringido por ele. 




Direitos Humanos no Século XX


O século XX testemunhou importantes desenvolvimentos na filosofia dos direitos humanos. A mais importante delas foi a localização da fonte dos direitos humanos; não no poder soberano da nação ou o Estado-nação, como a Declaração Francesa dos Direitos Humanos havia decretado, mas em alguma esfera supra-nacional. Ao admitir-se que os direitos humanos são universais, tem-se, por consequência, a necessidade que sejam enquadrados em termos gerais aplicáveis a todos homens e mulheres; dessa forma, localizar sua obrigatoriedade em lugares que não seja supra-nacional ou em uma esfera-metafísica, mas em nações particulares ou estados - que, muito frequentemente, discordam entre si - parece não fazer sentido. 

O problema é que se levarmos esse argumento à sua conclusão lógica, parece implicar que todos os Estados nacionais deveriam abrir mão de seus direitos e entregá-los a um governo mundial, Que por si só pode imparcialmente formular direitos humanos e observar se serão cumpridos. Esta lógica parece ser reforçada pelas duas primeiras guerras mundiais, que tendo desacreditado o nacionalismo, conduziu às primeiras organizações internacionais com poderes legais, ainda que embrionários, acima dos Estados-Nação - a Liga das Nações e as Nações Unidas.


Um dos primeiros a formular este desenvolvimento foi o judeu vienense e professor de Direito, Hans Kelsen, em sua obra, A Teoria Pura do Direito. "A essência de sua teoria," de acordo com Michael Pinto-Duschinsky era que a obrigação de obedecer à lei não deriva da soberania nacional, mas a partir de uma norma fundamental. “Em termos práticos, isto conduziu, após a Primeira Guerra Mundial, para sua defesa em tribunal constitucional austríaco, como parte da constituição e, depois da Seguida Guerra Mundial, o apoio da ideia de uma corte internacional com jurisdição obrigatória era fundamental no contexto das Nações Unidas.”

Outro acadêmico judeu austríaco na mesma tradição foi Hersch Lauterpacht. Sua dissertação "combinou seus interesses em jurisprudência e sionismo com um argumento sobre os mandatos concedidos pela Liga das Nações que implicava que o mandato dado a Grã-Bretanha para governar a Palestina não lhe dava soberania. Pelo contrário, isto levou, argumentou Lauterpacht, as Ligas das Nações que... 

"Apesar do fracasso da Liga das Nações para evitar a agressão nazista e do assassinato de sua família no Holocausto na Segunda Guerra Mundial, Lauterpacht permaneceu ligado às noções de uma ordem jurídica internacional. Antes de sua morte prematura, em 1960, serviu como juiz no Tribunal Internacional de Haia. Lauterpacht era dedicado à visão básica de que direitos humanos fundamentais são superiores as leis de estados internacionais e que essas seriam protegidas por sanções penais internacionais mesmo que as violações estivessem em conformidade com as leis nacionais vingentes. Ele aconselhou os promotores britânicos neste ponto. Juntamente com outro advogado judeu de Lviv, Raphael Lemkin, Lauterpacht teve um papel importante no trecho da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948. 

"A filosofia pública de Lauterpacht estava baseado na convicção de que os indivíduos têm direitos que não resultam do Estado-Não. Ele era um internacionalista que, ao longo de sua vida, tinha uma desconfiança na soberania do Estado que, para ele, refletia as agressões e injustiças cometidas pelos Estados-Nação e os desastres das duas guerras mundiais".

No entanto, como Pinto-Duschinsky sublinha com razão, enquanto "arbitragem internacional pode ser uma maneira prática e pacífica para resolver disputas entre países, ... tribunais internacionais que clamam jurisdição sobre países individuais não coexistem confortavelmente com as noções de soberania nacional..."

A despeito disso, e apesar da terrível destruição e derramamento de sangue causado pela idéia de liberdade positiva no período 1917-1945, em 1948 as Nações Unidas publicaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que declarou: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade." A Declaração afirma que "o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo." Embora possa parecer inofensivo, mesmo uma leitura superficial da história desde 1789 deveria convencer aqueles que elaboraram a Declaração a serem mais específico sobre o significado das palavras "liberdade" "direitos".  Eles deveriam saber que declarações muito semelhantes serviram como fundamento à Revolução Francesa e também a quase todas as outras revoluções sangrentas até a Revolução Russa, que naquele momento ainda estava destruindo milhões de almas em nome do "espírito de fraternidade"...

Por falar em direitos humanos, no contexto do capitalismo global, John Gray escreve: "Os fundamentos filosóficos desses direitos são frágeis e mal construídos. Não existe uma teoria credível na qual as liberdades particulares do capitalismo desregulamentado possam haver legitimidade dos direitos universais." As concepções mais plausíveis de direitos não se baseiam em ideias de propriedade do século XVII, mas em noções modernas de autonomia. Mesmo estes não são universalmente aplicáveis; eles capturam a experiência apenas daquelas culturas e indivíduos para quem o exercício da escolha pessoal é mais importante do que a coesão social, o controle de risco econômico ou qualquer outro bem coletivo.

"Na verdade, os direitos nunca são fundamentos na teoria moral, política - ou prática. Eles são conclusões, resultados finais de longas cadeias de raciocínio a partir de princípios comumente aceitos. Direitos têm pouca autoridade ou conteúdo na ausência de uma vida ética comum. Eles são convenções duráveis somente quando expressam um consenso moral. Quando há uma discordância ética profunda e ampla, o apelo aos direitos não pode resolver. Na verdade, talvez faça tal conflito perigosamente incontrolável.

“Procurar por direitos para arbitrar profundos conflitos - em vez de tentar moderara-los através de compromissos políticos - é uma receita para uma guerra civil a longo prazo..."

Há um argumento plausível que a filosofia dos direitos humanos foi inventada pelos marxistas como outra forma de minar a sociedade, já que o colapso previsto por Marx não se concretizou. Assim, como Bernard Connolly escreveu, em 1923, um dos fundadores da Escola de Frankfurt de filosofia social "refletiu sobre o fracasso do "proletariado urbano" em criar revoluções bem-sucedidas em países economicamente avançados na forma prevista por Marx. Para combater esse fracasso era necessário, proclamou, "Organizar os intelectuais e usá-los para destruir a civilização ocidental. Só então, depois de terem corrompido todos os seus valores e ter feito a vida impossível, podemos impor a ditadura do proletariado". Corromper os valores da civilização ocidental significava minar e, finalmente, proibir todas as instituições, tradições, estruturas e modos de pensamento ('ferramentas de opressão") que sustentaram a civilização. Uma vez que a soberania nacional e a legitimidade política fossem removidos do caminho, seria muito mais fácil para que um governo central, inexplicável e nefasto ("politicamente correto") proibisse todos os outros fundamentos da civilização." 

Melanie Phillips endossou o pensamento de Connolly, descrevendo o ataque da filosofia dos direitos humanos à cultura cristã tradicional na Grã-Bretanha como "marxismo cultural", a continuação da revolução marxista por outros meios, desde a queda do Muro de Berlim, em 1989: 

"À medida que o comunismo desintegrou-se vagarosamente, os da extrema esquerda que permaneceram hostis para a civilização ocidental encontrou uma outra maneira de realizar seu objetivo de derrubá-la. 

"Isso foi o que poderia ser chamado de "marxismo cultural ". Foi com base no entendimento de que o que mantém a sociedade de pé, são os pilares de sua cultura: as estruturas e as instituições de educação, família, direito, mídia e religião. Transforme os princípios e você pode, assim, destruir a sociedade que fora moldada por eles. 

"A chave da compreensão foi desenvolvido em especial, por um filósofo marxista italiano chamado Antonio Gramsci. Seu pensamento foi retomado por radicais nos anos sessenta - que são, é claro, a geração que detém o poder no Ocidente hoje.

"Gramsci compreendeu que a classe trabalhadora nunca se levantaria para se apossar dos meios de "produção, distribuição e troca ", como o comunismo tinha profetizado. A economia não era o caminho para a revolução.

"Ele acreditava, em vez disso, que a sociedade poderia ser derrubada se os valores que a sustentam pudessem ser formado em sua antítese: se seus princípios fundamentais fossem substituídos por aqueles de grupos que eram considerados estranhos ou que ativamente transgredissem os códigos morais da sociedade.

"Então, ele defendeu uma "longa marcha através das instituições" para capturar as cidadelas da cultura e transformá-las em uma quinta coluna coletiva, minando por dentro e deixando todos os valores fundamentais da sociedade de cabeça para baixo.

"Essa estratégia tem sido realizado ao pé da letra.

"A família nuclear tem sido amplamente destruída. A ilegitimidade foi transformada de um estigma em um "direito". A desvantagem trágica da ausência de um pai foi redefinida como algo neutro, uma "opção de vida". 

"A educação foi destruída, tendo seu princípio central, a transmissão de cultura para as gerações seguintes, sido substituído pela ideia de que as crianças já sabiam o que carregava valores superiores a qualquer coisa que o mundo adulto pudesse impingir neles. 

"O resultado desta abordagem "centrada na criança" tem sido o analfabetismo generalizado, ignorância e a erosão da capacidade de pensamento independente.      

"A lei e a ordem foram igualmente prejudicados, com criminosos sendo considerados acima de qualquer punição, uma vez que são considerados "vítimas" da sociedade e das drogas ilegais - assim, tacitamente encorajando uma campanha para denegrir as leis anti-drogas.

"A agenda de 'direitos' - vulgarmente conhecido como" politicamente correto "- virou moralidade dentro para fora, dispensando qualquer ação ilegal por parte de grupos de autodesignados "vítimas ", alegando que nunca poderiam ser responsabilizado pelo que fizeram.

"O feminismo, anti-racismo e direitos dos homossexuais, portanto, transformou os Cristãos em inimigos do pudor ao serem forçados a saltar obstáculos para provar a sua virtude.

"Essa mentalidade se baseia na crença de que o mundo está dividido entre os poderosos (que são responsáveis por todas as coisas ruins) e oprimidos (que são responsáveis por nenhum deles).

"Esta é uma doutrina marxista. Mas a medida em que tal pensamento marxista foi absorvido involuntariamente até mesmo pelo Estabelecimento, esse foi ilustrado pela observação surpreendente feita em 2005 pelo então sênior, Lord Bingham, que a lei de direitos humanos era toda sobre a proteção das minorias 'oprimidas' da maioria ...

"Quando o Muro de Berlim caiu, nós dissemos a nós mesmos que este era o fim daquela ideologia. Não poderíamos ter sido mais enganados.

 “A Cortina de Ferro caiu apenas para ser substituída por um soco inglês em tom de arco-íris, pois, na medida em que nossos comissários culturais pulverizaram todas as atitudes proibidas, a fim de remodelar sociedade ocidental em um universo pós-democrático, pós-cristão e além das morais. Lenin teria sorrido..."

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O Primeiro Estágio da Dialética Niilista: Liberalismo (Por Seraphim Rose)

1. LIBERALISMO

O Liberalismo que iremos descrever nas páginas seguintes não é --vamos deixar claro desde o início -- um Niilismo evidente; é antes um Niilismo passivo, ou, melhor ainda, o terreno neutro e fértil para as fases mais avançadas do Niilismo. Aqueles que estão seguindo a nossa discussão anterior sobre a impossibilidade espiritual ou "neutralidade" intelectual nesse mundo, entenderá imediatamente por que nós classificamos o Liberalismo usando um ponto de vista Niilista que, embora não seja diretamente responsável por quaisquer fenômenos Niilistas marcantes, foi um pré-requisito indispensável para o seu surgimento. A incompetente defesa proveniente do Liberalismo por uma herança na que nunca se acreditou plenamente, tem sido uma das causas mais potentes para a criação do Niilismo.


A civilização humanista Liberal, na Europa Ocidental, foi a última forma da Velha Ordem a qual foi efetivamente destruída nas grandes guerras e nas revoluções da segunda década deste século e que continua a existir -- ainda que em uma forma mais atenuada e "democrática" -- no mundo livre de hoje, pode ser caracterizada, principalmente, pela sua atitude para com a verdade. Esta não é uma atitude de franca hostilidade, nem mesmo de indiferença intencional, pois seus sinceros apologistas inegavelmente tem um verdadeiro respeito por aquilo que consideram ser a verdade; em vez disso, é uma atitude em que a verdade, apesar de certas aparências, já não ocupam o centro das atenções. A verdade em que professa crer (além, é claro, dos fatos científicos) é, para ele, não uma moeda espiritual ou intelectual em circulação, mas um capital inativo e sem frutos que sobraram de uma era anterior.  O Liberal ainda fala, ao menos em algumas ocasiões formais, de "verdades eternas", de "fé", de "dignidade humana", da "vocação" do homem ou do seu "espírito inextinguível", até mesmo da "Civilização Cristã"; mas é evidente que essas palavras não mais dizem o que um dia significou. Nenhum Liberal as leva com toda seriedade; elas são, na verdade, metáforas, ornamentos de uma linguagem que se destina a evocar uma resposta emocional, não intelectual - uma resposta largamente condicionada pelo seu uso prolongado, a uma memória que atende a um tempo em que essas palavras realmente tinha um significado positivo e sério.

Hoje em dia ninguém que se orgulhe de sua "sofisticação" -- ou seja, muito poucos nas instituições acadêmicas, no governo, na ciência, nos círculos intelectuais humanistas, nenhum que queira ou afirme estar a par dos "tempos" -- pode ou acredita plenamente na verdade absoluta, ou mais particularmente, na verdade cristã. No entanto, o nome da verdade tem sido mantido, como tem sido com os nomes daquelas verdades humanas uma vez consideradas absolutas, e poucos em posição de autoridade ou influência hesitaria em usá-las, mesmo quando eles estão cientes de que os seus significados mudaram. A verdade, em outras palavras, foi "reinterpretada"; As antigas formas foram esvaziadas e receberam um conteúdo novo, quase Niilista. Isto pode facilmente ser visto por um breve exame de algumas das principais áreas em que a verdade foi "reinterpretada".

Na ordem teológica, a primeira verdade é Deus. Onipotente e onipresente Criador de tudo, revelado pela fé e na experiência dos fiéis, Deus é o fim supremo de toda criação e Ele, ao contrário de sua criação, encontra seu fim em si mesmo, tudo criado se encontra em relação e dependência dEle, o único que nada depende fora de si mesmo, Ele criou o mundo para que pudesse viver em desfrute dele, e tudo no mundo está orientado para este fim, que, contudo, alguns homens podem perder-se por um desvio de sua liberdade.

A mentalidade moderna não pode tolerar tal Deus. Ele é ao mesmo tempo muito íntimo - muito "pessoal", muito "humano" - e demasiado absoluto, muito inflexível em suas exigências para nós, e Ele se faz conhecido somente pela humilde fé - um fato que fere o orgulho da inteligência moderna. Um "novo deus" é claramente necessário pelo homem moderno, um deus mais atentamente modelado segundo o padrão das preocupações centrais modernas, como a ciência e negócios; e, de fato, há uma importante intenção do pensamento moderno para proporcionar tal deus. Esta intenção já é clara em Descartes, é materializado no deísmo do Iluminismo, desenvolvido ao fim no idealismo alemão; o novo deus não é um Ser, mas uma ideia, não revelado pela fé e humildade, mas construído por uma mente orgulhosa que ainda sente a necessidade de "explicação" ao perder o seu desejo da salvação. Este é o deus morto dos filósofos que apenas necessitam uma "causa primeira" para complementar seus sistemas, bem como os "pensadores positivos" e outros sofistas religiosos que inventam um deus pois "necessitam" dele, e pensam que podem usá-lo à vontade. Quer seja "deísta", idealista, "panteísta", ou "imanentista", todos os deuses modernos são construtos mentais, fabricados por almas mortas pela perda de fé no verdadeiro Deus.

Os argumentos ateístas contra tais deuses são tão irrefutáveis quanto irrelevantes; pois tal deus é, de fato, o mesmo que nenhum deus. Desinteressado no homem, impotente para agir no mundo (exceto para inspirar um "otimismo" mundano"), ele é um deus consideravelmente mais fraco que os próprios homens que o inventaram. Em tais alicerces, não é necessário dizer, nada seguro pode ser construído; e é com boas razões que os liberais, enquanto comumente professam crença nessa divindade, na verdade constroem sua visão de mundo em cima do mais óbvio, dificilmente mais estável: a fundação do Homem. O ateísmo Niilista é uma formulação explícita do que já estava, não de uma forma clara, mas de uma forma confusa, presente no Liberalismo.

As implicações éticas na crença de tal deus são precisamente as mesmas daquelas do ateísmo; este acordo interno, no entanto, é mais uma vez disfarçado exteriormente por trás de uma nuvem de metáforas. Na ordem cristã, toda a atividade desta vida é vista e julgada à luz da vida do mundo futuro, a vida além da morte, que não terá fim. O incrédulo não possui ideia do que isso significa para a vida do fiel Cristão; para a maioria das pessoas de hoje, a vida futura, como Deus, tornou-se uma mera ideia, e, por isso, custa pouco de dor e esforço tanto para negá-lo quanto para afirmá-lo. Para o verdadeiro Cristão, a vida futura é uma alegria inconcebível, alegria que supera a alegria que ele conhece através da comunhão com Deus em oração, na Liturgia, no Sacramento; por que, então, Deus será  tudo em todos e não haverá distanciamento desta alegria que certamente será infinitamente melhor. O verdadeiro crente tem o consolo de uma antecipação da vida eterna. O crente no deus moderno, não tendo tal antecipação e, portanto, nenhuma noção da alegria cristã, não pode acreditar na vida futura do mesmo modo, na verdade, se ele fosse honesto consigo mesmo, ele teria que admitir que, no fundo, não acredita.

Existem duas formas principais de tal descrença que se passa pela crença Liberal: a Protestante e a humanista. A visão Liberal Protestante da vida futura -- compartilhada, infelizmente, por um número crescente dos que se professam ser Católicos ou até mesmo Ortodoxos - é, como suas opiniões sobre tudo o mais que pertence ao mundo espiritual, uma mínima profissão de fé que mascara uma fé em nada. A vida futura se tornou um sombrio submundo na concepção popular, um lugar onde se pode ter um "descanso merecido" após uma vida de trabalho. Ninguém tem uma ideia muito clara deste reino, pois corresponde a nenhuma realidade; é, antes, uma projeção emocional, um consolo para aqueles que preferem não enfrentar as implicações de sua descrença real.

Tal "céu" é fruto de uma união da terminologia Cristã com um mundanismo comum, e não é convincente para ninguém que entende que tal compromisso é impossível; nem o verdadeiro Cristão Ortodoxo nem o Niilista é seduzido por ela. O compromisso com o humanismo é, se alguma coisa, ainda menos convincente. Até aqui, dificilmente há uma pretensa ideia de que corresponde à realidade; tudo se torna metáfora e retórica. O humanista já não fala mais sobre céu, pelo menos não de forma séria; mas ele se permite falar do "eterno", de preferência através de figuras de linguagem: "verdades eternas", "eterno espírito dos homens".  Alguém pode, com razão, questionar-se se tais palavras tem algum significado em tais frases. No estoicismo humanista o "eterno" foi reduzido a um conteúdo tênue e frágil a ponto de ser praticamente indistinguível do Niilismo materialista e determinista que tenta, com certa razão, seguramente, destruí-lo.

Em qualquer dos casos, tanto o Liberal "Cristão" e ainda mais o Liberal humanista, a incapacidade de acreditar na vida eterna está enraizada no mesmo fato: eles acreditam apenas neste mundo, não possuem nem experiência ou fé no outro mundo e, sobretudo, acreditam em um "deus" que não é poderoso suficiente para ressuscitar os homens da morte.

Atrás de sua retórica, o sofisticado Protestante e o humanista estão conscientes de que, no seu universo, não há espaço para o Céu, nem para a eternidade; sua sensibilidade completamente Liberal, mais uma vez, não se orienta ao transcendente, mas para uma fonte imanente de sua doutrina ética, e sua ágil inteligência é capaz de transformar este faute de mieux numa apologia positiva. Deste ponto de vista, é tanto "realismo" quanto "coragem" viver sem a esperança na alegria eterna ou sem o medo da dor eterna; para aquele dotado de visão Liberal das coisas, não é necessário acreditar em Céu ou Inferno para ter uma "boa vida" neste mundo. Tal é a cegueira completa da mentalidade Liberal ao significado da morte.

Se não há imortalidade, acredita o Liberal, ainda se pode levar uma vida civilizada; "se não há imortalidade" - uma profunda lógica do Ivan Karamazov no romance de Dostoievski - "tudo é permitido". O estoicismo humanista é possível para certos indivíduos por um certo tempo: ou seja, até que eles percebam as implicações de se negar a imortalidade. O Liberal vive em um paraíso de tolos que deve entrar em colapso quando de frente a verdade das coisas.  Se a morte é, como o Liberal e o Niilista acreditam, a extinção do indivíduo, então este mundo e tudo que há nele - o amor, a bondade, a santidade, tudo - são como nada, nada que o homem possa fazer é tem alguma importância última e o horror da vida está escondido do homem apenas por sua força de vontade em enganar si mesmos; e "tudo é permitido", nenhuma esperança transcendente ou medo impede o homem de experimentos monstruosos e sonhos suicidas. As palavras de Nietzsche são verdades - e a profecia - de um novo mundo resultante deste ponto de vista:

De tudo aquilo que antigamente se tinha por verdade, hoje nem uma palavra é ainda merecedora de crédito. Aquilo que era desprezado como profano, proibido, desprezível e fatal -- todas essas "flores" agora crescem sobre os mais charmosos caminhos da verdade.

A cegueira do Liberal é um antecedente direto do Niilista, e mais especificamente da moralidade Bolchevique; pois este último é apenas uma aplicação coerente e sistemática da descrença Liberal. É uma grande ironia da visão Liberal que, precisamente quando sua mais sincera intenção é posta em prática no mundo, e que todos os homens estão "liberados" do jugo dos padrões transcendentes, e quando o pretexto da crença no outro mundo já desaparecera -- é precisamente aí, que a vida como o Liberal conhece ou deseja, tornar-se-á impossível; o "novo homem" que a descrença produz só pode ver o próprio Liberalismo como a última "ilusão" que o Liberalismo desejava desfazer.

Na ordem política, o cristianismo também foi fundada sobre a verdade absoluta. Nós já vimos, no capítulo anterior, que a principal forma de governo onde havia união com a Verdade Cristã foi no Império Cristão Ortodoxo, onde a soberania estava atribuída a um Monarca, onde a autoridade procedia dele para baixo, através de uma estrutura social hierárquica. Veremos no próximo capítulo, por outro lado, como uma política que rejeita a Verdade Cristã deve reconhecer "o povo" como soberano e entender a autoridade como procedendo de baixo para cima, em uma sociedade formalmente "igualitária”. É claro que um é a inversão perfeita do outro; pois são opostos em concepções tanto quanto sua origem como também ao propósito. A Monarquia Cristã Ortodoxa é um governo divinamente estabelecido, e orientado, em última instância, para o outro mundo; o governo com o ensinamento da Verdade Cristã e a salvação das almas como o seu propósito mais profundo; o governo Niilista - cujo nome mais adequado, como veremos, é a anarquia --- é o governo estabelecido pelos homens, e dirigido exclusivamente a este mundo, governo que não tem nenhum objetivo maior do que a felicidade terrena.

A visão Liberal de governo, como se poderia suspeitar, é uma tentativa de compromisso entre estas duas ideias irreconciliáveis​​. No século 19, este compromisso tomou a forma de "monarquias constitucionais", uma tentativa - mais uma vez - de se casar uma velha forma com um novo conteúdo; hoje, os principais representantes da ideia Liberal são as "repúblicas" e "democracias" da Europa Ocidental e América, grande parte dessas preservam um equilíbrio bastante precário entre as forças de autoridade e de Revolução, enquanto professando a acreditar em ambas.

É claro que é impossível acreditar em ambas com a mesma sinceridade e fervor, e na verdade, nunca ninguém fez isso. Monarcas constitucionais como Louis Philippe pensou fazê-lo, professando a governar "pela graça de Deus e a vontade do povo" - uma fórmula cujos termos anulam o outro, um fato igualmente evidente tanto para o Anarquista quanto para o Monarquista.

Dessa forma um governo está seguro na medida em que tem Deus como seu fundamento e Sua Vontade como guia; mas isso, com certeza, não é uma descrição de um governo Liberal. Trata-se, na visão Liberal, do povo que governa, e não Deus; o próprio Deus é um "monarca constitucional" cuja autoridade foi totalmente delegada ao povo e cuja função é inteiramente cerimonial. O Liberal acredita em Deus com o mermo fervor retórico com o qual acredita no Céu. O governo erguido sobre tal fé é pouco diferente, em princípio, de um governo erigido sobre total descrença, e qualquer que seja seu resíduo presente de estabilidade, está claramente apontado na direção da anarquia.

Um governo deve governar pela graça de Deus ou pela vontade do povo, deve acreditar em autoridade ou Revolução; desta forma um acordo entre os dois só é possível na aparência, e apenas por um tempo. A Revolução, assim como a descrença que sempre a acompanhava, não pode ser interrompida no meio do caminho, é uma força que, uma vez despertada, não vai descansar até que ela termine em um reino totalitário deste mundo. A história dos últimos dois séculos tem provado isso. Apaziguar a Revolução e oferecendo concessões, como os liberais sempre fizeram, mostra, assim, que eles não possuem uma verdade para se opor, mas apenas para, talvez adiar, mas não impedir, a realização de seu fim.  E se opor a Revolução radical com outra Revolução, quer seja "conservadora", "não-violenta", ou "espiritual", não é apenas revelar a ignorância de todo escopo e a natureza da Revolução de nossos tempos, mas também admitir o primeiro princípio da Revolução: de que a velha verdade não é mais verdade, e uma nova deve tomar o seu lugar. No próximo capítulo desenvolveremos este ponto, definindo mais de perto o objetivo da Revolução.

Na visão de mundo Liberal, portanto, em sua teologia, ética e bem como em outras áreas que não examianos -- a verdade tem sido enfraquecida, amolecida, comprometida; em todas as esferas onde a verdade um dia foi absoluta, agora se tem menos certeza, isso caso não tenha sido totalmente relativizada. Dessa forma é possível - e isto, de fato, representa uma definição do projeto Liberal - preservar por um tempo os frutos de um sistema e uma verdade da qual estão incertos e céticos; nada de positivo pode ser construído sobre tal incerteza, nem sobre uma tentativas de torná-lo intelectualmente respeitável nas várias doutrinas relativistas já examinadas. Não existe e não pode haver apologia filosófica para o Liberalismo; suas apologias, quando não são simples retórica, são emocionais e pragmática. Mas, o fato mais impressionante sobre o Liberal, para qualquer observador relativamente imparcial, não é tanto a inadequação de sua doutrina mas também o próprio esquecimento dessa inadequação.

Este fato, que é compreensivelmente irritante aos críticos bem-intencionados do Liberalismo, tem somente uma explicação plausível. O Liberal é imperturbável pelas contradições e deficiências fundamentais de sua própria filosofia, porque seu principal interesse está em outro lugar. Se ele não está preocupado em fundar a ordem política e social mediante a Verdade Divina, se é indiferente à realidade do Céu e do Inferno, se ele concebe Deus como uma mera ideia de um poder impessoal, é porque ele é está muito mais interessado em fins mundanos, e porque todo resto é vago ou abstrato a ele. O Liberal pode estar interessado em cultura, no aprendizado, nos negócios, ou simplesmente no conforto, mas em cada uma de suas atividades a dimensão do absoluto é simplesmente ausente. Ele é incapaz - ou indisposto - em pensar em termos de fins, das coisas finais. A sede da verdade absoluta desapareceu; foi engolida por um mundanismo.

No universo Liberal, naturalmente, a verdade - isto é, o aprendizado- é bastante compatível com o mundanismo; mas existe mais verdade além do aprendizado. "Todo aquele que é da verdade, escuta a minha voz.". Nunca alguém que buscou corretamente a verdade deixou de encontrar, no fim - aceitando-o ou rejeitando-o - nosso Senhor, Jesus Cristo, "o Caminho, a Verdade e a Vida"; Verdade que contrapõe o mundo e reprovação a toda mundanidade. O Liberal, pensa que seu universo protege-o contra essa Verdade, é o "homem rico" da parábola, sobrecarregado por seus interesses e ideias mundanas, relutante de trocá-los pela humildade, pobreza e humilhação; as marcas do verdadeiro buscador da verdade.

Nietzsche deu uma segunda definição do Niilismo, ou melhor, um comentário sobre a definição "não há verdade", e isto é, "não há resposta para a pergunta: 'por que'". O Niilismo significa, portanto, que as questões últimas não têm respostas, ou seja, ausência de respostas positivas; e o Niilista é aquele que aceita implicitamente o "não" que o universo supostamente dá como resposta a estas perguntas. Mas há duas maneiras de aceitar esta resposta. Existe o caminho extremo em que é explicitado e amplificado nos programas da Revolução e da destruição; este é o Niilismo propriamente chamado de Niilismo ativo, pois - nas palavras de Nietzsche - "O Niilismo... não é somente a crença que tudo merece perecer; mas alguém realmente coloca as mãos à obra; destrói-se”. Mas há também um caminho "moderado", que é o passivo ou implícito, Niilismo que estamos a examinar, o Niilismo do Liberal, o humanista, o agnóstico que, concordando que "não há verdade", já não mais anseia pelas questões últimas. O Niilismo ativo pressupõe este Niilismo de ceticismo e descrença.

Os regimes totalitários Niilistas deste século comprometeram, como parte integrante de seus programas, a "reeducação" impiedosa de seus povos. Poucos sujeitos a este processo durante qualquer período de tempo, escaparam inteiramente de sua influência; em uma paisagem onde o cenário é o pesadelo, o senso de realidade e verdade inevitavelmente sofre. A "reeducação" sutil, mais humana em seus métodos, mas ainda assim Niilista em suas consequências, tem sido praticada há algum tempo no mundo livre, e não há lugar mais persistente ou eficaz do que seu centro intelectual, o mundo acadêmico. Aqui coerção externa é substituída pela persuasão interna; um ceticismo mortal reina, escondido atrás dos restos de uma "herança cristã", na qual poucos acreditam, e muito menos com profunda convicção. A profunda responsabilidade que o estudioso uma vez possuiu, a comunicação da verdade, tem sido renegada; fingem "humildade" para esconder esse fato por trás de uma conversa sofisticada sobre "os limites do conhecimento humano", mas é apenas outra máscara do Niilismo que o acadêmico Liberal compartilha com os extremistas de nossos dias.  A juventude que -- até que seja "reeducada" no ambiente acadêmico -- ainda tem sede de verdade, é ensinada em vez da verdade, a "história das ideias", ou então o interesse é desviado para estudos "comparativos"; assim, o relativismo que permeia tudo, e o ceticismo impresso nesses estudos é suficiente para acabar praticamente toda sede natural pela verdade.

O mundo acadêmico tornou-se hoje, em grande parte, uma fonte de corrupção. É corruptor ouvir ou ler as palavras dos homens que não acreditam na verdade. É ainda mais corruptor receber, no lugar da verdade, mais aprendizado e erudição que, se forem apresentadas como fins em si mesmos, não são mais que paródias da verdade da qual foram feitos para servir, não são mais do que uma fachada que por trás da qual não há nenhuma substância. É, infelizmente, corruptor até mesmo estar exposto à virtude primária que ainda resta no mundo acadêmico. Pois a integridade serve, não a verdade, mas a uma erudição cética, e assim seduz os todos homens de forma mais eficaz com o evangelho do subjetivismo e incredulidade que esta erudição esconde.  É corruptor, por fim, simplesmente viver e trabalhar em um ambiente inteiramente permeado por uma falsa concepção de verdade, onde a Verdade Cristã é vista como irrelevante para os problemas centrais acadêmicos, onde mesmo aqueles que ainda acreditam nesta Verdade pode apenas esporadicamente fazer que suas vozes sejam ouvidas acima do ceticismo promovido pelo sistema acadêmico. O mal, é claro, reside principalmente no próprio sistema, que é fundamentado em inverdade, e apenas incidentalmente nos muitos professores que este sistema permite e incentiva a pregar.

O Liberal, homem mundano, é o homem que perdeu a fé; e a perda da fé perfeita é o começo do fim da ordem erigida em cima daquela fé. Aqueles que procuram preservar o prestígio da verdade sem acreditar nela, oferece a arma mais potente para todos os seus inimigos; uma fé meramente metafórica é suicídio. O radical ataca a doutrina Liberal em todos pontos, e o véu da retórica não é proteção contra o forte impulso de sua lâmina afiada. O Liberal, sob o ataque persistente, cede lugar ponto após ponto, forçado a admitir a verdade das acusações contra ele sem ser capaz de contrariar esta situação com alguma de suas verdade positivas; até que, depois de uma transição longa e geralmente gradual, de repente, ele acorda e descobre que a Velha Ordem, indefesa e aparentemente insustentável, foi derrubada, e que uma nova, mais "realista" - e mais brutal - tomou o lugar.


O Liberalismo é o primeiro estágio da dialética Niilista, tanto por sua fé ser vazia e porque esse vazio coloca em reação ainda mais Niilista -- a reação que, ironicamente, proclama ainda mais alto que o Liberalismo, seu "amor pela verdade", enquanto carrega a humanidade um passo adiante no caminho do erro. Esta reação é o segundo estágio da dialética Niilista: o Realismo.

"Nihilism: The Root of the Revolution of the Modern Age", Seraphim Rose

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

O Festival Revolucionário (Por Roger Griffin)

Cerca de duas décadas atrás, Mona Ozouf, em seu livro ‘Festivais e a Revolução Francesa’ apresentou um impressionante depoimento sobre a centralidade do mito e do ritual na dinâmica das chamadas revoluções “modernas”, “racionais”, supostamente realizada em nome de princípios iluministas. Agora que, finalmente, alguns estudiosos estão levando a sério a proposição de que tanto o Fascismo quanto o Nazismo tentaram criar um novo tipo de cultura, parece ser um momento propício para examinar se o componente visivelmente ritualizado e teatral do Fascismo, ou do fascismo genérico, pode ser iluminado pelo conceito de "festival revolucionário". Como veremos, a aplicação de tal conceito tem um valor heurístico especial quando aplicada a ideologia e a prática fascista, apesar das diferenças radicais que separam a espontânea explosão das energias míticas populistas desencadeadas pela Revolução Francesa e daqueles casos deliberadamente projetados em cidadãos comuns por elites fascistas e nazistas. No momento em que escreveu Mein Kampf, Hitler já estava ciente da necessidade de emular o poder das manifestações em massa realizadas pelos comunistas que
fazia queimar, dentro do pequeno e miserável indivíduo, a orgulhosa convicção de que, mesmo sendo um verme insignificante, ele, todavia, fazia parte de um grande dragão, sob o qual o sopro ardente aquecia o mundo burguês e que um dia em fogo, as chamas e a ditadura do proletariado iria celebrar sua vitória final.



A noção de que pode existir, qualitativamente, diferentes experiências do tempo é fundamental para tal investigação. A questão dos 'tempos' subjetivos possui uma enorme complexidade psicológica e antropológica, e é, por natureza, suscetíveis a todo o número de esquemas conceituais. No entanto, é importante notar que não somente poetas, mas também alguns dos principais intelectuais do ocidente sugeriram que há uma dicotomia entre o tempo 'comum' e o tempo 'especial' persiste na era da modernidade. Emile Durkheim, por exemplo, não apenas distinguiu entre o tempo 'sagrado' e o tempo 'profano', mas deu uma considerável atenção as "assembleias efervescentes”, tempo desordenados que dão lugar a um sentimento coletivo de pertencimento e de propósito temporal. Da mesma forma, um dos efeitos que Max Weber atribuiu a "racionalização" progressiva de todos os aspectos da existência moderna foi o "desencanto" (Entzauberung), a erosão pela secularização da religiosidade, da dimensão mágica da realidade que unia as comunidades pré-modernas, embora ele tenha reconhecido que essa dimensão possa ressurgir espasmodicamente na forma de energias carismáticas para temporariamente libertar os seres humanos de sua gaiola de ferro da razão. Analistas culturais, antropologicamente orientados, como Joseph Campbell, com base em estudos pioneiros de Carl Jung sobre o "arquétipo inconsciente", explorou como a consciência mítica ainda fornece o substrato da experiência humana "moderna", levantando os indivíduos fora do tempo normal, sempre que as suas vidas se cruzam com padrões primordiais da consciência cosmológica ('mitopoética') e ritualística. Uma das figuras mais influentes na investigação da distinção entre tempo profano e o sagrado é Mircea Eliade, que, em um fluxo de escritos, documentou o constante recurso dos seres humanos ao mito e ritual, a fim de evitar o "terror de história ", a invasão da vida pelo todo consumidor tempo.

Visto de uma tal perspectiva, a rebelião cultural contra o projeto iluminista que congregou força a partir da década de 1880 em diante na Europa - hoje geralmente conhecido como "a revolta contra o positivismo" - pode ser vista como o aparecimento de uma série de buscas altamente idiossincráticas para pôr fim à "decadência" (isto é, um tempo 'decaído', desencantado, entrópico, privado) e inaugurar um "renascimento" (ou seja, entrar em um tempo "superior", mágico, regenerativo, coletivo, novo). Se restrito a esfera experimental de indivíduos ou pequenos grupos, isso pode envolver mais do que um culto ao visionário, ao estado místico da consciência, ou a uma busca de conhecimentos e percepções negligenciados pela cultura ocidental dominante, a ponto de causar cultos de Carl Jung, William Blake, e Carlos Castaneda, durante a 'revolta' contra-cultural da década de 1960. No entanto, tão generalizado era a insatisfação com o culto ao progresso material, liberal, e ao um tempo linear que os intelectuais e artistas de toda Europa foram atraídos para a ideia de que tentar se libertar de uma embrutecedora "normalidade" fazia parte de um impulso mais amplo, uma mudança radical na história. Em experiências individuais, isto estava muitas vezes existencialmente caracterizados por uma mudança qualitativa no próprio tempo, a partir do insignificante pessoal ao coletivamente significativo. Personalidades de liderança no renascimento do ocultismo, e muitos pioneiros do modernismo artístico, se encaixam nesse padrão. Assim, figuras como Helena Blavatsky, Rudolf Steiner, William Butler Yeats, Richard Wagner, Igor Stravinsky, Wassily Kandinsky, Pablo Picasso, Vincent Van Gogh, e Rainer Maria Rilke, e artistas de tais movimentos tão díspares como o expressionismo, o cubismo e o surrealismo foram, em suas diferentes formas, preocupados tanto com a conquista de um "ecstasy" (estados que lhes permitiu "ficar de fora" do tempo normal) e com uma forma de catalisar, para a difusão de novas formas de consciência para "salvar" o Ocidente do que eles viam como um processo de atrofia espiritual. Para alguns, a própria noção de "moderno" foi infundida com um senso de regeneração cultural, o nascimento de uma nova era. Por exemplo, Hermann Bahr, escreveu em 1890:

Pode ser que estamos no fim, na morte de uma humanidade esgotada, e que nós estamos experimentando últimos espasmos da humanidade. Pode ser que estamos no início, com o nascimento de uma nova humanidade e que estamos vivendo apenas as avalanches de primavera. Estamos subindo para o divino ou mergulhando, mergulhando na noite e destruição - mas não há como parar.
O credo do Die Moderne é que a salvação vai surgir de dor e desespero, que a aurora virá depois dessa escuridão horrível e que a arte vai manter a comunhão com o homem e que haverá uma gloriosa e abençoada ressurreição.

Uma investigação do final do século XIX na Europa vanguardista, com base em sua filosofia do tempo e da história, iria mostrar o quão profundamente associada ambos estão com a crença apaixonada que formas rotineiras e escleróticas de sentir e ser - associada com a era do materialismo e do filistinismo - podem ser transfiguradas, individual ou coletivamente, através do despertar de uma visionária faculdade em sintonia com tempo "superior". De fato, este ponto pode muito bem provar ser o principal, senão o único denominador comum, que está na base da rica profusão de tantas estética, nuances e visões conflitantes da realidade que são contemplados pelos termos 'modernismo' e 'avant-garde'.


Contudo, o ocultismo e a arte visionária não eram os únicos canais através dos quais tais desejos podiam ser expressados no "fin de siècle" - o próprio conceito implicava que não só uma era de valores e sensibilidade estava encerrando, mas que outra poderia estar aberta. Outras personalidades tentaram contribuir para a inauguração de um novo tempo através da filosofia e teoria social, Friedrich Nietzsche e Georges Sorel são exemplos notáveis. Ambos olharam especialmente para (de formas diferentemente concebidas) energias míticas em vez da razão iluminista como base para uma regeneração da sociedade europeia.  A extraordinária ressonância que suas obras se encontram entre seus contemporâneos pode ser melhor explicada pelo fato de que a cultura européia foi permeada por uma expectativa palingénetica não cumprida e que demandava articulação. Ao contrário de Nietzsche, Sorel transgrediu da "pura" especulação cultural e filosófica para um território desconhecido onde havia maiores aspirações palingéneticas, ou seja, a política revolucionária. Esta abordagem revolucionária, por definição, tentou criar um novo tempo, avançando na ideia utópica de uma sociedade melhor sustentando uma força motriz, não importando o quão, sistematicamente, tais políticas possam ser racionalizadas por doutrinas e teorias.

A Fascist Century: Essays by Roger Griffin

domingo, 5 de janeiro de 2014

A Irreligião (Por Oswald Spengler)

Cada cultura tem, portanto, o seu modo peculiar de extinguir-se espiritualmente, e esse modo, consequência absolutamente inevitável de toda a sua vida, só pode ser um único. Por isso são o Budismo, o Estoicismo e o Socialismo fenômenos finais, que se equivalem morfologicamente.

Isso aplica também ao Budismo, cujo o último sentido sempre foi interpretado erroneamente em tempos anteriores. Ele não é um movimento puritano, como, por exemplo, o Islã e o Jansenismo; não é uma reforma, tal como foi a corrente dionisíaca em oposição ao apolinismo; não é nenhuma religião nova, e nem sequer pode ser considerado como religião do gênero dos Vedas e dos ensinamentos do apóstolo São Paulo. É o sentimento básico da civilização indiana e, por essa razão, “contemporâneo” com o Estoicismo ou o Socialismo, e equivalente a eles. A quintessência dessa mentalidade totalmente profana, nada metafísica, encontra-se na célebre prédica de Benares, sobre as “quatro sagradas verdades do sofrimento”, por meio das quais o príncipe-filósofo conquistou seus primeiros adeptos. As raízes de tal concepção acham-se na filosofia racionalista, ateia, de Sankhya, cuja atitude em face do mundo é tacitamente pressuposta; assim como a ética social do século XIX tem sua origem no sensualismo e no materialismo do século XVIII, e a Stoa procede de Protágoras e dos sofistas, em que pese a sua exploração superficial de Heráclito. Em todos esses casos, a onipotência da razão é o ponto de partida da reflexão moral. Não se fala de religião, se é que por religião se entende a fé em certos assuntos metafísicos. Não há nada mais estranho à religião do que esses sistemas, em sua forma original. Não nos referimos neste ponto às modificações que eles sofreram nas fases posteriores da sua respectiva civilização.

Deparamos com três tipos de niilismo, usando o termo no sentido que lhe conferia Nietzsche. Os ideias de ontem, as formas religiosas, artísticas, politicas, desenvolvidas no curso de vários séculos, acham-se abolidos. Mas até mesmo esse último ato da Cultura, a de negação de si própria, expressa mais uma vez o símbolo primordial de toda sua existência.

O niilista faustiano – Ibsen tanto como Nietzsche, Marx tanto como Wagner – destrói os ideiais; o niilista apolíneo – Epicuro tanto como Antístenes e Zenão – permite que eles desmoronem ante seus olhos; o indiano afasta-se deles, a fim de recolher-se a si mesmo. O Estoicismo tem em mira o comportamento do indivíduo, uma realidade estatuária, puramente atual, sem relação nem com o passado nem com o futuro nem com outras pessoas. O Socialismo trata o mesmo tema de maneira dinâmica: a mesma defesa referida, não a atitude, mas aos efeitos da vida, porém com poderosa tendência agressiva, rumo a regiões distantes, apontando para o futuro e dirigindo-se à totalidade dos homens, que deve ser submetida a um único método. O Budismo – que somente um diletante da pesquisa religiosa comparará com o Cristianismo – quase que não pode ser definido pelo vocabulário das línguas ocidentais. É, todavia, lícito falar de um nirvana estoico, mencionando a personalidade de Diógenes. Também cabe estabelecer o conceito de nirvana de um socialista, tendo-se em mira a fuga da luta pela vida, que a Europa cansada procura disfarçar pelas palavras de paz mundial, humanismo e fraternidade entre os homens. Mas nada disso chega as misteriosas profundezas do nirvana budista.


Toda alma tem religião. Religião é apenas outra palavra suscetível de expressar sua existência. Todas as formas vivas nas quais a alma se manifesta, todas as artes, as doutrinas, os costumes, todos os mundos de formas metafísicas e matemáticas, cada ornamento, cada coluna, cada verso, cada ideia são, no seu âmago, religiões e têm de sê-lo. A certo momento, porém, já não pode ser assim. A essência de toda cultura é religião; por conseguinte, a essência de toda a civilização é a irreligião. Basta confrontar as próprias metrópoles com as velhas cidades cultas – Alexandria com Atenas, Paris com Bruges, Berlim com Nuremberg – para verificar que elas são irreligiosas (o que não se confunda com “antirreligiosas”), em todas suas peculiaridades, desde o aspecto das suas ruas até o linguajar e a expressão seca, inteligente, das fisionomias. Irreligiosas, desprovidas de alma são, por essa mesma razão, também essas emoções éticas universais, cosmopolitas. A extinção da religiosidade íntima, viva, que aos poucos se estende por todos os setores da realidade, inclusive os mais insignificantes, tomando conta deles, é o que caracteriza no panorama histórico a transição da Cultura para a Civilização. É o climatério da cultura, para repetir um termo que já usei em outra ocasião. É o crepúsculo de uma era, que tem lugar, quando a fecundidade psíquica de um grupo de homens se esgotou para sempre a construção substitui o ato de gerar. 

Oswald Spengler, em "A Decadência do Ocidente"