quarta-feira, 31 de julho de 2013

O Progresso (Oswald Spengler)

Cada maquina serve um processo, e deve sua existência ao pensamento a respeito desse processo. Todos os nossos meios de transporte se desenvolveram da ideia de movimentar um carro, de remar, de navegar a vela e não do simples conceito de carro ou de barco. Os próprios métodos são armas. E consequentemente a técnica não é uma parte da economia, do mesmo modo que a economia (ou a guerra ou a política) não pode ser considerada uma parte da vida existente por si mesma. Todos esses são apenas aspectos de uma vida ativa, lutadora e cheia. Não obstante, da guerra primeva das bestas extintas emerge um caminho que leva aos processos dos modernos inventores e engenheiros, do mesmo modo que da cilada, a mais antiga de todas as armas, sai uma estrada que conduz ao desenho das maquinas com que hoje fazemos guerra a Natureza, superando-a em estratagemas.




Ao movimento nesses caminhos se da o nome de Progresso. Foi essa a grande epigrafe do século passado (sec. XIX). Os homens viam a historia a sua frente como uma rua pela qual a “humanidade” marchava corajosa e sempre para a frente; e com “humanidade” queriam designar as raças ou, mais exatamente, os habitantes de suas grandes cidades, ou, com maior precisão ainda, os “educados”.
Mas... marcha para onde? Por quanto tempo? E... depois?

Era um pouco ridícula essa caminhada rumo do infinito, dum alvo em que os homens não pensavam seriamente, dum objeto que ninguém concebia com nitidez ou, para falar a verdade que ninguém ousava imaginar. Porque um alvo é um fim. Ninguém faz uma coisa sem pensar no momento em que atinge o que deseja. Ninguém começa uma guerra ou uma viagem ou mesmo um simples passeio sem pensar na direção ou na conclusão. Todo o ser humano realmente criador conhece e teme o vazio que se segue a terminação de uma obra.

A evolução implica em cumprimento – cada evolução tem um principio e cada cumprimento é um fim. A velhice está implícita na juventude; o nascimento no perecimento; a morte na vida. Porque o animal, cujo pensamento está preso ao presente, conhece ou fareja a morte como alguma coisa que está no futuro, alguma coisa que não o ameaça. Ele apenas conhece o medo da morte no momento de ser morto. Mas o homem, que tem o pensamento emancipado das cadeias do aqui e do agora, do ontem e do amanha, investiga o “uma vez” do passado e do futuro, e o seu triunfo ou derrota final ante o medo da morte depende da profundidade ou superficialidade de sua natureza. Conta velha lenda grega, sem a qual não existiria a Ilíada, que, tendo a mãe de Aquiles oferecido a este a escolha de uma vida longa e vazia ou uma vida breve mas cheia de feitos e de fama, ele preferiu a segunda.

O homem era e é demasiadamente superficial e covarde para suportar a ideia da mortalidade de todas as cosias vivas. Ele a envolve no otimismo cor-de-rosa do progresso, amontoa sobre ela as flores da literatura, fica a rastejar por trás de uma muralha de ideais para não enxergar nada. Mas a transitoriedade, o nascimento e o passamento, é a forma de tudo quanto tem realidade – desde as estrelas, cujo destino para nós é incalculável, até o efêmero formigueiro de nosso planeta. A vida do individuo, seja ele animal, planta ou homem, é tão perecível como a dos povos e das Culturas. Cada criação está predestinada à decomposição; todo o pensamento, todo o descobrimento, todo o feito estão condenados ao esquecimento. Aqui e ali, por toda a parte vislumbramos cursos da historia de grandioso destino e hoje desaparecidos. Vemos em torno de nós ruinas das obras “que fora”, de culturas mortas. No descomedimento de Prometeu, que ergueu as mãos para os céus para submeter as potencias divinas ao homem, estava implícita a queda. Que é feito, pois, dessa palavrosa alusão as “realizações imorredoiras”?

A historia do mundo tem um aspecto completamente diferente daquele que nosso século permite sonhar. A historia do homem, comparada a do mundo animal e vegetal deste planeta – para não falar na vida dos mundos estelares, - é realmente breve. É uma ascensão e um declínio de uns poucos milênios um período que não tem a menor importância na historia da terra mas que, para nós que nascemos com ele, está cheio de força e grandeza trágicas.  E nós, seres humanos do século vinte, descemos a encosta vendo a descida. Nossa faculdade de perceber a historia, nossa capacidade de escreve-la, é um sinal revelador de que nosso caminho se dirige para baixo. Nos picos das Culturas superiores, no momento em que estas se acham em transito para a civilização, esse dom de penetrante conhecimento lhes aparece por um instante, mas só por um instante.

Entre os enxames das estrelas “eternas” intrinsecamente não importa qual seja o destino deste pequeno planeta que segue seu curso por breve tempo em algum lugar do espaço infinito. Ainda mais insignificante é aquilo que em sua superfície se move durante alguns instantes. Mas cada um de nós, intrinsecamente um nada, se vê lançado nesse universo rodopiante por um minuto indizivelmente breve. Por isso este mundo em miniatura, esta historia universal, é algo de suprema importância. E, o que é mais, o destino de cada um desses indivíduos não consiste apenas em, por seu nascimento, terem sido eles trazidos para dentro desta historia universal, mas sim em haverem aparecido num determinado século, num determinado povo, numa determinada religião, numa determinada classe. Não está ao nosso alcance escolher entre ser filho dum camponês egípcio de 3.000 a.C., de um rei persa ou então de um vagabundo de nossos dias. A esse destino temos apenas que nos adaptar. Ele nos condena a certas situações, concepções e ações. Não existe “o homem em si” tal como querem os filósofos, mas apenas homens de uma época, de uma localidade, de uma raça, de uma índole pessoal, homens que travam batalha com um dado mundo e acabam vencendo ou sucumbindo, enquanto o universo ao redor deles segue lentamente o seu curso com uma indiferença divina. Essa batalha é a vida – a vida, sim, no sentido nietzschiano – uma luta torva, impiedosa e sem quartel, que nasce da vontade-de-poder.

Trecho do livro "O Homem e a Técnica" por Oswald Spengler

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