quinta-feira, 26 de setembro de 2013

O Homem Religioso (Por Mircea Eliade)

Um homem não religioso de hoje ignora o que ele considera sagrado, mas, na estrutura da sua consciência, ele não poderia ficar sem as ideias do ser e do sentido. Ele pode considerar esses como aspectos puramente humanos da estrutura da consciência. O que nós vemos hoje é que o homem considera não possuir nada de sagrado, nenhum deus; mas, ainda assim, sua vida possui um significado, pois se não houvesse, ele não poderia viver; ele seria um caos. Ele olha para o ser e não imediatamente entende isso como o ser, mas apenas como significados e objetivos; ele se comporta na sua existência como se ele tivesse uma espécie de centro. Ele está indo para algum lugar, ele está fazendo algo. Nós não vemos nada religioso aqui; apenas vemos um homem se comportando como um ser  humano. Mas, como um historiador da religião, eu não estou certo que não há nada de religioso aqui...

Eu não posso considerar somente o que aquele homem conscientemente diz: 'Eu não acredito em Deus, acredito na história ", e assim por diante. Por exemplo, eu não acho que Jean-Paul Sartre dá tudo de si em sua filosofia, porque eu sei que Sartre dorme, sonha, gosta de música e vai para o teatro. E, no teatro, ele entra em uma dimensão temporal em que ele já não vive seu 'historique momento'. Lá ele vive em outra dimensão bem diferente. Vivemos em uma outra dimensão quando ouvimos Bach. Outra experiência de tempo é dado em um drama. Nós gastamos duas horas em uma peça, e ainda o tempo representado na peça ocupa anos e anos. Eu não posso limitar esse homem em um universo puramente auto-consciente, racionalista em que ele finge morar, já que esse universo não é humano.


- Mircea Eliade (O Sagrado no Mundo Secular, 1973)

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Ensaios de Interpretação Dostoievskiana (Por Otto Maria Carpeaux)

EXISTEM  poucos  escritores  cuja  obra  tenha  sido  tão tenazmente mal compreendida como a de Dostoievski. Dostoievski é, se não o maior, decerto o mais poderoso escritor do século XIX; ou  do  século  XX,  pois  a  sua  obra  constitui  o  marco  entre  dois séculos  da  literatura.  Literariamente,  tudo  o  que  é  prédostoievskiano  é  pré-histórico;  ninguém  escapa  à  sua  influência subjugadora,  nem sequer  os  mais  contrários.  Parece,  porém, que toda a Europa tentar resistir-lhe, instintivamente e obstinadamente; e como esse  bárbaro barbado, com  a  face sulcada  de  sofrimentos, parece  irresistível,  os  europeus  entrincheiram-se,  ao  menos,  num baluarte de interpretações erradas.

Quando,  em  1870,  apareceram  as  primeiras  traduções  do Raskolnikov,  os  críticos  literários  não  viam  na  obra  senão  um extraordinário romance policial. Recordações da casa dos mortosalimentou neles o novo equívoco de se encontrarem diante de um naturalista à maneira de Zola; a estúpida combinação de "Tolstoi e Dostoievski"  fecha,  por  este  "e"  comparativo,  o  caminho  da compreensão,  e  deixa  apenas  admirar  o  "forte  colorido  russo". Depois, percebe-se que Dostoievski não expõe nunca o exterior das suas personagens, das quais conhecemos tão perfeitamente os mais íntimos  movimentos  da  alma;  que  ele  não  descreve  nunca  a paisagem  russa,  mas  unicamente  a  paisagem  urbana  de  São Petersburgo,  e  que  este  Petersburgo  dostoievskiano  é, principalmente, o fantasma de uma cidade visionária. O que ele fixa - e com que segurança! - são as paisagens da alma. E o espírito sensitivo  do  fin  de  siècle  admira,  sobretudo,  esta  psicologia requintada, na qual acredita reconhecer a sua própria decadência; Dostoievski será um assunto de predileção da psicanálise. Daí se origina a pretensão de reclamar Dostoievski em favor das rebeliões mais  subversivas  do  espírito  anárquico  do  après-guerre,  e  certa interpretação anarquista ressoa até no livro de André Gide. Que esta  psicologia se baseia numa antropologia cristã foi a descoberta do após-guerra. Depois de Merejkovski, que se perde em especulações gnósticas, Vjatcheslav Ivanov reconhece o individualismo cristão de Dostoievski; o pastor Thurneysen descobre nele o transcendentalista, perto do cristianismo "incondicional" dos neocalvinistas; Berdiaev revela  o  Dostoievski  hagiocrata,  quase  um  Pai  da  Igreja.  Mas  a satisfação dessas descobertas é perturbada pelo conhecimento das estranhas convicções políticas do escritor. Enquanto quase todos os poetas russos do século são revolucionários, liberais, democratas e socialistas,  Dostoievski  é  conservador;  ou,  melhor,  reacionário intratável:  ajoelha-se,  não  somente  perante  as  imagens  da  Igreja russa, como também ante o retrato do tzar, e à sua concepção de uma humanidade cristã ele mistura um ódio violento à Europa e ao sonho  de  um  Império  Universal  russo;  sonho  que  constituiu antigamente, para nós outros, o pesadelo do pan-eslavismo, e que se transformará, amanhã, em pesadelo bolchevista.

Nesse mundo, seja ele negro ou vermelho, não existe lugar para nós outros. Mas como aceitar um poeta cujo pensamento nos abala? Dostoievski não faz "arte pela arte"; ele nos arrasta até às últimas conseqüências. Inúteis quaisquer concessões. Reconhecendo-se que certas acusações violentas à Europa são plenamente justificadas, é preciso  admitir  que  daí  para  uma  revolução  total,  mesmo espiritualista,  vão  poucos  passos,  dos  quais  somente  o  primeiro custa.  Inútil,  igualmente,  distinguir  entre  os  frutos  da  inspiração poética, válidos também para nós, e as opiniões íntimas do autor, objeto  somente  da  crítica  psicológica  e  da  história  literária.  Em virtude de tal distinção, a obra de arte se tornaria o fruto sublime dum solo impuro, produto exclusivo do subconsciente, resultado de uma partenogênese misteriosa; e nós não aceitaríamos esse artifício unicamente  para  isentar  o  autor,  à  nossa  maneira,  de responsabilidades, às quais ele não desejaria fugir. Ao contrário, cumpre admitir que na obra de Dostoievski a política ocupa um lugar maior do que a literatura, e que as suas convicções políticas nos surpreendem. É justamente isto.
A literatura russa do século XIX é profundamente política. O país não tem imprensa nem tribuna, nem mesmo cátedras livres, e a literatura é a única voz do povo, em plena evolução política e social. Todas as coisas, a ciência, a própria teologia, estão impregnadas de política.  A  literatura  torna-se  uma  tribuna.  Existem  aí,  como  no parlamento inglês, dois partidos opostos. Um, o dos "Ocidentais", que  glorificam  a  Europa  e  desejam  a  europeização  integral  da Rússia; para isto é preciso primeiramente destruir as instituições estabelecidas, o que lhes vale a acusação de niilismo. Os outros, os "eslavófilos", glorificam o passado nacional, mesmo o asiático; é necessário esmagar as influências estrangeiras, o que lhes vale a acusação  de  obscurantistas.  A  literatura  invade,  por  sua  vez,  a política.  O  tzar  Alexandre  II,  o  emancipador  dos  camponeses,  é "ocidental". O seu sucessor, Alexandre III, faz do eslavofilismo a doutrina oficial do pan-eslavismo; exterminar, pela força, todas as nacionalidades  e  religiões  estrangeiras  que  se  acham  sobre  o território  russo,  voltar-se  para  o  despotismo  asiático,  derrubar  a Europa corrompida, erguer o Império Eslavo. E é diante do retrato do tzar Alexandre III que Dostoievski se ajoelha.

Dostoievski  é  escritor  político,  e  o  é  apaixonadamente.  No Diário de um escritor, comentário indispensável dos seus romances, ele afirma a decadência do Ocidente, a apostasia da Igreja romana, e prega  o  domínio  universal  dos  eslavos  ortodoxos.  Faz-se  mister destruir a Europa, "o cemitério das artes e o foco das revoluções". Dostoievski também é revolucionário. Mas o é contra nós.

É irritante. Seria necessário aceitar essas convicções políticas para poder aprovar integralmente o escritor; e isso é impossível. Admitir a coexistência de uma força artística e de um pensamento confuso seria arriscar muito. Admitir, então, que muitas censuras de Dostoievski  à  Europa  são  justificadas,  mas  que  elas  derivam  de outra fonte que não desse pan-eslavismo louco? Quer dizer que o pan-eslavismo representa na obra de Dostoievski papel diferente do que o supôs o escritor. Primeira possibilidade de achar um terreno onde Dostoievski e nós poderemos encontrar-nos.

Quando Dostoievski escrevia um romance, via primeiramente os  problemas  e  depois  as  personagens.  O  aspecto  dos  seus manuscritos, muitos dos quais foram editados em fac simile, é muito curioso. No começo ele emenda mais do que escreve, e as margens são cheias de figuras, representando catedrais, demônios, anjos, que simbolizam os seus problemas. Depois, a personificação começa; o texto corre mais ligeiro, e os desenhos simbólicos se transformam em  retratos  imaginários;  a  comparação  permite  estabelecer  as preferências  do  poeta,  e  esta  comparação  prova  aquilo  que  a interpretação dos textos deixava prever: as preferências do poeta são para os seus inimigos ideológicos. Dostoievski é de uma perfeita imparcialidade artística. Ele sabe que o mundo não é governado pelos anjos, ou o é apenas pelo anjo vencido. Parece que ele forma os  seus  "anticristos"  -  um  Raskolnikov,  um  Kirillov,  um  Ivan Karamazov - com grande simpatia, e que estes constituem, às vezes, os intérpretes do escritor. Isto explica o mal-entendido, muito tempo reinante, de que o próprio Dostoievski era revolucionário e ateu. As outras  personagens,  os  verdadeiros  russos,  um  Schatov,  um Aljoscha, conservam-se como sombras. Não lutam pelos seus ideais; defendem, acima de tudo, o seu direito de viver entre as figuras mais fortes dos inimigos. Raskolnikov, convertido no fim de  Crime e castigo, Aljoscha, ao terminar Os irmãos Karamazov, representam a esperança do futuro; mas Dostoievski nunca escreveu as prometidas continuações  desses  romances.  O  príncipe  Myschkin,  o  "idiota" ideal,  sucumbe;  mas  os  niilistas  verdadeiramente  idiotas,  os Possessos,  escapam,  e,  possivelmente,  serão  os  vencedores. Dostoievski  é  mestre  em  denunciar  o  mundo  inimigo;  mas  não consegue jamais criar a sua visão redentora. Acaba ou pela negação desoladora do Idiota ou pelas vagas promessas de Raskolnikov e dos Karamazov. Quando se interroga o eslavófilo Schatov sobre as suas convicções, ele professa a fé no tzar, no povo russo, na ortodoxia oriental...  -  "E  Deus?"  Ele  começa  a  balbuciar:  -  "Eu...  eu...  eu acreditarei também em Deus." O futuro do verbo acreditar é traidor. Dostoievski não crê nos seus próprios ideais.

Seria ele verdadeiramente um revolucionário? Com efeito, a sua ética de humildade não fornece a razão de Estado no regime tzarista. A religião do Staretz, nos Karamazov, não se assemelha em nada à doutrina da Igreja oficial. O negativismo do príncipe Myschkin em relação ao seu meio tem qualquer coisa de perigoso. Dostoievski sabe perfeitamente o que quer dizer; mas não sabe sempre o que diz. Irrita-se contra a revolução política. Mas luta pela revolução social.  

Inútil acentuar o sentimento muitas vezes sádico de Dostoievski para explicar por ele todas as formas do sofrimento; qualquer leitor o sabe. Raramente o romancista se esquece de indicar a condição humana",  as  causas  sociais  da  miséria  e  da  humilhação.  Já  compararam  a  luta  de  Dostoievski  contra  o  hegelianismo revolucionário dos socialistas com a luta deste outro revolucionário cristão, Soeren Kierkegaard, contra o hegelianismo anticristão dos protestantes liberais? Ambos combatem a idéia que não se realiza: Kierkegaard  contra  os  pastores  filosóficos  que  não  seguem  o Evangelho;  Dostoievski  contra  os  chefes  esquerdistas  que  não cumprem  suas  promessas.  Kierkegaard  transforma  em  utopia  o Sermão da Montanha. Dostoievski erige em utopia a velha Igreja de Jerusalém,  onde  os  apóstolos  viviam  num  pretenso  comunismo cristão,  como  o  conservou  a  organização  econômica  de  alguns grandes mosteiros russos, e o continua o mir, a coletividade agrária dos  camponeses  russos.  Essas  instituições  primitivas  têm  um inimigo terrível: a nova burguesia dos "ocidentais", que criou, em troca, um proletariado desarraigado, de onde um novo comunismo nasce; mas desta vez ateísta.

Em  Os  possessos,  Dostoievski  predisse  claramente  esta catástrofe. Ele desejava impedir a invasão do capitalismo na Rússia patriarcal. O seu sonho de uma humanidade espiritualizada é o de uma humanidade emancipada das forças econômicas que, uma vez desencadeadas, tornariam inevitável a queda no abismo materialista.

Contra  esses  irmãos  inimigos,  a  burguesia  e  o  socialismo igualmente  materialistas,  Dostoievski  levanta,  no  apêndice  ao Discurso sobre Puchkin, a utopia da Igreja-Estado, na qual reina o  comunismo  da  perfeita  fraternidade  cristã.  Tiremos  a  fraseologia teológica: fica um bolchevismo um tanto idealizado.
É  por  isso  que  os  bolchevistas  nunca  baniram  este  profeta cristão, este protagonista da autocracia tzarista e da Igreja ortodoxa. Ao contrário. Publicaram-lhe até uma edição monumental das Obras Completas, com todos os manuscritos, até então inéditos; não se escandalizaram nem mesmo com os seus artigos no jornal, com os ataques mais violentos ao socialismo e à revolução: não se deixam enganar pelas aparências. Essa fraseologia dostoievskiana, dizem os bolchevistas, não é senão um reflexo ideológico, restos educacionais e supersticiosos, mas de nenhuma significação real. Essa ideologia é somente um véu sobre a condição social. Dostoievski é um pequeno burguês. Contra as forças feudais, ele aprova a revolução. Mas a revolução  à  qual  os  "ocidentais"  o  convidam  é  a  revolução  dos burgueses.  Não  existe  ainda  movimento  operário.  Então, Dostoievski alia-se às forças do passado para combater a invasão burguesa. Todos os ataques que ele dirige à revolução justificam-se em vista da revolução de 1905, na qual os social-democratas e os burgueses estavam ligados contra o tzar. Mas Dostoievski teria sido partidário da revolução de 1917, em que somente eles, os operários, derrotaram o tzar e a burguesia ao mesmo tempo. Toda a sua vida este nacionalista falou do cristianismo verdadeiramente russo; em 1917, os véus ideológicos lhe cairiam dos olhos, e ele teria saudado a revolução verdadeiramente russa. Eis a interpretação bolchevista.

Um ponto, enfim, de contato, pelo menos para um socialista europeu?  Mas  houve  alguma  vez  um  pequeno-burguês  europeu, mesmo genial, que tivesse o ar de um Dostoievski? Como sempre, a argumentação marxista encontra acertadamente o lado negativo e falta-lhe completamente o lado positivo. Dostoievski e Lenin, ambos imbuídos  de  "fraternidade  eslava",  odeiam  o  individualismo europeu, e utilizam as mesmas expressões de desprezo: "o operário de Londres, o burguês de Paris e o professor de Heidelberg, todos a mesma coisa". Essa "fraternidade" é russa e bolchevista ao mesmo tempo. Mas Dostoievski vê mais claro. Em Os possessos, o liberal Stefan Verkhovenski é o pai do socialista Piotr e o preceptor do  niilista Stavrogin. O liberalismo começou a libertar a humanidade da sua base religiosa. Para o pai Verkhovenski a Madona Sistina é um ideal estético; para seu filho, um fetiche desprezível. O socialismo, para Dostoievski, é apenas a propagação do egoísmo burguês entre os proletários. O eu, na sua superficialidade, permanece odioso, e tem necessidade da conversão e da fraternidade cristã. Mas o grande psicólogo desce até os mais profundos recantos da alma, onde o homem se torna consciente da sua dependência de Deus. A primeira aproximação sugere quase um tratado de sociologia cristão, cujo fim não é a coletividade bolchevista, mas a "comunhão dos santos". A última aproximação fornece  um  tratado  de  antropologia  cristã, aproximando-se da teologia de Pascal e dos protestantes da "teologia dialética", mas superando o pessimismo pela aleluia da ressurreição.

Dostoievski é cristão. Nós também. Campo de encontro, enfim? Não, absolutamente. Pois Dostoievski nos recusa o direito de nos chamarmos cristãos. Ao contrário. Ao lado do operário de Londres, do burguês de Paris e do professor de Heidelberg, ele coloca o padre romano.  Vosso  pretenso  cristianismo  -  diz  ele  -  é  a  religião  do Anticristo. Eis aí o assunto de O Grande Inquisidor.

As  interpretações  formam  legião.  Protestos  contra  toda  a organização eclesiástica, de acordo com Berdiaev, herança do velho sectarismo  eslavo  de  uma  Igreja  invisível,  sem  padres  e  sem sacramentos? Protestos, de acordo com Simon Frank, contra toda idéia  de  uma  elite  dirigente,  que  alivia  o  homem  das responsabilidades  da  sua  existência  metafísica?  Quanto  a  um aspecto, quase todos os comentadores, católicos ou não-católicos, estão de acordo: Dostoievski não visou, ou não visou unicamente, a Igreja Romana. Creio, porém, que esta Igreja não tem que temer as polêmicas, e deve mesmo sentir-se orgulhosa desta polêmica.

Que  me  conste,  só  um  apologista  católico,  o  cônego  Paul Simon, reconheceu o verdadeiro alcance da acusação. Dostoievski -disse ele - acusa a Igreja Romana de já não ser a Igreja de Deus, mas unicamente a Igreja dos homens. A censura é arquivelha; ela foi mil vezes destruída e volta sempre, cada vez mais violenta. Isto - diz o  cônego - deve ter uma causa profunda; e - continua - se nisto não há verdade, deve haver uma eterna "possibilidade". Assim é.

A Igreja espiritualista, da qual Dostoievski se faz apologista, eleva-se para o alto e abandona os homens; ela abandona o homem às  misérias  terrestres,  e  permitiu  esta  confusão  terrível:  certas questões  e  interrogações  muito  cristãs  foram  deixadas  para  o bolchevismo. A Igreja Romana não é espiritualista; é a Igreja de Deus  e  a  Igreja  dos  homens,  ao  mesmo  tempo.  Ela  é,  até, profundamente  humana;  daí  vem  a  eterna  "possibilidade"  de "humanizar-se", mesmo demasiadamente, razão por que, no dizer de Rosmini, "as cinco chagas do corpo humano de Cristo não cessam de sangrar sobre o corpo da sua Igreja". Mas, justamente por isso, esta  Igreja  é,  deve  ser  a  rocha  da  nossa  condição  humana,  a advogada da humanidade perante o trono de Deus.

É  deste  humanismo  -  ousemos  o  termo  -  que  Dostoievski censura a Igreja romana, mais ainda, todo o nosso mundo europeu. Conseqüência  gravíssima  do  fato  de  a  Rússia  não  ter  tido Renascença,  nunca  ter  conhecido  a  Antiguidade  senão  por intermédio  da  especulação  gnóstica,  meio  oriental.  Nós  outros, porém, nunca deixaremos de sentir, nesse cristianismo espiritualista à margem do abismo, alguma coisa de sobre-humano. O humanismo não é a nossa religião; é a nossa razão de viver. As "Humanidades" constituem a base da nossa civilização, e é esse humanismo que a Rússia  bárbara,  espiritualista  ou  bolchevista,  nos  censura violentamente.  Mas,  tendo  perdido  as  humanidades,  a  nossa civilização, sim, a nossa civilização cristã, chegará ao fim. É uma questão de vida ou morte. O abismo entre nós e ele está aberto, mais profundamente do que nunca.  

Mas lá, precisamente lá, nós nos encontraremos. A Europa – e eis a terrível justificação das censuras dostoievskianas - a Europa deixou,  há  muito  tempo,  de  ser  cristã.  Porém,  enquanto  viver, continuará  humanista.  A  Rússia  nunca  foi  humanista.  Mas continuou,  assim  mesmo,  cristã,  até  ao  risco  de  deixar  de  ser humana. A morte, temporal ou espiritual, nos espreita, cá e lá. Aqui, o humanismo descristianizado, petrificado na letra morta da filologia  ou endurecido no disfarce de um neocatolicismo neopagão. Lá, o cristianismo  desumanizado,  petrificado  pelo  dogma  da  Igreja sectária ou endurecido pela dissimulação do evangelho socialista. Mais  claramente:  esses  perigos  já  não  nos  espreitam,  eles  nos devoram. Cumpre recomeçar. Cumpre recristianizar o mundo e a fé, por um esforço de síntese, por um "humanismo cristão", que lance uma ponte sobre o abismo.


Sempre é necessário saber aquilo que nos separa e aquilo que nos  une.  O  que  nos  separa  é  muito  e  muito.  Mas  não  sejamos intransigentes diante dessa face barbada, sulcada pelos sofrimentos. O que nos une é o Cristo; e "tout le reste est littérature".
Otto Maria Carpeaux